domingo, 19 de maio de 2024

Bolsonaro negaria enchentes no Rio Grande do Sul, Celso Rocha de Barros, FSP

 Na semana passada, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) tuitou: "Imagina o que seria do Brasil e dos brasileiros com Lula presidindo-o na pandemia!".

Já vou imaginar, Eduardo, mas, antes, vamos começar imaginando como seria o desastre no Rio Grande se o golpe de seu pai, denunciado pelos ex-chefes do Exército e da Aeronáutica, tivesse dado certo.

Nesse cenário, e só nele, Jair Bolsonaro ainda seria presidente em 2024.

Bolsonaro, um homem branco, cabelos castanhos e terno, está diante de um microfone de mesa, segurando uma máscara com a mão esquerda. Ao fundo, duas bandeiras, a do Brasil e a presidencial
O então presidente Jair Bolsonaro discursa durante evento no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 10.jun.2021/Folhapress

Quando as enchentes começassem, Jair negaria a existência de enchentes e as chamaria de "chuvazinha". Em suas lives de quinta, divulgaria teorias da conspiração sobre como a China causou a enchente. Com base em uma estimativa de Osmar Terra, afirmaria que menos chuvas cairiam no Rio Grande em 2024 do que no ano anterior. Ao lado de Paulo Guedes, declararia que a evacuação das áreas inundadas seria completamente desnecessária e atrapalharia a economia.

Jair declararia guerra a Eduardo Leite e Sebastião Melo por tentarem resgatar vítimas da enchente, como fez com Doria e suas vacinas. Não visitaria os desabrigados, não choraria pelos mortos. Ao invés disso, faria piada imitando um gaúcho se afogando, e, diante da indignação popular, diria: "Querem que eu faça o que? Não sou salva-vidas".

Em cadeia nacional de rádio e TV, Bolsonaro afirmaria que os afogados deviam ter algum problema de saúde preexistente, porque só isso os impediria de vencer a correnteza a nado, o que ele, com seu histórico de atleta, faria com facilidade.

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Mais do que tudo, Eduardo, os gaúchos teriam que torcer contra uma segunda semana de chuvas. Na segunda onda da Covid, no primeiro semestre de 2021, o Brasil, com 2,7% da população do mundo, tinha um terço das mortes globais.

A equipe de dados do jornal O Estado de S. Paulo mostrou que, se seu pai tivesse aceitado a oferta de vacinas do Instituto Butantã, todos os idosos brasileiros teriam recebido duas doses até o começo de março de 2021. Nesta Folha, o epidemiologista Pedro Halal, usando modelos estatísticos padrão e premissas conservadoras, estimou em 95 mil as mortes que teriam sido evitadas entre janeiro e junho se as ofertas do Butantã e da Pfizer tivessem sido aceitas.

Enfim, esse seria o Jair diante da enchente. Quanto à hipotética atuação de Lula durante a pandemia, é ainda mais fácil de imaginar.

Lula faria o mesmo que FHC, Temer, Dilma, Alckmin, Ciro, Marina Silva, Sarney, Tebet, Eduardo Leite, Sebastião Melo, ou qualquer adulto que estivesse na presidência: seguiria as recomendações dos cientistas, compraria vacina, cooperaria com os governadores.

Só quem não fez isso foi seu pai, Eduardo.

Graças a vocês, o Brasil passou por uma das maiores crises da história contemporânea sem poder contar com nada que pudesse ser chamado de governo.

E é isso que Lula, Leite e Melo estão entregando no Rio Grande agora: governo. Políticas públicas. É o básico do básico, e é o que vocês, bolsonaristas, foram incapazes de fazer durante a pandemia. Por isso perderam a eleição.

É uma vergonha que você ainda tenha mandato, Eduardo. Você deveria ter sido preso depois do "não é questão de 'se', é questão de 'quando'". Mas sobretudo, até mais do que pelo golpe, seu pai deveria ser preso pelos vários Maracanãs cheios de brasileiros que vocês deixaram morrer se debatendo por oxigênio.


Dilemas éticos e memória, Cândido Bracher ,FSP

 Uma carroça desgovernada desce uma encosta em alta velocidade e atropelará um grupo de dez pessoas, causando sua morte certa. Você se encontra próximo ao percurso da carroça e sabe que, se empurrar a pessoa à sua frente sob as suas rodas, provocará sua morte, mas desviará a carroça, poupando a vida de dez pessoas. Você empurraria?

Esse é um exemplo simples de "dilema ético", situação diante da qual não há uma única postura correta e duas pessoas de perfeita boa-fé podem defender comportamentos opostos. No caso, nem mesmo a resposta que teria sido dada pelo dalai-lama —eu me atiraria diante da carroça— é inquestionável.

Diante dessas situações, na vida real, devemos manifestar nossas opiniões com a ponderação que a dúvida subjacente exige e admitir que pessoas de boa-fé possam divergir.

Esse comportamento fácil de entender é, no entanto, muito difícil de praticar. Gostamos de situações claras, maniqueístas, em que possamos nos avocar o monopólio da razão e demonizar quem discorde.

É como eu vejo hoje a discussão em torno do conflito de Gaza.

