Uma carroça desgovernada desce uma encosta em alta velocidade e atropelará um grupo de dez pessoas, causando sua morte certa. Você se encontra próximo ao percurso da carroça e sabe que, se empurrar a pessoa à sua frente sob as suas rodas, provocará sua morte, mas desviará a carroça, poupando a vida de dez pessoas. Você empurraria?
Esse é um exemplo simples de "dilema ético", situação diante da qual não há uma única postura correta e duas pessoas de perfeita boa-fé podem defender comportamentos opostos. No caso, nem mesmo a resposta que teria sido dada pelo dalai-lama —eu me atiraria diante da carroça— é inquestionável.
Diante dessas situações, na vida real, devemos manifestar nossas opiniões com a ponderação que a dúvida subjacente exige e admitir que pessoas de boa-fé possam divergir.
Esse comportamento fácil de entender é, no entanto, muito difícil de praticar. Gostamos de situações claras, maniqueístas, em que possamos nos avocar o monopólio da razão e demonizar quem discorde.
É como eu vejo hoje a discussão em torno do conflito de Gaza.
É aceitável impor-se militarmente a um grupo muito mais fraco, causando a morte de milhares de mulheres e crianças indefesas, apenas porque seus líderes são terroristas que os expõem justamente a essa circunstância?
É obrigatório fazer a paz, quando se foi vítima de um ataque covarde e bárbaro, que matou mais de mil pessoas com crueldade e sadismo, sequestrando mais de 200 reféns, dos quais mais de 100 ainda se encontram mantidos pelo adversário em condições sub-humanas?
Cada um de nós pode responder como quiser a essas perguntas, desde que reconheça a existência do dilema e admita que pode haver discordância de boa-fé; logo, merecedora de respeito.
Minha intenção ao escrever este artigo não é a de discutir o conflito, em que acredito não ter nada a acrescentar. Quero apenas alertar para o risco de que essa discussão, tal como a vemos se alastrar pelo mundo, comprometa aprendizados históricos, que nos custaram muito conquistar.
A ideia me ocorreu a partir da combinação de três obras a que tive acesso de modo fortuito e desconexo, na minha recente viagem de férias. No dia da partida, chegou-me um livro francês, "Um Certo Sr. Piekielny", que me interessava por sua relação muito próxima com a vida e obra do escritor Romain Gary, que mencionei em minha coluna anterior.
A segunda obra foi o vencedor do Oscar de melhor filme internacional e melhor som, "Zona de Interesse", a que pude assistir no voo de ida, e, finalmente um outro livro francês, "O Cartão-Postal" de Anne Berest, recomendado por um amigo enquanto eu estava no exterior, que ouvi em audiolivro.
No primeiro livro, o jovem escritor F H Désérable, como eu fascinado pelo livro "Promessa ao Amanhecer", de Gary, parte em busca de um personagem mencionado apenas de passagem, que pede ao menino Gary, então com dez anos: "Quando você encontrar grandes personalidades...prometa-me dizer-lhes que no número 16 da rua Grande-Pohulanka, em Vilnius, morava um certo sr. Piekielny".
Já Anne Berest parte de um misterioso cartão-postal anônimo, recebido em Paris em 2003, para reconstruir a vida de quatro gerações de sua família de judeus errantes, que vagam pela Europa, fugindo às crescentes restrições, sem jamais conseguir se fixar definitivamente em parte alguma.
Li um livro e ouvi o outro nas duas semanas de viagem e terminei os dois quase simultaneamente, prestes a embarcar de volta. Foi só então que me dei conta da enorme semelhança entre ambos. Os dois autores empreendem buscas dignas de histórias de detetives a partir de pistas muito tênues e descrevem o processo com grande talento. No percurso, Berest nos mostra as reações de pessoas normais diante do impensável, enquanto Désérable entremeia sua busca com episódios deliciosos da vida de Gary.
Ambos os livros nos revelam o poder da literatura na preservação da memória, descrito de forma comovente por Désérable:
"[A literatura] ao menos serve para isso: para que um jovem francês, errando por Vilnius, pronuncie em voz alta o nome de um homem pequeno enterrado em uma vala, ou queimado em um forno 70 anos antes, um camundongo triste com a pele escarlate, perfurado por balas ou transformado em fumaça, mas que nem os nazistas nem o tempo conseguiram fazer completamente desaparecer, porque um escritor o resgatou do esquecimento".
No voo de volta, revi o admirável "Zona de Interesse". O filme retrata não o esforço para esquecer, mas sim o empenho em ignorar.
O comandante do campo de Auschwitz, com sua mulher e cinco filhos pequenos, adeptos de um movimento alemão de volta à vida agrária, pautam sua vida por banhos de rio, passeios a cavalo na natureza e uma casa cujo jardim tem dálias e rosas, separada por um muro alto do campo de extermínio, do qual nunca se vê nada.
Mais do que o muro, é o exercício mental de completa desumanização das vítimas que permite ignorar o que ocorre ao lado.
O único elemento a dificultar a tarefa é o ruído incessante e confuso que combina as ordens gritadas e lamentos tornados indiscerníveis pelo ressoar grave e constante dos fornos em funcionamento (não é sem razão que o filme ganhou o Oscar de melhor som).
Esquecer e ignorar estão entre as mais graves ameaças ao progresso da humanidade. Nesse ponto, posso voltar ao início e me posicionar com maior clareza em relação a como vejo o conflito de Gaza. Faço graves restrições à forma como o governo Netanyahu conduz a guerra e não parece se dedicar a fundo à busca de uma solução, como se dispor de boas justificativas para manter o ataque lhe conviesse.
Por outro lado, considero a existência do Estado de Israel uma conquista civilizatória de toda a humanidade, não apenas do povo judeu. É a bela resposta que nós, seres humanos, fomos capazes de dar aos nossos piores impulsos, que emergiram de forma tão brutal no Holocausto.
Por isso, quando ouço pessoas educadas gritando em manifestações nas melhores faculdades do mundo "Palestina, do rio ao mar" (o que implica a extinção do Estado de Israel), me assombro e tremo diante da enorme ameaça de retrocesso forjada pelo esquecimento deliberado.
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