quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

'Médico precisa gostar de gente', diz 1ª mulher presidente da Academia Nacional de Medicina, FSP

 Stefhanie Piovezan

SÃO PAULO

O segredo de Eliete Bouskela, primeira mulher a presidir a ANM (Academia Nacional de Medicina) em 194 anos, é gostar de pessoas. "Uma vez, me perguntaram o que acho fundamental em alguém que queira cursar medicina. E eu respondi sem nenhuma dúvida: gostar de gente. Se você não gosta de gente saudável, não gosta de gente doente", diz a mineira de 73 anos.

Eliete nasceu em Uberlândia em 15 de fevereiro de 1950 e, no início dos anos 60, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. Foi a primeira grande mudança da garota, mas não de seu pai, Elie Bouskela. Nascido no Egito e educado na França, o mascate judeu decidira aos 18 anos tentar ganhar a vida nas Américas –e, então, veio para o Brasil.

Eliete Bouskela, 1ª mulher presidente da Academia Nacional de Medicina em 194 anos - Eduardo Anizelli/Folhapress

"Meu pai achava que, se eu quisesse casar, casava; se não quisesse, não casava; se eu quisesse ter produção solo também, tudo bem, desde que eu estudasse e progredisse", diz Eliete. "Ele sempre esteve ao meu lado de uma maneira muito moderna."

Quando ela se candidatou à ANM, em 2004, e seguiu o ritual de visitar os 100 membros da academia, não se intimidou por 96 deles serem homens. Primeiro, porque adora desafios. Segundo, porque aprendeu com seu Elie que podia fazer tudo que quisesse. "Eu fui criada assim. Eu resolvi que queria aquilo, então eu podia."

"Eu resolvi que queria aquilo [ingressar na Academia Nacional de Medicina], então eu podia."

Eliete Bouskela

Pesquisadora

A CHEGADA DA BATWOMAN

Eliete considerou cursar direito. Pensava em atuar como advogada em crimes bárbaros, cuja complexidade desafia a lógica, mas mudou de área. Iria trabalhar com a complexidade humana, sim, porém na medicina.

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Durante a graduação na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), surgiu uma oportunidade de monitoria em fisiologia cardiovascular com o professor Antônio Paes de Carvalho.

No laboratório, analisando o coração de coelhos, percebeu que gostaria de estudar microcirculação, assunto ainda pouco conhecido. "Você tem que ir para a Mayo Clinic", orientou o colega Ayres da Fonseca Costa, se referindo ao famoso instituto de pesquisa americano. Ao se formar, pediu ajuda a Carlos Chagas Filho e conseguiu uma bolsa para fazer pesquisa nos Estados Unidos.

A ida para a Mayo Clinic foi a segunda grande mudança de Eliete, mas não saiu como planejado. Ela detestou o frio de Minnesota, seu orientador não trabalhava com estudos in vivo e estava no processo de transferência para a Universidade de Washington, em Seattle.

A saída foi trabalhar com o sueco Curt Wiederhielm, que estudava microcirculação em asas de morcego.

Eliete Bouskela é pioneira nos estudos sobre microcirculação e referência internacional na área - Eduardo Anizelli/Folhapress

Tudo corria bem e ela considerava permanecer nos Estados Unidos, mas em 1977 seu pai adoeceu. Eliete voltou para o Brasil e trouxe dezenas de morcegos.

"Eu viajei de Seattle para Washington com 20 morcegos numa caixinha de papelão. Quando passei pelo raio-x, a moça perguntou o que eu estava carregando e respondi que eram pintinhos. Viajei com eles embaixo do meu assento no avião. Cheguei ao aeroporto e estava lá o veterinário me esperando com mais 30 morcegos, mas eu tinha licença só para 20. Fui ao guichê da Varig com os 50 em uma caixa e a atendente disse: 'Precisamos contar esses morcegos'. Eu respondi: 'Eles vão voar. Você vai abrir a caixa aqui?'. Obviamente não abrimos."

A pesquisadora montou um morcegário na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ficou conhecida como Batwoman. O medo de os alunos contraírem raiva, contudo, levou-a a substituir os animais por ratos, camundongos e hamsters, que, como brinca, não tinham tanto glamour.

