sábado, 25 de dezembro de 2021

Cidade criada por Ford no meio da Amazônia vai ganhar museu de ciência, OESP

 Emílio Sant’anna, O Estado de S.Paulo

25 de dezembro de 2021 | 05h00

Aos 18 anos, Diogo Noronha está no "centro do mundo". O segundo dos cinco filhos de um minerador e de uma dona de casa não tem dúvidas que o futuro virá da floresta que ele se acostumou a ver desde que nasceu. Aluno do 1º ano de Direito, o jovem faz parte de um ambicioso projeto no meio da Amazônia. O rapaz foi escolhido, ainda no ensino médio, para ser um dos embaixadores do Museu de Ciência da Amazônia (MuCA) que será aberto em abril de 2022.

Instalado em Belterra, cidade de 20 mil habitantes a 1,2 mil quilômetros de Belém e no sudoeste do Pará, o museu é o primeiro passo para mudar a rota do lugar que, em 1934, Henry Ford escolheu para extrair borracha para os pneus dos carros da sua fábrica. O projeto está na antiga Vila Americana. Planejada de forma idêntica a uma cidade dos Estados Unidos do início do século 20, a vila tem casas padronizadas, com varandas e amplos jardins na frente. 

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Belterra
Casa originalmente erguida para Ford será espaço de culinária local; igreja, centro de memória e deques também integram o complexo  Foto: CARLOS BANDEIRA / ESTADÃO

Ali moravam os funcionários da empresa nos dez anos em que a empreitada (a segunda no Brasil do criador do Ford-T) durou na floresta. Na época, a instalação da vila atraiu mais moradores. "Minha avó veio do Ceará porque na época Belterra ficou famosa. Um dos melhores hospitais do Brasil estava aqui com médicos e equipamentos que vieram dos EUA", conta Diogo.

A instalação do MuCA prevê reforma de casas, como a construída para o fundador da Ford (que nunca esteve na cidade) e que deverá abrigar um centro de cultura alimentar tapajônica. O projeto de restauro é do Studio Arthur Casas. "A casa do Ford vai virar um restaurante e um centro de cultura gastronômica da Cordon Bleu (rede internacional de ensino culinário)", diz o coordenador geral do MuCA, Luiz Felipe Moura. 

MUCA
Casa da Vila Americana de Belterra, que segue o modelo proposto por Henry Ford para a cidade e inspirado nos Estados Unidos do início do século 20  Foto: CARLOS BANDEIRA / ESTADÃO

A estrutura que será instalada na vila inclui deques, bar, restaurante e área de convivência às margens do rio Tapajós. Eles se somarão ao centro de memória, igreja e outros pontos conservados no local. 

Arthur Casas também projetou o interior do museu. "Vi potencial turístico muito grande ali", diz Casas. "Queremos mostrar que a floresta em pé vale muito mais do que a soja."

MUCA
A Igreja Matriz de Belterra, no Pará, que será integrada ao projeto do centro  Foto: CARLOS BANDEIRA / ESTADAO

Impulso

A 20 quilômetros de Santarém, por onde a soja é escoada pelo porto, e de Alter do Chão, conhecido destino turístico da região Norte, Belterra é uma fronteira agrícola. "Grande parte dos trabalhadores rurais é informal", afirma Diogo, que diz ver no museu um impulso para a indústria do turismo. "Quem vem a Alter do Chão costuma vir de barco para cá. Para mim, Belterra tem ainda mais atrativos, tem uma biodiversidade maior e a Floresta Nacional (Flona, área protegida federal) do Tapajós." 

Em novembro, o coordenador geral do museu foi a Glasgow, na Cúpula do Clima, apresentar os projetos do MuCA numa área sob concessão gerenciada pela Ama Brasil, um organização da sociedade civil de interesse público (Oscip), em parceria com o Ministério do Meio Ambiente e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). 

