sábado, 21 de novembro de 2020

Do fundo da fossa em que estamos, surgem 'Babenco' e 'O que Há em Ti', Mario Sergio Conti, FSP

 Só de ouvir falar em cinema poético o espectador boceja: lá vêm imagens vagas e ensimesmadas que o sol duro da realidade logo derrete. Ao ouvir falar de documentário, ele boceja por outro motivo: lá vem o tedioso lero-lero de imagens de arquivo e depoimentos de sabichões.

O cinema poético é hoje desovado pela linha de montagem dos filmes-para-festival. Ele naufragou numa sensibilidade falsamente refinada, não reverbera na consciência coletiva. Já os documentários adotaram a petulância do pior jornalismo, o que aprisiona o concreto numa fórmula exausta.

Ilustração de Bruna Barros para Mario Sérgio Conti de 21.nov.2020
Bruna Barros/Folhapress

Mas um dia houve a poesia límpida de “La Jetée”, de Chris Marker, e a realidade angustiada de “Noite e Neblina”, de Alain Resnais. E agora, do fundo da fossa em que estamos, surgem “Babenco” e “O que Há em Ti”.

Dirigido por Bárbara Paz, “Babenco” é mais que uma cinebiografia do cineasta. Ela não se preocupa em ser didática. Reproduz cenas dos filmes dele e não os nomeia. Não segue a ordem cronológica nem identifica as pessoas que falam dele. Deixa tudo meio solto.

Contudo, o filme segue com firmeza o fio de Ariadne e percorre seu labirinto. Recusa-se a cultuar o diretor e transformá-lo numa celebridade. Está longe de ser só uma carícia póstuma da diretora, sua última amante. Mas não o situa na história cultural —o que lhe limita o alcance. É poesia.

Seu protagonista é um narrador arredio e multiforme. Jovem, cabeludo e robusto, discorre sobre o passado e o presente. Velho, careca e com o pé na cova, sonha o futuro. Oscila entre deixar-se morrer e controlar o post mortem. Cantarola “Singin’ in the Rain” aqui e agora, em lugar nenhum e para sempre.

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Não é preciso se lembrar de “Pixote”, “O Beijo da Mulher Aranha” ou “Brincando nos Campos do Senhor”. As imagens deles adquirem um valor próprio: o de desnudar o homem sem cidadania, o judeu errante, o artista desenraizado.

Desnudar no sentido literal: expor a verdade nua e irredutível do corpo. A câmera de Bárbara Paz, cujo ofício de atriz é trabalhar com o corpo, percorre o corpo frágil de Babenco. É sem morbidez que descobre a sua beleza à beira da morte. Sua poesia vence o tempo.

Ela compôs uma elegia, um canto fúnebre que quase pega seu amante pelos ombros, olha-o nos olhos e diz: você acabou. “Babenco”, que estará nos cinemas na próxima quinta-feira, lembra que também nós, espectadores, acabaremos —e até lá é melhor viver de verdade.

“Você acabou” é o mote de “O que Há em Ti”, um cinepoema de 16 minutos de Carlos Adriano. Na noite de 16 de março, um negro interpelou o presidente na frente do Alvorada e lhe atirou na fuça essas duas palavras. Bolsonaro se fez de desentendido e o homem foi adiante: “Você não é presidente mais”.

Ele disse o que disse e desapareceu. Não se sabe o seu nome, ocupação e motivos. Anjo vingador, será que veio do futuro para dar a boa nova do fim de Bolsonaro? O que se sabe dele é o que falou naquela noite: “Venho do Haiti, sou brasileiro”. Daí o título “O que Há em Ti”, corruptela do nome da nação antilhana.

Carlos Adriano repete a cena da sua interpelação várias vezes, todas elas poéticas. Faz closes do seu gesto com as mãos, põe a sequência em branco e preto, divide a tela, granula as imagens e as coloca em negativo até torná-las um mantra visual.

O mantra musical é o verso “ninguém é cidadão”, da canção de Gil e Caetano que ficou cada vez mais atual. O título de Carlos Adriano aponta então para o Brasil: o Haiti é aqui. Lá e cá, ninguém é cidadão, outro refrão do filme —que pode ser visto até amanhã no site forumdoc.org.br.

Subitamente, a tela fica preta. Um texto relata os dois massacres perpetrados pelo Exército brasileiro durante sua ocupação do Haiti, ao longo de governos do PT.

A pancadaria foi tanta que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos pediu à ONU que destituísse o comando das tropas, exercido pelos generais Augusto Heleno e José Elito Carvalho. O filme lista o nome dos milicos que barbarizaram no Haiti e foram postos por Bolsonaro no Planalto.

