terça-feira, 22 de março de 2022

Crise de refugiados ucranianos revela racismo de europeus? Hélio Schwartsman, FSP

CNN publicou interessante reportagem mostrando como a liberal Dinamarca, em que pese estar recebendo ucranianos de braços abertos, se esforça para despachar refugiados sírios de volta para Damasco, onde a guerra civil refluiu, mas não acabou. E a Dinamarca está longe de ser um caso isolado nesse duplo padrão. Racismo? É um jeito de ver as coisas. E eu não diria que é um jeito errado.

Os que quiserem pintar um retrato mais favorável da natureza humana, porém, podem descrever a situação como um caso de etnocentrismo, fenômeno contíguo ao racismo, mas não idêntico a ele. A humanidade até que fez progressos na expansão de seu círculo de solidariedade moral. Nos primórdios, o homem ligava apenas para si e sua família, às vezes para os vizinhos. Com o decorrer do tempo passou a preocupar-se também com compatriotas, correligionários e, por fim, com todo o gênero humano. Até bichos já vão entrando agora nesse círculo.

Seria esperar demais, entretanto, que todos ocupassem a mesma posição. Só um kantiano ou um consequencialista extremos diriam que temos o dever moral de dispensar aos filhos de desconhecidos o mesmo nível de preocupação e cuidados que temos com os nossos. Eu não vejo, portanto, uma violação ética no fato de os europeus estarem dando tratamento preferencial a refugiados que eles consideram culturalmente mais próximos, mas pode haver uma em repatriar estrangeiros que corram perigo em seu país de origem e mesmo em fechar as fronteiras para quem se encontra sob risco de vida em sua terra natal.

Não defendo um igualitarismo tão forte que impeça as pessoas de exercer suas preferências, nem tão fraco que lhes permita ignorar aqueles que precisam de ajuda urgente.

Essa é uma discussão que transcende a guerras, porque, no médio e longo prazos, a imigração, inclusive a oriunda de terras longínquas, é a solução para os problemas demográficos dos países ricos. 

O QUE A FOLHA PENSA MEC paralelo

 A notícia de que o ministro da Educação, Milton Ribeiro, mantém um esquema informal para intermediação de pleitos, liderado por dois pastores evangélicos sem vínculos funcionais com a pasta, é mais uma evidência da estratégia adotada por Jair Bolsonaro de operar em áreas cruciais da administração com estruturas paralelas.

Em conversa gravada obtida pela Folha, Ribeiro afirma que os pedidos negociados pelos pastores Gilmar Silva dos Santos e Arilton Moura são prioritários para o governo.

PUBLICIDADE

Em reunião com gestores municipais interessados em recursos, o ministro diz que o atendimento às proposições de um dos religiosos foi uma determinação do próprio Jair Bolsonaro (PL). "Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do Gilmar", relata o titular do MEC, também ele pastor.

Como já havia noticiado o jornal O Estado de S. Paulo, há relatos de que os pastores agenciam demandas por verbas em Brasília, em particular do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Viajam em aviões da FAB, participam de agendas oficiais e atuam em diversas áreas do país, notadamente na região Norte.

Casos de grupos mantidos à sombra por Bolsonaro para participar de políticas governamentais não são novidade. A Polícia Federal já apontou a existência, na área de comunicação, do que ficou conhecido como gabinete do ódio —milícia digital que atua para disseminar fake news, combater adversários do governo e mobilizar radicais bolsonaristas nas redes sociais.

Não é segredo que o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), filho do presidente, é personagem central nessa organização, investigada pelo Supremo Tribunal Federal em inquérito aberto por determinação do ministro Alexandre de Moraes.

Na mesma linha, durante as apurações da CPI da Covid, ficou comprovada a existência de uma equipe clandestina, integrada por médicos com tendências negacionistas, para municiar o presidente em sua estratégia de alardear tratamento precoce para a doença e rejeitar a vacinação em massa.

A essas estruturas fantasmas na Saúde e na comunicação junta-se agora o gabinete do ministro da Educação. Trata-se de um método espúrio, opaco e, como se vê, desastroso de governar. É preciso que os fatos ora revelados sejam apurados e que se apliquem as medidas legais cabíveis para coibi-los.

editoriais@grupofolha.com.br


segunda-feira, 21 de março de 2022

Je Suis Karl (2021), filme Netflix

Je Suis Karl (2021) parte da constatação que as ideias de extrema-direita adquiriram uma aparência nova no século XXI. Ainda existem raros nazistas “tradicionais”, que veneram a suástica, Hitler, os slogans e gestos típicos do Terceiro Reich. No entanto, esta ideologia se tornou menos chamativa e espetacular. Os indivíduos que se identificam com esta forma de pensamento não precisam usar as máscaras da Ku Klux Klan - talvez vistam o terno e gravata de um burocrata qualquer; a roupa casual do vizinho ao lado. O “neoconservadorismo” alemão soube retirar pautas ostensivamente violentas do discurso, enquanto o Front National francês ganhou um rebranding, como diriam os publicitários: quando Marine Le Pen sucedeu ao pai Jean-Marie na liderança do partido, deixou de atacar explicitamente os negros, árabes e parou de dizer que “O Holocausto foi um detalhe da história”, como gostava de afirmar o pai. Na ambição de ocuparem o governo, estes líderes adquirem uma roupagem sedutora, repleta de termos vagos nos quais se inserem propostas discretamente agressivas. Neste longa-metragem, o grupo fictício Re/Generação propõe que as pessoas possam se defender, se sentir seguras, constituir família entre europeus capazes de se reconhecer um no outro. A religião e a raça sequer são citadas, embora os cartazes em defesa de uma “nova Europa” contenham apenas retratos de pessoas brancas.