'O OBESO NÃO SE ACHA DOENTE'

Em 1987, a falta de recursos para pesquisa e o divórcio do primeiro marido suscitaram o desejo de uma nova mudança. Eliete escolheu a Suécia pela curiosidade sobre o funcionamento de um país social-democrata e embarcou com o filho, Rodrigo.

Dessa vez, foram sete anos no exterior. Mulher e estrangeira, sentiu-se preterida por estudantes e professores da Universidade de Lund. Ninguém a queria como orientadora, seus projetos eram negados. Aos poucos, Eliete percebeu que não se sentia pertencente e tampouco útil ali, e, em 1994, regressou ao Brasil acompanhada do filho, do marido, o pesquisador sueco Erik Svensjö, e da caçula, Kristina.

Foi nesse retorno à Uerj que uma nova frente de pesquisa teve início. Além de ampliar os estudos com microcirculação e diabetes, Eliete passou a estudar obesidade e a realizar ensaios clínicos. Era um novo passo no desafio da complexidade.

"A obesidade sempre foi uma doença que me fascinou porque é um desafio constante, a começar pelo fato de que o obeso, muitas vezes, não se acha doente", diz. "Uma vez terminado o tratamento, a possibilidade de o indivíduo voltar a ser obeso é muito grande."

UM CERTO GRAU DE CORAGEM

O foco em especialidades gerou em Eliete a vontade de se atualizar sobre outras áreas da medicina. Ela soube que, na ANM, poderia participar de discussões e ter contato com grandes nomes, e, assim, tentou uma vaga.

"As mulheres admitem de saída que não vai dar certo e, quando partimos da premissa de que aquilo não vai dar, não tentamos. Todas as mulheres que se candidataram à academia foram eleitas, mas muito poucas se candidatam", comenta. "Dos quase 700 membros desde a criação, em 1829, só elegemos 10 mulheres. Acho que olham para isso e pensam: 'Esse negócio não é para mim'. Você tem que ter um certo grau de coragem para se candidatar, se apresentar e achar que pode dar certo."

O contexto social também pesa. Quando visitou a acadêmica Léa Coura como parte da sua candidatura para a academia, levou consigo artigos da revista Science mostrando que a mulher só crescia na carreira científica em países onde havia empregadas domésticas e babás.

Mulheres ainda são minoria nas principais bolsas de pesquisa, diz Eliete Bouskela - Eduardo Anizelli/Folhapress

Ainda hoje, como diretora científica da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) e integrante do comitê de assessoramento do CNPq, Eliete observa que, nas classes mais baixas de bolsas, há igualdade entre os gêneros, mas nos incentivos de ponta o número de mulheres diminui progressivamente.

Identifica, porém, uma mudança em curso. A presença de mulheres como Helena Nader, Eloisa Bonfá, Denise Pires de Carvalho e agora ela mesma à frente de grandes instituições sinaliza, para ela, a abertura de caminhos. "Agora que estamos colocando as manguinhas de fora", diz.

Na presidência da ANM, pretende reforçar o papel da instituição enquanto órgão de aconselhamento sobre saúde. "Se o governo vai nos ouvir ou não, é uma segunda coisa. Se a gente não fala, não tem chance de ser ouvido."

Ela também quer propor discussões sobre a formação médica. Está preocupada com a qualidade dos cursos de medicina, com o desinteresse dos recém-formados pela residência e com a atualização dos profissionais no mercado.

Por fim, pretende debater a relação médico-paciente. "Não devemos abandonar a luta por maior reconhecimento do médico, mas os profissionais também tem que fazer algo a mais. Quantos médicos hoje efetivamente examinam e conversam com o paciente?", questiona.

"Você faz uma medicina massificada e, evidentemente, não é reconhecido. É claro que existem médicos maravilhosos, mas hoje esses profissionais não são maioria."

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'Não' é 'Não', inclusive na igreja, Thiago Amparo, FSP

 No dia 29 de dezembro, o presidente Lula sancionou a lei do protocolo "Não é Não" (lei 14.786/2023), que combate violência e assédio sexual contra mulheres em espaços públicos. Por óbvio, não se trata de um tema menor. Quase 51 mil mulheres sofreram violência diariamente em 2022. Espancamento; ameaça com faca ou arma de fogo; ofensa sexual; chute; perseguição; insulto: todas estas formas de violência cresceram em 2023. Os dados são da pesquisa "Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil" (Datafolha/FBSP, 2023).

