sexta-feira, 30 de julho de 2021

OPINIÃO ODED GRAJEW E EDUARDO FAGNANI Desigualdade, tributação e esquerda, FSP

 

Oded Grajew

Idealizador do Fórum Social Mundial, é presidente emérito do Instituto Ethos e conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis, da Oxfam Brasil e da Rede Nossa São Paulo

Eduardo Fagnani

Professor colaborador do Instituto de Economia da Unicamp

O editorial da Folha “A desigualdade e o IR” (23/6/21) acerta ao sublinhar: “Há muito a fazer para tornar a carga de impostos mais progressiva, sem elevá-la além de seu patamar já exagerado. Rever subsídios, tributar dividendos (com ajuste no gravame dos lucros) e até majorar alíquotas sobre rendimentos altos se mostram caminhos viáveis”.

Destacar a questão da injustiça fiscal é importante avanço no debate sobre a reforma tributária, marcado entre nós pela ênfase na simplificação dos impostos que incidem sobre o consumo e o descaso com a tributação de altas rendas e riqueza.

O país atravessa grave crise socioeconômica e sanitária. A história econômica demonstra que, em crises dessa magnitude, a tributação de altas rendas e riquezas é medida necessária. Atualmente, instituições de fomento (como o FMI, por exemplo) e governos de países centrais (como os EUA, por exemplo) estão propondo aumentar os impostos para os mais ricos para combater o aumento da pobreza e da desigualdade.

No Brasil, essas ideias liberais não prosperam. A agenda da reforma tributária que tramita no Congresso Nacional está desconectada de qualquer liberalismo que preste. A tributação progressiva é imperativo civilizatório: somos um dos países mais desiguais do mundo, e o nosso sistema tributário é um dos mais injustos.

Na comparação internacional, o Brasil ocupa as últimas posições na tributação da renda e da riqueza e uma das primeiras na tributação do consumo (que captura proporção maior da renda dos pobres e parcela menor da renda das classes mais abastadas); o IRPF tem baixa progressividade, reduzido poder arrecadatório e alíquotas máximas reduzidas; não tributamos a distribuição de lucros e dividendos (nisso, somos outra anomalia internacional), o que contribui para que cerca de 70% da renda de quem ganha mais de 240 salários mínimos mensais sejam isentos de impostos; o IPVA incide sobre motos e carros populares, mas não incide sobre helicópteros e iates; o imposto sobre grandes fortunas, aprovado em 1988, ainda não foi implantado; a alíquota máxima do imposto sobre heranças no Brasil é residual, frente a alíquotas praticadas por países da OCDE; e a terra rural, num país com presença marcante do agronegócio, está praticamente isenta de tributação.

Essas injustiças distributivas contrariam o “princípio da equidade” formulado originalmente por Adam Smith. Esse princípio, inscrito na Constituição da República, não é observado. Pode-se afirmar, portanto, que o sistema tributário brasileiro é inconstitucional.

O editorial está em sintonia com o anseio da sociedade. Um dos achados da pesquisa “Nós e as desigualdades” (Oxfam/Datafolha) é que 84% dos brasileiros concordam com o aumento dos impostos para pessoas mais ricas, para financiar políticas sociais no Brasil. O levantamento mostra ainda que quase nove em cada dez pessoas acreditam que não há progresso nacional possível se não forem reduzidas as desigualdades.

Todavia, o editorial peca ao afirmar que “forças da esquerda” (...) “relutam em abraçar propostas mais ambiciosas para o IR, dados os interesses dos sindicatos de categorias mais bem situadas na pirâmide social”.

O texto desconsidera que, em outubro de 2019, os seis partidos da oposição (PC do B, PDT, PSB, PSOL e PT) protocolaram no Congresso Nacional a emenda substitutiva global à PEC 45 (nº 178), focada na tributação progressiva. Trata-se da “reforma tributária solidária, justa e sustentável”, que apresenta diversas propostas de leis tributárias sobre altas rendas e patrimônio, taxando mais cerca de 600 mil contribuintes (0,3% da população brasileira).

Os acréscimos de receita estimados pelos estudos técnicos que embasaram a proposta (elaborados pela Anfip/Fenafisco) são mais do que suficientes para que se interrompa a devastação em curso do processo civilizatório no Brasil.

