terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Da Covid ao sono: as virtudes do óleo de Cannabis, Ruth Aquino, O Globo

 Livrei-me de vinte anos de Rivotril ao tomar toda noite, antes de dormir, seis gotas do óleo de um fitoterápico, a Cannabis. Troquei, portanto, um remédio de tarja preta por uma planta. Quando comecei com o Rivotril em 2001, não foi por insônia, porque dormia bem. Mas por uma crise de coluna lombar. O comprimidinho rosa de 0,5 mg me fazia acordar sem dor. Viciei-me. Consegui, em plena pandemia, me livrar desse vício. O meu barato agora é encostar a cabeça no travesseiro e cair no sono sem indutor artificial.

Durmo melhor, acordo melhor e voltei a ter o que batizei de “sono ativo”. Passei a sonhar de novo e a me lembrar de meus sonhos. Com o Rivotril, não sonhava mais ou não lembrava. Sou grata portanto ao óleo e à cannabis sativa, que podemos chamar, para horror dos obscurantistas, de maconha medicinal. É isso que ela é. Um remédio natural. Que ajuda comprovadamente a prevenir e amenizar sintomas de síndromes e enfermidades. Epilepsia, autismo, insônia, Alzheimer, Parkinson, endometriose, fibromialgia, dores, ansiedade, depressão.

Meu óleo é 'full spectrum' e diluído a 1%. Traduzindo: contém CBD, THC e todos os outros canabinoides em dose mínima. O restante que compõe esse óleo é de TCM, triglicerídeos de cadeia média – um óleo de coco melhorado. Produzido por uma associação legal no Brasil, sem burocracia de importação, sem preço abusivo, testado em laboratório, com receita médica. Só uso à noite. O óleo não é concentrado porque não preciso.

Agora, já sabemos que até na prevenção da Covid a Cannabis pode ser benéfica. Ontem, foi divulgado um estudo mostrando que compostos da cannabis podem dificultar ação do coronavírus. A pesquisa veio do Oregon, nos Estados Unidos, e foi publicada no Journal of Natural Products. Cientistas descobriram que dois ácidos canabinoides são capazes de se ligar à proteína Spike do coronavírus e assim impedir a infecção de nossas células. Não é urgente aprofundar esse estudo?

Se você acompanha o noticiário médico e científico, já deve ter reparado a quantidade de reportagens recentes sobre as virtudes da Cannabis. Filhos estão medicando pais que começam a perder a memória. Pais estão medicando filhos com convulsões. Os relatos familiares de melhora são emocionantes. O general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, fez um apelo dramático pela regularização da cannabis medicinal em 2019. Sua filha, Adriana, tem há 14 anos uma doença rara, espondilite anquilosante, com dores incapacitantes nos ossos e articulações. O general sofre de esclerose lateral amiotrófica, ELA. Ele acha “uma hipocrisia social” o tabu que cerca o assunto.

Médicos que nunca receitaram canabinoides antes acabam de comprovar benefícios até no tratamento da obesidade e na perda de peso. A Cannabis atua no hormônio que controla apetite e saciedade. Existe a percepção crescente de que as substâncias da planta agem no equilíbrio do organismo. Atuam em nossa homeostase, palavra originada do grego. Homeo para igual. Stasis para estático. Precisamos de homeostase. Não precisamos de histéricos negacionistas que chegaram até a advogar o fechamento da Anvisa, quando a associação aprovou produtos de Cannabis.

Já são oito os medicamentos à base de Cannabis aprovados para importação no Brasil. Esse mercado rendeu R$ 21,8 milhões no primeiro semestre do ano passado. Há 2 mil médicos autorizados a prescrever as medicações. Cerca de 40 associações regularizadas. Trinta e quatro mil brasileiros estão autorizados pela Anvisa a importar esses remédios. É um universo muito pequeno diante das necessidades. E elitista, porque o produto importado é muito caro. Tudo isso por causa da obtusa legislação brasileira.