Acabou? Não. O documentário mostra o presidente no auge da sua pregação golpista, quando defendeu que o Congresso e o Supremo tinham de ser fechados na marra. Numa manifestação, ele urra: “Acabou, porra!”.

Aí o “Ti” do título se volta contra quem o vê: diante do “Acabou, porra!”, o que há em ti, espectador? O filme não cita Franz Fanon, mas o pensador e militante argelino estava certo quando disse que “todo espectador é um covarde ou um traidor”?

Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Brasil vai ter vacina em 2021?, Fernando Reinach, O Estado de S. Paulo

 Fernando Reinach, O Estado de S. Paulo

20 de novembro de 2020 | 14h00

Nas próximas semanas vamos saber se a estratégia escolhida pelo governo do Estado de São Paulo e pelo Governo Federal serão capazes de garantir que todos os brasileiros serão vacinados contra o SARS-CoV-2 em 2021. O Brasil fez suas escolhas em meados de 2020 e as primeiras consequências estão ficando aparentes agora que o mundo já possui duas vacinas com eficácia da ordem de 95%.

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O resultado é que o Brasil possui hoje somente dois acordos relacionados ao suprimento de vacinas. Um com uma pequena empresa chinesa, a Sinovac, e outro com a Universidade de Oxford/Astra Zeneca. Foto: Andreas Gebert/Reuters

A grande maioria dos países adotou uma estratégia muito diferente da brasileira. Cada país fez acordos com um número grande de empresas que estavam desenvolvendo vacinas no início da pandemia. Esses acordos envolviam a compra antecipada de número grande de doses da vacina caso seu desenvolvimento tivesse sucesso. Em muitos casos, uma parte das doses foi paga antes dos resultados da fase 3, independentemente dos resultados finais. Ou seja, pagaram para ajudar no desenvolvimento, e dividiram parte dos riscos com o desenvolvedor. Mas o que caracteriza a estratégia desses países é que eles apostaram em diversos fornecedores, de 3 a 5, e compraram adiantado uma quantidade de doses maior do que seria necessário para vacinar toda sua população, sabendo que provavelmente algumas das empresas não teriam sucesso ou suas vacinas teriam uma baixa eficácia.

Dessa maneira, se somente uma ou duas das apostas funcionasse, mesmo assim teriam vacinas suficientes para imunizar rapidamente toda a população. Uma segunda característica desses acordos é que não envolviam o governo na construção de fábricas ou na execução dos testes da fase 3. Ou seja, eles colocaram os ovos em diversas cestas e deixaram para as empresas decidir como testar e como produzir suas vacinas. Tanto os países europeus quanto os asiáticos e da América do Norte têm tradição de comprar vacinas no mercado internacional, se preocupando só com o preço e com a eficácia do produto.

No Brasil a estratégia adotada foi radicalmente diferente. Ela foi ditada pela tradição nacionalista que rege a Fiocruz (um órgão do governo federal que produz vacinas) e o Butantã (órgão do governo paulista que também produz vacinas). Essas duas instituições são guiadas pela ideia de que vacinas são um insumo de segurança nacional, estratégicas para a segurança e a independência nacional, que devem ser produzidas no Brasil e nunca importadas. Por trás desse conceito, está uma visão nacionalista de independência tecnológica, a mesma que dominou a indústria da informática na época da ditadura (lembram quando não podíamos importar computadores e vivíamos sob a maldita Lei da Informática?).

Nessa visão, o importante é que o Brasil produza localmente suas vacinas em fábricas próprias, dominando totalmente a tecnologia. Essa visão estranhamente compartilhada pelos militares e por militantes de esquerda do velho partido comunista, tende a privilegiar acordos em que a transferência de tecnologia seja mandatória, a produção seja local, e a tecnologia seja dominada pela Fiocruz e Butantã. E foi essa visão que foi recomendada e adotada tanto a nível federal quanto estadual (Jair Bolsonaro/Fiocruz e João Doria/Butantã).

O resultado é que o Brasil possui hoje só dois acordos relacionados ao suprimento de vacinas. Um com uma pequena empresa chinesa, a Sinovac, e outro com a Universidade de Oxford/Astra Zeneca. Em ambos os acordos, nossos governos pagaram por doses da vacina caso seja aprovada, mas exigiram (ou aceitaram) a responsabilidade financiar e executar os estudos de fase 3 no Brasil. Além disso se comprometeram a construir as fábricas das vacinas necessárias para garantir a vacinação dos brasileiros. Para executar localmente os estudos de fase 3 o Brasil já gastou uma pequena fortuna e para construir as fábricas se comprometeu com outra pequena fortuna. Ou seja, o Brasil só apostou em vacinas em que os produtores aceitaram esse tipo de acordo (veja meu artigo de 12 de junho: Um negócio da China).