Além de abrigar coleções da fauna e flora amazônica, o MuCA terá participação da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e outros objetivos, como estudar animais, plantas e microrganismos. "Será o primeiro laboratório avançado da selva", afirma Moura.

Bioeconomia

Valorizar as cadeias de bioeconomia e gerar renda para a população local também estão no foco. Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontam que o setor movimenta cerca de € 2 trilhões no mundo e gera mais de 22 milhões de empregos. 

Até 2030, diz a entidade, a bioeconomia deve responder por 2,7% do Produto Interno Bruto (PIB) de seus países membros. Essa taxa pode ser maior conforme a biodiversidade local. No Brasil há mais de 100 mil espécies animais e 45 mil plantas identificadas. 

O salário de Diogo, de cerca de R$ 1,8 mil, vem do Pagamento por Serviço Ambiental (PSA), mecanismo de remuneração de produtores rurais que mantêm a floresta em pé. 

Um projeto piloto foi montado entre o MuCA e o governo federal para a produção de cacau, cúrcuma e gengibre na área da Flona do Tapajós. Em fase experimental, é o passo inicial para alavancar a produção com carbono zero e que prevê ainda desenvolver biocosméticos e fármacos.

A certificação de produtos e a ponte com a indústria serão outras atribuições do museu. Diretora para a América Latina da Biossance, empresa de biotecnologia e cosméticos, parceira do projeto, Camila Farnezi diz que o potencial da floresta pode ser aproveitado sem a extração em escala, com a reprodução de moléculas bioidênticas de plantas locais. 

"É daqui que sairão respostas para problemas como as doenças que podem surgir e que já existem. Como estaremos preparados se não começarmos a fazer isso agora e manter a floresta em pé?", destaca Diogo. "A Amazônia é o centro do mundo."

Jaime Spitzcovsky Telefonemas do fim do império soviético, FSP

 Um telefonema de Moscou interrompeu, em 1991, as celebrações de Natal da família Bush, em Camp David. Do outro lado da linha, em busca do colega norte-americano, estava o presidente soviético, Mikhail Gorbatchov, menos de duas horas antes de renunciar, deixar o Kremlin e sacramentar o fim da URSS, um dos personagens centrais do século 20.

Bush agradeceu a deferência. Pela segunda vez, naquele mês fatídico para o império bolchevique, o presidente norte-americano era tratado com zelo por um interlocutor russo. No dia 8, havia recebido uma chamada de Boris Ieltsin, para saber, antes mesmo de Gorbatchov, da desintegração soviética.

O líder soviético Mikhail Gorbatchov, faz ligação do Mobira Cityman, primeiro telefone celular da Nokia. (Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O líder soviético Mikhail Gorbatchov


"Hoje, um evento muito importante ocorreu em nosso país, e quero eu mesmo lhe informar, antes que saiba pela imprensa", disse o líder russo. No começo da conversa, o relógio do Salão Oval da Casa Branca apontava 13h08. Era um domingo.

Ieltsin estava ladeado por líderes da Belarus e da Ucrânia, então unidades, assim como a Rússia, da URSS. O país multiétnico era formado por 15 repúblicas; na prática, províncias controladas por um Kremlin centralizador e ditatorial.

Nos anos 1980, evidenciou-se o colapso do sistema. Gorbatchov tentou salvá-lo, com reformas responsáveis por inédita abertura política e por trágica crise econômica, a maior desde a Segunda Guerra Mundial.

Fortalecidos com promessas de "terapias de choque" na economia e com discursos separatistas, os líderes russo, belarusso e ucraniano se reuniram em Belarus e anunciaram, a 8 de dezembro de 1991, o fim da URSS. Passariam a não mais reconhecer o poder central.

"Constatamos razões objetivas para que a formação de Estados independentes se transformasse numa realidade", ponderou Ieltsin no diálogo com Bush. Depois de detalhar a iniciativa, o líder russo observou: "Preciso lhe dizer confidencialmente, o presidente Gorbatchov não sabe desses resultados".

