domingo, 3 de julho de 2022

BECKY S. KORICH A nova fobia coletiva, FSP (definitivo)

 

Becky S. Korich

Advogada, dramaturga e cronista do blog www.quarentenando.com

A vida não dá trégua. São tarefas ininterruptas, uma colada na outra, que parecem não caber nas 24 horas do dia. "É muita demanda", "falta tempo". É o que cansamos de dizer. Mentira: o que falta são pausas, silêncios, vazios. O que falta é a falta.

Falta um pouco de "nadas", tempos e espaços não preenchidos. Falta um dia sem wi-fi, sem redes sociais, sem TikTok —falta ouvir o tique-taque dos minutos. Falta saber no que se ligar e quando se desligar.

Falta coragem para ficar a sós. É a nova fobia coletiva: medo do silêncio e da solidão.

Faltam a luz apagada e os olhos cerrados. Falta não ter nada na frente. Falta enxergar no escuro, ouvir palavras não ditas. Falta conseguir se calar. Falta a falta de ruídos, para a gente poder se escutar. Falta a falta de imagens, para a gente poder se enxergar.

Falta o ponto e vírgula, o intervalo do jogo, o semáforo vermelho, o domingo nos domingos. Falta não ter todas as respostas. Falta o hiato. Falta saber esperar.

Já não queremos mais textos longos, filmes longos, conversas profundas. Não aguentamos esperar o próximo episódio. Maratonamos nossos dias em busca de desfechos —o que menos importa.

A infância tem pressa, e o querer aprender passa rápido. Falta uma dose de ingenuidade, sobram coerências; falta um pouco de não saber, sobram certezas. Falta a falta de lógica.

Faltam a curiosidade e o apetite. Falta o espaço vazio para se criar. Falta o "menos", para que a vontade apareça. Falta o mistério, para que o desejo aconteça.

Faltam o cochilo sem intenção, a distração, lacunas para surpresas. Falta a cabeça vazia ao se deitar e, imersos em uma mente que nunca descansa, falta conseguir sonhar. Sonhamos menos dormindo, sonhamos menos acordados.

Faltam pausas nessa orquestra desordenada, sem maestro, sem maestria, onde todos os instrumentos são tocados ao mesmo tempo. Falta saber quando silenciar, porque o silêncio é tão importante quanto tocar as notas certas.

Com tantas metas, perde-se o objetivo. Com tantos caminhos, perde-se a direção. Com tantas coisas à mão, perde-se a expectativa. E o tempo fica curto, os caminhos curtos, sem direito a paradas e paisagens para contemplar.

Falta muita coisa porque sobra muita coisa. Sobram filtros, exposições, imagens estáticas, encontros virtuais, emojis, curtidas. Falta curtir a vida —a real.

Sobram dedos para deslizar em telas, faltam dedos para deslizar em corpos, segurar canetas e livros. Faltam papel, pele, cheiro, calor. Falta intimidade.

Sobram informações, tarefas, estímulos, referências. Só que o excesso de informações desinforma; o excesso de tarefas é improdutivo; o excesso de estímulos aliena; o excesso de referências enlouquece.

Não são com excessos que se preenchem vazios. Mais do que isso: alguns espaços existem justamente para não serem preenchidos.

Hélio Schwartsman Nova religião secular, FSP

 


É bom o último livro de John McWhorter. Mas, antes de comentar "Woke Racism", talvez seja bom falar um pouco sobre o autor. McWhorter é um linguista de primeira. Especializado em idiomas crioulos, dá aulas em Columbia. Antes, lecionou em Cornell e na Universidade da Califórnia, Berkeley. É colunista do New York Times. McWhorter pode ser descrito como um homem de esquerda. Sempre apoiou os democratas e defende o direito ao aborto e a legalização das drogas. É ateu. Mais importante, McWhorter é negro e pode ser descrito como um militante contra o racismo.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 3 de julho de 2022, mostra, sob fundo azul escuro, uma cena que tem, ao centro, uma mulher e uma menina negras; a menina, provavelmente a filha, usa vestido verde, meias brancas e sapatos pretos; ela segura uma boneca branca e loira na mão direita enquanto roe as unhas da mão esquerda, o rosto exprimindo medo e tensão; a mãe, ao seu lado, usa vestido amarelo, bolsa e sapatos pretos; sua expressão é tensa, com a mão direita fechada em punho sobre o peito e a esquerda acarinhando as costas da criança; do lado esquerdo da cena, várias mãos negras apontam os dedos para as duas.
Annette Schwartsman

