quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Primeira prisão de Bolsonaro, em 1986, incendiou caserna e alavancou carreira política, FSP

 

São Paulo

Se a recém-decretada prisão de Jair Bolsonaro (PL) projeta um futuro atormentado para o ex-presidente, a primeira vez que ele foi detido, há quase 40 anos, marcou o começo de sua ascensão como liderança entre militares, provocando uma mobilização nos estratos inferiores do Exército que culminaria com sua entrada na política.

O estopim foi um artigo que o então capitão publicou em setembro de 1986 na revista Veja, em cujo título reclamava: "O salário está baixo". Sob uma foto de Bolsonaro com a boina grená da Brigada Paraquedista, um destaque complementava: "Descontentes e sem perspectivas, os cadetes estão abandonando a Academia das Agulhas Negras".

Em 1992, durante seu primeiro mandato como deputado federal, Bolsonaro fala do alto de caminhão na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em manifestação de esposas de militares, público que ajudou a alçá-lo na política quatro anos antes - Lula Marques - 27.abr.1992/Folhapress

A última frase do artigo era o lema do grupo militar anticomunista Centelha Nativista, surgido entre paraquedistas como ele, que décadas depois ficaria conhecido como slogan das suas campanhas à Presidência: "Brasil acima de tudo".

A transgressão foi punida com 15 dias de prisão, num quartel da Vila Militar do Rio, bairro onde Bolsonaro servia e morava. Em vez de enquadrar o indisciplinado, a pena incendiou a caserna, como demonstram reportagens da época e relatórios do próprio Exército.

Num prontuário de Bolsonaro no CIE (Centro de Informações do Exército), foi registrado que, dias depois da publicação do artigo, "23 esposas de oficiais (...) reuniram-se na praça Gen Tibúrcio (Urca/RJ), repetindo procedimento intentado dias antes na Vila Militar/RJ. Objetivaram a remessa de uma carta ao sr. ministro do Exército [Leônidas Pires Gonçalves], em solidariedade ao epigrafado [Bolsonaro] e reivindicando melhoria de vencimentos para os militares".

Um artigo intitulado 'O salário está baixo', escrito pelo Capitão Jair Messias Bolsonaro. O texto discute a situação salarial, com uma foto do autor ao lado. O artigo é apresentado em um formato de coluna, com um cabeçalho em destaque e um fundo claro.
Reprodução de artigo de Jair Bolsonaro publicado na revista Veja em setembro de 1986, que causou a prisão disciplinar do então capitão por 15 dias - Reprodução

Em 3 de setembro de 1986, a coluna Painel, da Folha, registrou, na nota "Caçarolaço militar", que a punição a Bolsonaro "estabeleceu entre seus colegas de farda uma cadeia de solidariedade que preocupa o pessoal de Brasília".

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"Ontem, por exemplo", prosseguiu a nota, "foi necessária muita habilidade para impedir que circulasse, no Rio, um manifesto assinado por outros 300 capitães do Exército. Também não foi fácil demover as mulheres de oficiais subalternos de promoverem uma minipasseata pelo interior da Vila Militar, ao som de caçarolas".

Um informe do CIE de 19 de setembro de 1986 deu conta de que, "como desdobramento previsível das declarações do epigrafado, (...) têm surgido algumas manifestações de solidariedade por parte de militares, civis e até políticos interessados em conturbar o ambiente castrense". Como exemplo, listou nomes de oficiais servindo no CPOR do Pará que "informaram ao comandante (...) que enviaram carta de solidariedade ao epigrafado".

Bolsonaro fez escola. Em outubro, mês seguinte à sua prisão, outro capitão, Sadon Pereira Filho, também foi preso por reivindicar melhores salários. Um ano depois, o capitão Luiz Fernando Walther de Almeida teve a mesma punição por ter invadido a Prefeitura de Apucarana (PR) e ter lido um manifesto cobrando melhores soldos.

O jornal O Globo noticiou, em outubro, que uma semana depois de ser preso Bolsonaro "receberia cerca de 150 telegramas de solidariedade disparados de todas as regiões do país", entre os quais "um do general Newton Cruz, ex-chefe do SNI, e outro do coronel Sebastião Curió [responsável pela execução e tortura de guerrilheiros no Araguaia]".

Num sinal de que mesmo quem determinou a prisão concordava em parte com as queixas de Bolsonaro, o general Acrísio Figueira, comandante da Brigada Paraquedista, afirmou: "apesar de Bolsonaro ter ferido os regulamentos, seu artigo me pareceu ponderado e sem críticas a seus superiores. Na verdade, ele parece ter querido assumir a defesa da Academia Militar das Agulhas Negras enquanto instituição".

Até um relatório do CIE, de 25 de setembro, destacou um aspecto positivo, para o Exército, do artigo de Bolsonaro: "Colaborou, de certa forma, para desfazer junto ao público externo uma antiga ideia de que os militares são bem remunerados e gozam de mordomias. Quanto às consequências do ato praticado pelo epigrafado, todos já esperavam a punição que lhe foi imposta, uma vez que feriu os dois sustentáculos básicos da carreira militar: a disciplina e a hierarquia".