“O problema com a pesquisa e uso dos óleos de Canabis reside no preconceito, filho da ignorância. Criam fantasias para substituir conhecimento”, disse o psicanalista Luiz Alberto Py. “Há milênios a humanidade vem usando as plantas como fonte de medicamentos para a saúde. Remédios para o coração, rins, pulmões, controladores de pressão arterial, antidepressivos etc. Mesmo o curare, veneno paralisante, tem importante aplicação médica. Laboratórios extraem das plantas os princípios ativos nas doses adequadas e oferecem aos médicos para serem usados em tratamentos e curas. Porém, quando se trata da Cannabis, surge uma reação tola gerada pela ignorância e pela paranoia e explorada politicamente”.

Depois de seis anos, o projeto de lei da maconha medicinal, que viabiliza o cultivo da planta, segue parado na Câmara. Melhor que ninguém coloque em votação mesmo, enquanto os terraplanistas antivacina estiverem no Poder. Quem se recusa a respeitar a Ciência e a ver benefícios na vacinação contra Covid vai sempre associar a Cannabis medicinal a viciados, a tráfico de drogas e ao crime organizado. É um outro tipo de gente. Tipo Osmar Terra, ex-ministro da Cidadania, apelidado de Osmar Trevas.

“Ao contrário do Brasil, o mundo inteiro está regulamentando”, disse o pediatra Daniel Becker. “O CBD e o THC, além dos terpenos e das várias substâncias que a planta contém, são um campo de pesquisa maravilhoso que está recebendo bilhões de dólares em investimento. Tem start-ups sendo criadas para comercializar a Cannabis em todas as suas aplicações. Um dos países que mais investem é Israel”. Na pediatria, relata Becker, condições gravíssimas que não respondem a remédios convencionais, como epilepsia, são atenuadas com a Cannabis. E o Alzheimer agressivo é reduzido. Ou seja, um medicamento que ajuda crianças e velhos.

O presidente da Acanna (Associação de acesso à Cannabis medicinal), Ígor Mello, que produz e fornece óleos com diversas microdosagens, testa todos os lotes em seu laboratório. E tem recolhido inúmeros dados e depoimentos de pacientes. Queixa-se dos entraves burocráticos, políticos e jurídicos que prejudicam as famílias brasileiras. “Por que um medicamento que já demonstrou tanta grandeza terapêutica continua a ter seus estudos represados no Brasil? Por que travam nossa chance de melhorar a qualidade de vida? Por que o paciente precisa testar morfina antes de pedir autorização para usar Cannabis? Por que importar a um custo altíssimo? Por que fazer um paciente se sentir criminoso, para depois recorrer à Justiça? Por que ainda é preciso pedir um habeas corpus preventivo para cultivar a Cannabis e medicar seu filho ou seus pais?”

Só tem uma explicação. É maldade.

Molière faz 400 anos e é celebrado com clássico que satiriza patriarcado, em SP, FSP

 Marina Lourenço

SÃO PAULO

Não é raro ver charlatões, fanáticos religiosos, fanfarrões ou burgueses gananciosos nas peças de Molière. Pelo contrário. Canonizado como o pai da comédia moderna, o dramaturgo, lembrado pelos 400 anos de seu nascimento no último sábado, é justamente conhecido por satirizar os valores, costumes e figurões de sua época.

Vez ou outra, porém, seu humor satírico não era bem recebido por parte do público, que decidia, então, ameaçar, censurar, ou perseguir o autor. Um desses casos é "Escola de Mulheres", que gerou muito burburinho —e uma enxurrada de críticas ao francês— na cena cultural parisiense e levou Molière a escrever como resposta "A Crítica à Escola de Mulheres".

Repaginada sob lentes contemporâneas, "Escola de Mulheres" chega agora aos palcos paulistas do teatro Aliança Francesa, sob a direção e tradução de Clara Carvalho, em celebração do quadricentenário do dramaturgo.