Segundo a transcrição oficial da conversa, disponível na web, Ieltsin emendou, sobre Gorbatchov: "Certamente vamos enviar-lhe de imediato o texto do nosso acordo, pois ele seguramente terá de tomar decisões em seu nível".

Antevia-se, claro, a renúncia gorbatchovista, anunciada a 25 de dezembro de 1991. O Prêmio Nobel da Paz de 1990, adulado no Ocidente sobretudo por esforços para demolir a Guerra Fria, sofria incontornável derrota política.

Nos diálogos de dezembro com os EUA, Gorbatchov e Ieltsin convergiram em dois pontos. Esforçaram-se para desfazer temores sobre controle do arsenal nuclear e enfatizaram desejos de preservar e aprofundar as relações entre Washington e Moscou.

O caso de Ieltsin foi ainda mais emblemático. Antecipar a informação do fim da URSS a Bush embutia, claramente, a oferta de estreitamento de laços entre o Kremlin e a Casa Branca, com o desejo russo de receber urgente apoio norte-americano para a recuperação econômica.

A leitura norte-americana do momento histórico foi distinta. Prevaleceu, entre democratas e republicanos, a desconfiança em relação a líderes russos com novas propostas, mas oriundos do sistema soviético.

Em Washington, a visão correspondia a contribuir para uma "Rússia estável, mas enfraquecida". Em Moscou, desde então, fortaleceu-se a ideia de o flerte com os EUA ter sido um equívoco colossal.

Percepções diferentes de um momento histórico ocorrido três décadas atrás alimentam até hoje a rivalidade russo-americana. Já está na hora, para o bem da estabilidade global, de a Casa Branca e o Kremlin se entenderem, definitivamente, sobre o significado dos estertores do século 20.


Lula x Moro, a batalha das narrativas, Hélio Schwartsman, FSP

 As prováveis candidaturas de Lula e Sergio Moro deverão levar ao eleitor uma batalha de narrativas em torno da Lava Jato. Na versão do petista, a operação não passou de uma manobra arquitetada por Moro e seus sequazes para encarcerá-lo injustamente e retirá-lo do pleito de 2018, que venceria fácil. Já para o ex-juiz, a Lava Jato era um movimento virtuoso, que estava conseguindo julgar e prender políticos e empresários corruptos, que havia séculos assaltavam a coisa pública. Lula era um desses corruptos. A um dado momento, o sistema conseguiu articular uma reação, pondo fim à operação, livrando condenados e tentando desmoralizar seus campeões, entre os quais o próprio Moro.

Montagem de fotos com Lula e Sergio Moro
Montagem de fotos com Lula e Sergio Moro - Divulgação e Agência Senado

Qual versão preponderará? Fácil, a de quem estiver à frente nas pesquisas. Gostamos de imaginar nossas mentes como máquinas de analisar evidências e extrair conclusões, mas não é bem assim que as coisas funcionam. Especialmente quando estamos em modo político, costumamos usar nossas preferências para "ajeitar" as evidências, reforçando as conclusões a que já havíamos chegado antes mesmo de analisar os fatos.

O psicólogo Drew Westen estudou como isso ocorre. Meteu militantes em máquinas de ressonância magnética e monitorou suas reações enquanto assistiam a cenas de seus líderes favoritos caindo em contradição. Westen conseguiu detalhar os mecanismos que a mente utiliza para apaziguar o conflito e ainda descobriu que ela pode extrair sensações positivas desse exercício. Entre os circuitos ativados estavam os sistemas de recompensa do cérebro.

As implicações desse achado não são triviais. O militante não apenas tem dificuldade para processar argumentos com os quais não concorda (o que já era mais ou menos esperado) como sente prazer ao ignorá-los. O surpreendente é que a democracia, um sistema que tinha como premissa a existência de um eleitor racional e informado, continue funcionando.