quarta-feira, 23 de março de 2022

Putin embaralha ainda mais noções de esquerda e direita. Hélio Schwartsman. FSP

 Vladimir Putin bagunçou de vez aquilo que já andava meio confuso. Falo da dicotomia esquerda-direita. O autocrata russo recebe o apoio de várias alas da esquerda mundial por causa principalmente do antiamericanismo. Já a direita celebra Putin porque ele é, bem, de direita... Duas de suas características mais salientes são o conservadorismo e o autoritarismo.

Quão úteis ainda são as noções de esquerda e direita? Elas surgiram como um achado empírico. Na França pré-revolucionária, os deputados que se sentavam à direita da cadeira reservada ao rei na Assembleia (nobres e clero) defendiam as teses conservadoras, e os que se sentavam à esquerda (a burguesia) queriam mudanças. Eram, portanto, conceitos bastante informativos, já que a distinção era nítida e dava conta dos principais dilemas políticos.

O problema é que o mundo foi se tornando um lugar mais complexo e a dicotomia ficou menos informativa. Hoje, ouvir de uma pessoa que ela se considera de esquerda não permite mais prever como se posicionará, por exemplo, em relação à guerra na Ucrânia ou mesmo à liberdade de expressão, que já foi bandeira esquerdista. Muitas das distinções se fazem atualmente com base na genealogia do grupo com o qual o indivíduo se identifica. Se você é simpatizante do PT, é de esquerda. Mas mesmo isso está se tornando problemático. É só ver que Geraldo Alckmin será um cacique do Partido Socialista.

Até existiriam alternativas mais científicas para proceder a classificações ideológicas. Gosto particularmente do sistema concebido por Jonathan Haidt, baseado em combinações de um núcleo de sentimentos morais básicos. Mas a proposta não pegou. Ela gera diagnósticos muito nuançados, que, se ganham em precisão, perdem ao deixar de lado as delícias do enquadramento binário. Receio que, quando evocamos esquerda e direita, estamos mais interessados em nos exibir para o mundo do que em entendê-lo.

O QUE A FOLHA PENSA Atrasado e desigual

 

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Canos despejam esgoto diretamente em um córrego no Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo - Lalo de Almeida - 23.abr.21/Folhapress

Todos os dias, mais de 5.300 piscinas olímpicas de esgoto são despejadas sem tratamento nos rios e no litoral brasileiros. Chocante, o dado dá a dimensão do atraso nacional no saneamento básico, verdadeiro déficit civilizacional que o país segue longe de superar.

Uma nova radiografia desse fracasso —que, além de afetar a saúde pública e o bem-estar humano, tem consequências deletérias sobre o ambiente— está em ranking do Instituto Trata Brasil.

Por meio de 12 indicadores, baseados em dados de 2020, o instituto expôs o cenário —e a desigualdade— do saneamento nas cem cidades mais populosas do país.

Se é verdade que, nesse grupo, 94,4% da população conta com acesso à água tratada, marca próxima da universalização, também é fato que capitais como Porto Velho e Macapá ostentam índices vexaminosos, abaixo de 38%. No país, o atendimento fica em 84,1%.

Água encanada, ressalte-se, é o quesito em que a situação se encontra melhor. Quando se consideram coleta e tratamento de dejetos, o quadro se mostra desolador.

A média nacional de coleta de esgoto é de 55%, ante 75,7% na média dos cem maiores municípios. Contudo, apenas duas cidades da amostra, as paulistas Piracicaba e Bauru, atendem 100% de suas populações. Na ponta de baixo, aparece Santarém (PA), onde menos de 5% têm acesso ao serviço.

Pior ainda se mostra a taxa de tratamento de esgoto. No país, a média é de meros 51%, percentual que chega a 64% nos 100 maiores municípios. Mas, enquanto os 20 primeiros colocados tratam 81% de esgoto, nos 20 piores são 25%.

Vistos em conjunto, os indicadores evidenciam uma enorme disparidade regional. Os estados de São Paulo e Paraná concentram 14 das 20 cidades mais bem colocadas no ranking; nos 20 últimos predominam municípios de Norte e Nordeste (incluindo 9 capitais).

O novo marco do saneamento, que abriu espaço para maior participação do setor privado, traz esperanças de que esse abismo possa enfim ser transposto. Desde a aprovação da lei, em julho de 2020, o setor atingiu R$ 42,2 bilhões em investimentos contratados.

Há que vencer resistências do corporativismo e da baixa política para alcançar a meta de universalizar até 2033 o acesso a água, coleta e tratamento de esgoto. Parafraseando a máxima de Millôr Fernandes, no saneamento o Brasil tem um enorme passado pela frente.

editoriais@grupofolha.com.br

Para o PCC, Cracolândia teria se tornado um mau negócio, por Marcelo Godoy, OESP

 O que é a renda da venda de drogas na Cracolândia comparada com os problemas que a manutenção do maior mercado da droga ao céu aberto do País causava ao Primeiro Comando da Capital (PCC)? Para quatro integrantes da cúpula da Polícia Civil e um promotor do Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) a resposta a essa pergunta pode estar por trás da decisão da facção criminosa de encerrar – por enquanto – suas atividades na região. Desde sua criação no Anexo da Casa de Custodia de Taubaté, em 1993, o PCC cresceu continuamente, dominou presídios e depois a criminalidade no Estado. Hoje, está presente em 22 países de três continentes e lucra mais de R$ 1,5 bilhão por ano com o tráfico internacional de drogas, mantendo laços com a ’Ndragheta, a máfia da Calábria (Itália) e com o Cartel de Sinaloa (México).

“Hoje o PCC é uma organização de tipo mafioso”, afirmou o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco. Isso porque ele exerce controle de território e social por meio do medo da violência. Busca o monopólio da atividade criminosa e domina mecanismos de lavagem de dinheiro. É a organização criminosa que mais cresce no mundo por meio de seu cartel, o Narcosul.

Cracolândia
Entorno das ruas Cleveland, Dino Bueno e Helvétia, no "coração" do lugar conhecido como Cracolândia, sem a presença de usuários de crack desde o início do final de semana  Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO - 22/03/2022

Símbolo dessa nova fase, em outubro de 2021, os promotores do Gaeco detectaram que o PCC determinou a suspensão da cebola, a cobrança de contribuição mensal dos integrantes da facção que existia desde a fundação do grupo. Abria assim mão de uma renda tradicional – bandidos em liberdade pagavam R$ 1 mil, dinheiro que financiava ações de populismo carcerário, como a distribuição de cestas básicas e o fretamento de ônibus na capital para levar parentes de detentos aos presídios do oeste do Estado.

Com toda essa estrutura, por que manter o tráfico de drogas na Cracolândia? Ainda mais depois que, desde maio de 2021, a polícia instalara câmeras de vídeo escondidas na região para identificar traficantes em meio aos usuários maltrapilhos. “Prendemos 64 deles. Cada vez que aparecia alguém melhor vestido em meio ao fluxo, passamos a identificá-lo e capturá-lo”, afirmou o diretor do Departamento de Narcóticos (Denarc), Genésio Léo Júnior. As prisões se multiplicavam e o lucro diminuía. Para quem está ganhando com o tráfico internacional, a Cracolândia teria se tornado um mau negócio. A polícia só não sabe até quando. 

*REPÓRTER ESPECIAL DO ESTADÃO