Ou seja, o Exército puniu Bolsonaro porque ele cometera uma transgressão clara aos seus regulamentos e princípios. Mas, até ali, não havia disposição institucional para aumentar o castigo –com a expulsão da corporação, por exemplo. A situação mudou quando a Veja revelou que o capitão contara à revista sobre um plano para explodir bombas-relógio em unidades militares do Rio se o governo não aumentasse os salários.

Segundo Bolsonaro disse à repórter Cássia Maria, seriam "só algumas espoletas", "apenas explosões pequenas, para assustar o ministro [Leônidas], só o suficiente para o presidente José Sarney entender que o Leônidas não exerce nenhum controle sobre sua tropa".

Leônidas de início deu crédito a Bolsonaro e desconfiou da revista, até a Veja mostrar croquis em que o capitão rascunhara o plano das bombas. O ministro passou então a agir para expulsar Bolsonaro do Exército. Teve êxito parcial, quando um Conselho de Justificação (espécie de tribunal militar) condenou o capitão, por mentir "ao longo de todo o processo", e revelar "comportamento aético e incompatível com o pundonor militar e o decoro da classe, ao passar à imprensa informações sobre sua instituição".

Numa prova de que já gozava de prestígio entre alguns figurões militares, Bolsonaro foi absolvido pelo STM (Superior Tribunal Militar). Em 30 de julho de 1988, logo em seguida à sua absolvição e menos de dois anos após a prisão, o Jornal do Brasil estampou a notícia: "Capitão das bombas vai agora disputar eleição".

Dias depois, no mesmo jornal, Bolsonaro explicou por que era candidato a vereador: "Depois de perceber que tudo nesse país depende de uma decisão política, resolvi abdicar da carreira militar. […] A classe militar foi a última a acordar. Você vê os metalúrgicos fazendo greve? Eles estão fazendo política".

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O então deputado federal Jair Bolsonaro (PDC-RJ) tem o seu Chevette rebocado em frente da Aman, em Resende (RJ), por ordem do ministro do Exército, Carlos Tinoco, em 1992 - Luciana Whitaker - 15.ago.1992/Folhapress

Segundo um informe do CIE, o eleitorado potencial do capitão era "o público interno descontente com os vencimentos". Em novembro de 1988, aos 33 anos, Bolsonaro foi eleito vereador do Rio pelo PDC (Partido Democrata Cristão) e passou automaticamente para a reserva remunerada.

O embate com Leônidas deixou sequelas, e por anos Bolsonaro seria proibido pelo Comando do Exército de entrar em unidades, uma proscrição que levaria mais muitos anos para ser revertida.

Moraes simboliza o pavor da direita diante do pênalti, Marcos Augusto Gonçalves, FSP

 Ao determinar a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro por descumprimento de medidas cautelares impostas pelo STF (Supremo Tribunal Federal), o ministro Alexandre de Moraes viu-se envolvido em alvoroço por setores da opinião pública, pela direita e pelo bolsonarismo

Alvo de manifestações afetadas e estridentes, chamado de censor e tirano, o juiz pareceu ter-se tornado o inimigo público número um da livre expressão e da democracia no Brasil. Orquestrou-se até mesmo contra ele um motim trumpista vexaminoso no Congresso.

Um homem calvo é visto de perfil, com uma expressão séria. Ele está vestido com um terno escuro e uma gravata, e usa uma toga preta. O fundo da imagem é escuro, destacando a figura do homem.
O ministro Alexandre de Moraes em sessão da primeira turma do Supremo Tribunal Federal - Gabriela Biló - 5.ago.25/Folhapress

O magistrado é muitas vezes tratado enviesadamente como se tomasse medidas apenas monocráticas, sem respaldo de colegiado da corte, ao sabor de seus humores. É certo que há reparos a fazer ao STF e a Moraes, cujo temperamento justiceiro, como já se comentou aqui, poderia e deveria ser domado. São muito escassas, além disso, suas habilidades políticas.

Não é ruim, de qualquer modo, que essas reações hipercríticas de zelo pela democracia venham à luz. Melhor do que o silêncio suspeito que muitos dos indignados dedicam à letalidade e às violações de direitos de cidadãos das periferias por parte da polícia paulista, sob os auspícios do governador Tarcísio de Freitas, espécie de unicórnio da linhagem "bolsonarismo moderado".

Mas o que gostaria de especular é até que ponto as reações flamejantes a Moraes refletem sobretudo o medo ancestral das elites do Brasil diante da ruptura, característica de nossa cultura política, sempre a contemplar soluções acomodatícias, pelas quais tacitamente todos podem fugir de suas responsabilidades.

Não é demais lembrar que somos o país dos acordões e das saídas por cima, que consagrou a anistia ampla, geral e irrestrita, premiando os porões da ditadura. O mesmo país em que elites sôfregas e simpatizantes do golpe de 1964 bancaram Jair Bolsonaro, criatura chocada naqueles porões –negando-se até mesmo a discutir seu impeachment quando eram clamorosas as justificativas.

Agora, quando evidências da trama golpista se avolumam, o STF, de maneira inédita, não se intimida diante de generais golpistas e pressões civis-militares. Moraes representa um sólido obstáculo a uma nova rodada de indulgência. É o pavor da direita diante do pênalti.