Soldados israelenses no norte da Faixa de Gaza
Soldados israelenses no norte da Faixa de Gaza - 7.mai.24/AFP

É aceitável impor-se militarmente a um grupo muito mais fraco, causando a morte de milhares de mulheres e crianças indefesas, apenas porque seus líderes são terroristas que os expõem justamente a essa circunstância?

É obrigatório fazer a paz, quando se foi vítima de um ataque covarde e bárbaro, que matou mais de mil pessoas com crueldade e sadismo, sequestrando mais de 200 reféns, dos quais mais de 100 ainda se encontram mantidos pelo adversário em condições sub-humanas?

Cada um de nós pode responder como quiser a essas perguntas, desde que reconheça a existência do dilema e admita que pode haver discordância de boa-fé; logo, merecedora de respeito.

Minha intenção ao escrever este artigo não é a de discutir o conflito, em que acredito não ter nada a acrescentar. Quero apenas alertar para o risco de que essa discussão, tal como a vemos se alastrar pelo mundo, comprometa aprendizados históricos, que nos custaram muito conquistar.

A ideia me ocorreu a partir da combinação de três obras a que tive acesso de modo fortuito e desconexo, na minha recente viagem de férias. No dia da partida, chegou-me um livro francês, "Um Certo Sr. Piekielny", que me interessava por sua relação muito próxima com a vida e obra do escritor Romain Gary, que mencionei em minha coluna anterior.

A segunda obra foi o vencedor do Oscar de melhor filme internacional e melhor som, "Zona de Interesse", a que pude assistir no voo de ida, e, finalmente um outro livro francês, "O Cartão-Postal" de Anne Berest, recomendado por um amigo enquanto eu estava no exterior, que ouvi em audiolivro.

No primeiro livro, o jovem escritor F H Désérable, como eu fascinado pelo livro "Promessa ao Amanhecer", de Gary, parte em busca de um personagem mencionado apenas de passagem, que pede ao menino Gary, então com dez anos: "Quando você encontrar grandes personalidades...prometa-me dizer-lhes que no número 16 da rua Grande-Pohulanka, em Vilnius, morava um certo sr. Piekielny".

Já Anne Berest parte de um misterioso cartão-postal anônimo, recebido em Paris em 2003, para reconstruir a vida de quatro gerações de sua família de judeus errantes, que vagam pela Europa, fugindo às crescentes restrições, sem jamais conseguir se fixar definitivamente em parte alguma.

Li um livro e ouvi o outro nas duas semanas de viagem e terminei os dois quase simultaneamente, prestes a embarcar de volta. Foi só então que me dei conta da enorme semelhança entre ambos. Os dois autores empreendem buscas dignas de histórias de detetives a partir de pistas muito tênues e descrevem o processo com grande talento. No percurso, Berest nos mostra as reações de pessoas normais diante do impensável, enquanto Désérable entremeia sua busca com episódios deliciosos da vida de Gary.

Ambos os livros nos revelam o poder da literatura na preservação da memória, descrito de forma comovente por Désérable:

"[A literatura] ao menos serve para isso: para que um jovem francês, errando por Vilnius, pronuncie em voz alta o nome de um homem pequeno enterrado em uma vala, ou queimado em um forno 70 anos antes, um camundongo triste com a pele escarlate, perfurado por balas ou transformado em fumaça, mas que nem os nazistas nem o tempo conseguiram fazer completamente desaparecer, porque um escritor o resgatou do esquecimento".

No voo de volta, revi o admirável "Zona de Interesse". O filme retrata não o esforço para esquecer, mas sim o empenho em ignorar.

O comandante do campo de Auschwitz, com sua mulher e cinco filhos pequenos, adeptos de um movimento alemão de volta à vida agrária, pautam sua vida por banhos de rio, passeios a cavalo na natureza e uma casa cujo jardim tem dálias e rosas, separada por um muro alto do campo de extermínio, do qual nunca se vê nada.

Mais do que o muro, é o exercício mental de completa desumanização das vítimas que permite ignorar o que ocorre ao lado.

O único elemento a dificultar a tarefa é o ruído incessante e confuso que combina as ordens gritadas e lamentos tornados indiscerníveis pelo ressoar grave e constante dos fornos em funcionamento (não é sem razão que o filme ganhou o Oscar de melhor som).

Esquecer e ignorar estão entre as mais graves ameaças ao progresso da humanidade. Nesse ponto, posso voltar ao início e me posicionar com maior clareza em relação a como vejo o conflito de Gaza. Faço graves restrições à forma como o governo Netanyahu conduz a guerra e não parece se dedicar a fundo à busca de uma solução, como se dispor de boas justificativas para manter o ataque lhe conviesse.

Por outro lado, considero a existência do Estado de Israel uma conquista civilizatória de toda a humanidade, não apenas do povo judeu. É a bela resposta que nós, seres humanos, fomos capazes de dar aos nossos piores impulsos, que emergiram de forma tão brutal no Holocausto.

Por isso, quando ouço pessoas educadas gritando em manifestações nas melhores faculdades do mundo "Palestina, do rio ao mar" (o que implica a extinção do Estado de Israel), me assombro e tremo diante da enorme ameaça de retrocesso forjada pelo esquecimento deliberado.