Ares feministas esculpem a versão da carioca, nome ilustre do Grupo Tapa, e põem ênfase nas cutucadas que a história faz a padrões patriarcais. Com as famosas rimas do texto original —mas sem seus versos alexandrinos—, a montagem ainda exemplifica bem a linha tragicômica de Molière.

O enredo francês se passa num só dia e num único espaço. Aterrorizado pela ideia da traição conjugal, depois de anos de gandaia se divertindo com mulheres casadas, o solteirão burguês Arnolfo, papel de Brian Penido Ross, quer se casar com o que considera ser a mulher ideal, burra e ao seu dispor.

Para isso, ele escolhe a jovem Inês, papel de Gabriela Westphal, que vem escondendo de tudo e de todos desde quando era pequena. Tudo para garantir a ignorância da futura mulher.

Criada só sob o cuidado dos servos atrapalhados do protagonista, a garota, porém, se apaixona por um rapaz. Frustrado, Arnolfo traça uma série de planos para se safar dos temidos chifres, enquanto Inês começa uma jornada de reflexões sobre amor, liberdade e conhecimento.

"Nas peças de Molière, as personagens femininas são muito inteligentes e sagazes. Elas sempre estão em situações desfavoráveis, que conseguem reverter. É por isso que sempre enxerguei um protofeminismo nos seus textos", diz Carvalho. "Apesar de o protagonista [de ‘Escola de Mulheres’] ser esse macho tóxico, quem realmente se desenvolve nessa história é Inês."

Durante os quatro meses de ensaios virtuais e dois de presenciais, Carvalho conta que fez questão de reforçar o "tom emancipatório" proposto pelo enredo original. Isso porque ela diz que já viu releituras machistas da peça.

Como exemplo, a diretora lembra um espetáculo de Domingos Oliveira, de 1985. A peça, que tinha Jorge Dória no elenco, dispensava, segundo ela, uma visão crítica das hipocrisias patriarcais, servindo como endosso a pensamentos machistas como os de Arnolfo. A obra destilava piadas que não iam além de gargalhadas vazias de criticidade.

Mas os tempos são outros. O zeitgeist de 2022 tem novos contornos nas discussões de gênero e "Molière, provavelmente, trabalharia nelas, com muito humor e profundidade", defende Carvalho.

É claro que não é possível definir como seriam as obras do dramaturgo no mundo de hoje, mas é fato que o francês tinha um farto apreço por debates filosóficos e não hesitava em provocar figuras poderosas quando achava necessário.

Rir das hipocrisias morais, de hábitos exagerados e de costumes tradicionais é uma das maiores marcas do artista, que à época vivia entre admirações —vindas desde pequenos artistas até nomes como Luís 14, o rei Sol— e represálias —muitas vezes, acompanhadas de ameaças à vida e à carreira do artista.

Além de "Escola de Mulheres", Molière é conhecido por "Tartufo", de 1664, "O Avarento", de 1668, "O Burguês Ridículo", de 1670, e "O Doente Imaginário", de 1673.

"Os clássicos só viram clássicos porque conseguem se comunicar com plateias diferentes ao longo dos séculos", diz Ross, também do Grupo Tapa. "As peças que não conseguem fazer isso ficam esquecidas. Molière se comunica com as pessoas de hoje, com peças muito bem escritas."

ESCOLA DE MULHERES

  • Quando De 15 de janeiro a 27 de março (quinta a sábado, às 20h; e domingo, às 18h)
  • Onde Teatro Aliança Francesa (Rua General Jardim 182 – Vila Buarque; São Paulo)
  • Preço R$60 (Inteira) e R$ 30 (Meia)
  • Classificação 12 Anos
  • Elenco Ariel Cannal, Brian Penido Ross, Felipe Souza, Fulvio Filho, Gabriela Westphal, Leandro Tadeu, Luiz Luccas, Rogério Pércore e Vera Espuny
  • Direção Clara Carvalho
  • Link: https://site.bileto.sympla.com.br/teatroaliancafrancesa/