Ruy Castro - Por trás da boçalidade, FSP

 Você já viu pelo menos um pronunciamento oficial de Jair Bolsonaro. Ele fala sentado a uma mesa numa sala, tendo ao fundo uma indefesa bandeira nacional e uma simulação de biblioteca. Os livros, comprados pelas cores das lombadas, estão ali para sugerir compostura e reflexão. Inútil, porque o que sai pela boca do orador, em forma, conteúdo, expressão, timbre e dicção, revela um analfabeto funcional —aquele que, tecnicamente alfabetizado, capaz de reconhecer as letras, despreza o pensamento abstrato, por não lhe servir para nada. Segundo pesquisas, o brasileiro médio lê 4,96 livros por ano. Já é pouco, mas Bolsonaro deve levar 4,96 anos por livro.

Nesses pronunciamentos, Bolsonaro se faz acompanhar de um dois de paus, que não abre a boca, e de um tradutor ou tradutora de libras, cuja função é levar os palavrões e grosserias de Bolsonaro aos deficientes. Há dias, quando ele evacuou sua imortal declaração "Caguei! Caguei pra CPI!", a intérprete de libras era uma patusca senhora de óculos. Conhecendo Bolsonaro, e pelo desembaraço com que traduziu o desaforo —nem sombra de titubeio—, já deve ter um estoque de porras, não f.... e PQPs em seu vocabulário. A não ser que emita uma tradução asséptica, caso em que merecerá um sonoro esporro por desfigurar o estilo do patrão.

Não quer dizer que Bolsonaro seja um ignorante. Seus poucos e inglórios anos de Exército só lhe serviram para aprender a lavar cavalos, pintar postes e atirar, mas os quase 30 de Câmara dos Deputados, mesmo na Terceira Divisão, o ensinaram a mentir, corromper e mamar.

Ensinaram-lhe também a se cercar de ideólogos que, estes, sim, leitores atentos, lhe sopram o que fazer para invadir legalmente as instituições e dominá-las por dentro —os instrumentos da democracia que permitem trabalhar contra ela própria.

O Bolsonaro boçal é só uma frente. O perigo está no que isso esconde.

Hélio Schwartsman - Precisamos de mais impeachments, FSP

impeachment é um processo traumático que não pode ser banalizado. Não digo que essa afirmação esteja errada, mas penso que precisa ser relativizada.

Em regimes presidencialistas, as eleições ocorrem em prazos predeterminados e espera-se que os eleitos concluam seus mandatos. Se a ideia é tornar a dissolução de governos um processo mais simples e de fácil digestão política, aí seria melhor adotar de vez o parlamentarismo.

Na América Latina, onde desde o século 19 vicejam os presidencialismos, o impeachment costumava funcionar como uma espécie de bomba atômica —uma arma concebida para jamais ser utilizada. Grupos interessados em promover mudanças de governo preferiam recorrer diretamente a militares e seus tanques.

Com a redemocratização a partir dos anos 90, porém, o estatuto do impeachment vem sofrendo alterações. Para começar, as deposições se tornaram menos raras. Só o Brasil fez duas. E elas também ocorreram no Paraguai, na Venezuela, no Equador e na Guatemala. Mesmo onde não se efetivaram afastamentos, a ameaça de impeachment se tornou um elemento importante do jogo político —parte do sistema de freios e contrapesos entre Poderes que caracteriza as democracias.

Minha impressão é que o impeachment é uma instituição em evolução, que vai cada vez mais assumindo um papel análogo ao do voto de desconfiança no parlamentarismo. Não me parece que seja um mal. Só o fato de os tanques terem desaparecido das ruas já é bastante alvissareiro.

O desafio, acredito, é o ajuste fino. Eu retiraria da equação o elemento jurídico, permitindo o afastamento não só por crimes de responsabilidade como por incapacidade ou mau desempenho, mas manteria a exigência da maioria ultraqualificada de 2/3 do Parlamento para efetivar a destituição. Tirar um presidente não pode ser tão fácil quanto tirar um premiê, mas tampouco pode ser uma tarefa quase impossível.