De quais mulheres se está falando? A pesquisa revelou que mulheres pretas (48%), com até ensino fundamental (49%) com filhos (44,4%), divorciadas (65,3%), e entre 25 a 34 anos (48,9%) são as que mais sofrem violência. Não há como negar, ademais, que no país campeão em transfobia trans e travestis são vítimas recorrentes. Às vésperas do Natal, uma mulher cisgênera foi confundida com uma mulher trans e levou socos em um banheiro em Recife. Não é um caso isolado. Antra mapeou, em 2022, 44 projetos de lei de proibição de uso de banheiros por pessoas trans no país.

Cartazes são exibidos durante protesto contra a violência contra a mulher em São João do Meriti, no Rio de Janeiro
Cartazes são exibidos durante protesto contra a violência contra a mulher em São João do Meriti, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 13.jul.22/Folhapress

Por trás da iniciativa do "Não é Não", no entanto, há jabutis retrógrados que devem ser combatidos. A lei sancionada —que se aplica "a ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica"— exclui expressamente de sua aplicação "cultos" e outros eventos religiosos, sem justificar o porquê. Como fez bem em vetar a proibição de recursos a iniciativas LGBTQIA+ na Lei de Diretrizes Orçamentárias, Lula deveria ter vetado este dispositivo.

Chega a ser hipócrita que defensores da religião cujo líder esbraveja contra a violência contra mulheres defendam que igrejas sejam espaços onde o assédio reste permitido. Legalmente, não se pode estabelecer espaços privados onde ilegalidades sejam permitidas. Se Jesus estivesse vivo, bateria com seu cajado nos falsos profetas do Congresso.


Menos juridiquês, editorial FSP

 É bem-vinda a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça de lançar o programa Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. A ideia é estimular as instâncias da Justiça a desenvolver ações que visem ampliar a inclusão por meio do uso de uma linguagem jurídica compreensível a todos.

Um dos pré-requisitos da democracia é que as comunicações entre os órgãos de Estado e os cidadãos sejam transparentes e eficazes. Mas embora sempre seja possível transformar o chamado juridiquês em um texto mais acessível para os leigos, não é viável eliminar inteiramente o jargão dos autos.

Ainda que nossos operadores do direito venham há séculos se esmerando em formalismos, beletrismos, latinórios e prolixidades de utilidade e gosto discutíveis, jargões profissionais são comuns em todas as áreas do conhecimento. Eles apresentam, de fato, um aspecto corporativista, contudo suas funções não acabam aí.

Jargões existem também porque tornam as comunicações entre os profissionais mais econômicas e precisas. Quando um médico menciona um "infarto com supra" ou um advogado diz que vai "interpor um agravo de instrumento", eles se referem a eventos bastante específicos cuja descrição, em termos leigos, poderia demandar várias linhas de texto, correndo ainda o risco de sacrificar a exatidão.

O desafio, portanto, é adequar a linguagem à situação. Profissionais quando falam entre si podem e devem utilizar o jargão. Quando a comunicação tem como destinatário o público leigo, entretanto, precisa ser mais cuidadosa.

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Um médico que não seja capaz de explicar um diagnóstico ao paciente em linguagem que este, considerando sua capacidade cognitiva e nível educacional, possa compreender não é um bom profissional.

No Judiciário, a cobrança costuma ser menor. Mas magistrados, especialmente os que atuam em juizados especiais e na Justiça do Trabalho, onde as partes podem em tese atuar sem advogados, deveriam ser capazes de produzir despachos e sentenças que sejam compreendidos pelos jurisdicionados, sob pena de fracassarem em sua missão principal.

O CNJ acerta ao tentar criar essa consciência. Advogados e membros dos Ministérios Públicos deveriam aderir ao programa. Se não por respeito aos cidadãos, ao menos por critérios estéticos —complicar um texto é a pior coisa que um escritor pode fazer à sua obra.

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