O filme estuda a origem deste pensamento e sua retórica contemporânea, marcada por eufemismos, deturpações e uma aparência fraterna, ao invés de ofensiva - por isso, os ataques terroristas são conduzidos às escondidas. Assim como ocorreu na ditadura militar brasileira, quando os próprios agentes do governo conduziram o atentado do Riocentro para responsabilizar a esquerda, são os neonazistas que explodem prédios para culparem imigrantes pela insegurança. Este posicionamento se alimenta do medo, precisando estimular a fragilidade - em outras palavras, criar o problema para vender a solução. Por isso, o roteiro elege como protagonista o símbolo mais evidente da condição da vítima branca: Maxi (Luna Wedler), sobrevivente de um atentado a bomba que matou a mãe e os irmãos pequenos. O diretor Christian Schwochow toma a precaução de esclarecer desde o princípio que a explosão foi coordenada pela Re/Generação, sem estimular sentimentos punitivos anti-árabes, nem manipular o espectador pelo prazer da descoberta dos culpados. O cotidiano da organização é acompanhado de evidente olhar crítico em relação aos seus atos. Maxi se sente acolhida pelo rapaz charmoso, dotado de boa oratória, fornecendo uma família simbólica, visto que perdeu a sua. Quando alguém dispara um “Sieg Heil” na multidão, o porta-voz Karl (Jannis Niewöhner) contesta imediatamente: “Isso foi antes! Agora é diferente!”. Há discordância quanto à aparência, não à essência.

Para uma trama de viés político claro, Je Suis Karl propõe boas nuances ao longo da narrativa. Em 2008, A Onda trazia uma visão didática da ascensão do nazifascismo, e em 2020, E Amanhã… O Mundo Todo cedia a algumas facilidades para discutir os perigos do extremismo. Ora, Maxi jamais se engaja por completo no movimento: ela aprecia as companhias fraternas, mas se distancia quando as falas discriminatórias adquirem amplitude. O cineasta recorre ao fenômeno dos sapos em água fervendo: a garota mergulha aos poucos num universo racista e xenofóbico, e quando começa a desconfiar dos objetivos nefastos do líder, já está envolvida demais. O roteiro evita transformá-la na real vítima desta história: Maxi sofre um bruto golpe da realidade, enquanto o discurso revela o impacto da violência nas famílias negras e num imigrante ilegal, Yusuf (Aziz Dyab), que chega à Alemanha em busca de vida melhor. Há notáveis precauções nesta trajetória: Yusuf e o pai de Maxi, Alex (Milan Peschel), nunca se convertem em heróis, ao passo que a jovem vai além da mera ingenuidade. Ela está psicologicamente abalada, porém raciocina por si própria e toma atitudes divergentes quando necessário. A protagonista vem de uma família progressista, e na hora de necessidade, apenas a união entre a menina recém-radicalizada, um homem árabe e outro de esquerda garantirá uma possível saída a todos.

A mensagem pode ser taxada de pedagógica, criticada pela ausência de sutilezas, como convém ao cinema que ilustra diretamente as militâncias e suas derivas, em registro realista. Há pouco espaço para metáforas, poesia, contemplação, ambiguidade: Karl e seu grupo de seguidores possuem um comportamento idêntico do início ao fim, dentro de uma estrutura onde a polícia, os investigadores, os presidentes e governadores estão convenientemente ausentes. Fala-se na política partidária (graças a um referendo a respeito da pena de morte), porém movida por representantes invisíveis, exceto pela carismática líder da extrema-direita francesa, Odile Duval (Fleur Greffier). De fato, o título original, em francês, significa tanto “Eu sou Karl” quanto “Eu sigo Karl” - uma ambiguidade benéfica aos tempos de redes sociais e notícias falsas, exploradas com astúcia pela Re/Generação. Resta a impressão de que a obra progressista dialogará sobretudo espectadores já propensos a escutá-la. De qualquer modo, haveria maneiras plasticamente instigantes e criativas de discutir estes exatos temas - algo que o cinema de gênero tem feito muito bem. Schwochow prefere criar um universo referencial e descritivo.

Esteticamente, o resultado demonstra a competência discreta tão apreciada pelas produções Netflix: as sequências revelam a produção cuidadosa, a fotografia de belas cores e texturas, com a câmera seguindo a protagonista em profundidade de fundo limitada (o fundo desfocado) sempre que possível, unindo Berlim, Paris e Praga numa plasticidade indissociável, pasteurizada. Embora discuta temas controversos, o diretor o faz por meio de uma estética consensual. Luna Wedler constrói de modo eficaz a gradação da adolescente cooptada pelos neonazistas, mesmo que exagere em sequências onde soa mal dirigida (a reação dentro do hospital, o primeiro encontro com Karl). Jannis Niewöhner, por sua vez, faz da liderança uma forma de sedução sexual e paterna. Talvez Maxi se envolva com rapidez excessiva nas lideranças do grupo, e a facilidade com que o atentado a bomba é esquecido pela opinião pública parece inverossímil. Ora, este não é o foco da obra, que prefere entregar a garota ao grupo responsável pela morte de sua família, provando que até um indivíduo diretamente prejudicado pela política do ódio pode ser conquistado por ele - o caso de tantos pobres de extrema-direita. Mais do que personagens detalhados por sua subjetividade, Maxi, Karl, Yusuf e Alex representam arquétipos da menina seduzida pela violência, do nazismo, do imigrante ilegal e da esquerda. O final aberto e a ocultação de um conflito prometido desde o início rompem com a previsibilidade, servindo de convite à reflexão. 

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.