Fabrício LobelJúlia Barbon
BETIM (MG) e MÁRIO CAMPOS (MG)
O “pai nosso que estais no céu” começou quando Elias e Sebastião viram que não tinha mais saída. Eles até tentaram fugir, dirigindo em zigue-zague em busca de uma estrada que leva a um ponto mais alto da mina, mas àquela altura a lama já havia cercado a caminhonete em que os dois amigos estavam.
Veio um primeiro estrondo: eram os rejeitos batendo em uma das portas. Veio um segundo estrondo: eram os rejeitos batendo na outra. O carro balançava, mas a reza seguia forte, já gritada. No exato momento em que terminaram dizendo “amém”, tudo parou.
A lama havia levantado a caminhonete, que ficou na diagonal, com o lado do passageiro virado para o céu. Os poucos segundos que se seguiram até que eles saíssem do carro foram uma mistura de choque e calma. Sebastião paralisou, mas Elias se esticou e conseguiu abrir a porta do lado do amigo.
A poucos metros dali, Leandro já estava quase completamente soterrado, só com parte do rosto para fora. Respirava com dificuldade, porque seus pulmões estavam prensados entre a lama e a carregadeira que ele conduzia, mas ainda podia pedir socorro.
Só estava vivo porque alguns momentos antes, quando viu a lama fazer com que vagões de trem voassem bem na sua frente “como cena de filme”, pensou rápido a ponto de tirar o cinto e quebrar o vidro lateral com o pé.
Quando a lama chegou rompendo o para-brisa e “tomando a máquina toda”, ele teve por onde sair.
Mas não conseguiria ter saído sozinho. Elias e Sebastião andaram sobre a densa lama de rejeitos até chegarem a ele e cavaram com as mãos os escombros para arrancá-lo dali. “Pode puxar”, dizia ele mesmo, com a perna presa no maquinário. A bota ficou.
Mas não conseguiria ter saído sozinho. Elias e Sebastião andaram sobre a densa lama de rejeitos até chegarem a ele e cavaram com as mãos os escombros para arrancá-lo dali. “Pode puxar”, dizia ele mesmo, com a perna presa no maquinário. A bota ficou.
A partir daí ele não lembra direito o que aconteceu, só viu depois na TV, já com a perna fraturada e 22 pontos no braço: um helicóptero da TV Record registrou Sebastião, que estava erguendo um colete laranja para que resgatassem Leandro. Alguns minutos depois chegou a aeronave da Polícia Militar, que o levou a uma ambulância e, finalmente, ao hospital.
Elias Nunes, 43, Sebastião Gomes, 53, e Leandro Cândido, 37, estão entre as pessoas resgatadas com vida após o rompimento da barragemda Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho (região metropolitana de Belo Horizonte), naquela sexta-feira (25). Outras 121 morreram e 226 continuam desaparecidas, a maioria delas também funcionárias da Vale.
Sebastião trabalha para a companhia há nove anos; Elias, há 13. A função dos dois naquele dia era acompanhar funcionários terceirizados que prestavam serviços sanitários em uma fossa do complexo da mina do Córrego do Feijão.
“A calma nos salvou. Se tivesse me desesperado, a gente estaria ali hoje sendo achado pelos bombeiros como 80%, 90% dos amigos que eu perdi”, diz Elias, que saiu ileso, em sua casa na cidade de Mário Campos (Grande Belo Horizonte) junto das filhas.
Quando ouviu um barulho “que parecia de dinamite” da barragem ruindo, foi ele quem pensou em sair correndo para dentro da caminhonete e chamou Tião, como o colega é conhecido, para entrar no banco do passageiro.
Tião chegou a tropeçar antes de chegar no carro, mas conseguiu se levantar. Elias dirigiu até se ver cercado pela lama. Foi quando desligou o veículo, com medo de que ele pegasse fogo com o impacto dos rejeitos, e eles começaram a rezar.
“É uma força muito grande [a da lama], acho que nem uma bomba atômica faria aquilo. [Depois que a onda de rejeitos passa], é como se nunca tivesse existido nada ali”, descreve Elias.
Toda a cena da fuga foi filmada por uma câmera de segurança da mineradora e divulgada depois pela Band. Ele não gosta de rever as imagens, que têm passado frequentemente na televisão.
Sebastião está há sete dias quase sem dormir, chorando a todo momento.
Sebastião está há sete dias quase sem dormir, chorando a todo momento.
“Não estou querendo falar muito sobre isso, o psiquiatra me deu até esses remédios pra eu tomar”, afirma ele em seu sofá ao lado da esposa, na cidade de Betim, também na Grande BH.
Cabisbaixa e com a fala lenta, Ana Gomes, 47, diz que agora tem que ser forte em dobro, por si e pelo marido. “Mexe com a mente da gente demais da conta. Ele não consegue nem conversar direito, dá desespero e choro nele, perdeu muitos amigos.” Fisicamente, porém, Sebastião só sofreu alguns arranhões nos joelhos e nos braços.
Já para o pai de Leandro, faltaram palavras na hora em que conheceu a dupla que resgatou seu filho, que trabalha há dois anos carregando os vagões do trem com minério de ferro que foi arremessado e soterrado pela lama.
“Eles disseram ‘fomos nós que salvamos o seu filho’. Eu não tive nem argumento para responder, só agradeci e chorei”, conta Antônio Cândido, 62, ainda com os olhos marejados.
A Vale até agora não trouxe a público os documentos que, diz a empresa, atestavam a estabilidade da barragem 1 da mina do Córrego do Feijão. Segundo a mineradora, os papéis foram “entregues às autoridades competentes”.
Conforme revelou a Folha, a empresa já previa em seu plano de emergência que a área da administração e o refeitório (onde morreu a maioria das pessoas) poderiam ser destruídos em menos de um minuto caso a estrutura colapsasse.
Oito dias depois, Leandro ainda se questiona sobre como tudo aconteceu. “Meia hora antes estava rindo com os amigos. Fico pensando como tudo mudou tão rápido.”
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