"Woke Racism" é um livro incômodo porque nele McWhorter bate forte no antirracismo de terceira geração, que vem ganhando espaço na esquerda cultural americana. Para ele, ao contrário do antirracismo de primeira e segunda gerações, que lutou pelos direitos civis e trouxe ganhos para a qualidade de vida dos negros, o de terceira está fazendo mal às comunidades e à própria sociedade americana, que não consegue mais debater certas questões. McWhorter diz que o novo antirracismo se tornou uma religião. Não se trata de figura retórica. Para o autor, o movimento "woke" tem todos os elementos que um antropólogo precisaria para considerá-lo uma religião secular, com dogmas fora do alcance da lógica e sessões de cancelamento de "heréticos" conduzidas com fervor evangélico.

Segundo McWhorter, melhor do que perseguir e cancelar pessoas que ousam discordar da nova ortodoxia antirracista seria buscar medidas concretas que contribuam para reduzir a desigualdade racial. Ele cita especificamente o fim da guerra às drogas e reformas educacionais, notadamente a adoção do método fônico no processo de alfabetização e a valorização do ensino profissionalizante.


Vale a pena ler a obra nem que seja para dela discordar. Afinal, rejeitar uma tese sem nem mesmo analisá-la racionalmente é atitude típica de religiosos, não de intelectuais.

sábado, 2 de julho de 2022

Reverter o teto do gasto e a Lei das Estatais teria efeito negativo sobre PIB e estabilidade, José Marcio de Camargo, OESP

 O projeto de lei aprovado pelo Congresso que classifica combustíveis, energia elétrica, telecomunicações e transporte coletivo como bens essenciais e cria um teto para a alíquota de ICMS desses bens em 17% ou 18%, dependendo do Estado, é a melhor proposta apresentada até agora para reduzir os efeitos negativos da aceleração inflacionária e aumento dos preços dos combustíveis.

A proposta deverá resultar em uma queda dos preços desses bens. Estimamos que o efeito sobre a taxa de inflação será da ordem de 2,1 pontos de porcentagem.

Dinheiro
Propostas mais negativas são as que sugerem reversão de reformas Foto: Estadão

Como esses bens são parte importante da cesta de consumo das famílias, principalmente das mais pobres, teremos um aumento da renda real das famílias e menos regressividade da estrutura tributária do País.

Vai sobrar mais renda para as famílias comprarem outros bens e serviços, o que significa mais crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e aumento do bem-estar da população.

As outras propostas em discussão, um voucher caminhoneiro de mil reais, aumento do Auxílio Brasil para R$ 600 e do auxílio-gás, ainda que transitórias, vão exigir aumento dos gastos e rompimento do teto, o que fragiliza o regime fiscal, aumenta o risco e reduz o fluxo de investimentos para o País, consequências que deverão exigir um aumento das taxas de juros.

As propostas mais negativas são as que sugerem reversão de reformas implementadas ao longo dos últimos seis anos que mudaram estruturalmente o regime fiscal brasileiro, em especial o teto do gasto e a Lei das Estatais.

Com o teto do gasto, qualquer proposta que signifique um rompimento dele é exaustivamente discutida pela população e pelos investidores, forçando o governo a apresentar seus prós e contras.

Da mesma forma, a tentativa de mudar a Lei das Estatais com o objetivo de facilitar a interferência política na direção dessas empresas. Essa interferência, no passado recente, gerou corrupção, má gerência das empresas e desperdício de dinheiro público.

Reverter essas reformas seria um importante retrocesso institucional que, além dos efeitos de curto prazo, teria um efeito bastante negativo sobre o crescimento e a estabilidade de longo prazo da economia brasileira.

A reação dos investidores já se faz sentir na reversão da trajetória de valorização cambial, queda dos juros e aumento dos preços das ações que caracterizou o primeiro trimestre de 2022 desde que essas propostas começaram a ser discutidas. 

* PROFESSOR APOSENTADO DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO; É ECONOMISTA-CHEFE DA GENIAL INVESTIMENTOS