Agora chegou a hora de descobrirmos se essa estratégia foi correta. Ela ainda pode dar certo, as vacinas de Oxford e da Sinovac talvez consigam terminar rapidamente os estudos de fase 3, talvez esses estudos mostrem que ao menos uma dessas vacinas tenha eficácia maior que 90%. Talvez o Brasil consiga construir rapidamente suas fábricas e usar as vacinas já pagas e produzidas no exterior para iniciar a vacinação enquanto as fábricas não ficam prontas (foi comemorada nessa quinta, 19, a chegada de 120 mil doses que não são suficientes para vacinar sequer um grande estádio de futebol). Só o tempo dirá.

Por outro lado, já ficou claro que o Brasil não terá acesso imediato às duas vacinas que são extremamente eficazes (Pfizer e Moderna), em grande quantidade, no curto prazo. A Pfizer gentilmente iniciou conversas com o governo brasileiro, mas o fato é que grande parte de sua produção em 2020 e 2021 já esta vendida, e se ficarmos com algo, será uma migalha, um gesto de consideração. As doses que serão produzidas pela Moderna também já estão vendidas.

Ao contrário dos outros países, temos só uma cesta com dois ovos e para eles se transformarem em doses de vacina vamos depender de um desses imunizantes ser tão eficaz quanto os dois que já terminaram a fase 3. Depois, teremos que depender da construção de duas fábricas financiadas em parte pelo governo, em parte por doações privadas, no ritmo que caracteriza o setor público brasileiro.

Há ainda a possibilidade de as vacinas em que apostamos terem eficácias menores que 90%. Aí o problema será ainda mais complexo. Vale a pena produzir e vacinar a população com uma vacina de segunda categoria?

O fato é que também no campo das vacinas o viés ideológico e a incompetência governamental talvez nos custem caro. Parece que continuamos no nosso caminho, seguindo a estratégia escolhida pelo Brasil: a Imunidade de Rebanho por Incompetência (IRPI). Chegaremos lá rapidamente se não tivermos vacinas suficientes em 2021 e esse aumento de casos que vem sendo observado realmente se caracterizar como uma segunda onda.

* BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS


Marcos Mendes Aritmética desagradável,, FSP

A dívida pública está crescendo aceleradamente. Mas permanece o discurso de que o teto de gastos seria excessivamente duro, com pressão para criação de novos gastos, sem racionalizar os já existentes.

Há propostas para, simultaneamente, flexibilizar o teto, para gastar mais agora, e fazer ajuste fiscal depois, para controlar dívida. Um exercício de projeção da dívida ajuda a avaliar a factibilidade dessas propostas.

Uso dados de PIB e inflação do relatório Focus, suponho que o BNDES repagará R$ 100 bilhões ao Tesouro em 2021, que os juros reais sobre a dívida bruta subirão pouco nos anos à frente (de 2,85% hoje para 3,5% a partir de 2022) e que a queda na receita do Tesouro decorrente da pandemia, de 1,5 ponto percentual do PIB, se recuperará em dois anos.

Nesse cenário otimista, se respeitarmos a regra do teto até 2026 e, a partir de 2027, o gasto anual passar a crescer 1% acima da inflação, chegaremos a 2034 com uma dívida de 109% do PIB. Nos anos seguintes, ela decresceria lentamente.

Logo, a regra do teto não é excessiva. Mesmo com seu cumprimento, a dívida ficaria muitos anos em nível alto, antes de começar a cair. Qualquer pequeno choque negativo nos juros ou no
crescimento do PIB geraria o risco de descontrole.

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Precisamos de esforço fiscal maior que o simples respeito ao teto.

Existe a proposta de afrouxar o teto e compensar o gasto adicional com maior carga tributária. Contudo, a aritmética mostra que o aumento de impostos necessário para manter a dívida
sob controle seria brutal.

Suponha que o teto de gastos passe a crescer 1,5% acima da inflação (ainda abaixo do crescimento do PIB). Para atingir uma meta pouco ambiciosa, de uma dívida de 90% do PIB em 2031, seria preciso um aumento de carga tributária, já em 2021, de 4,7 pontos percentuais do PIB: R$ 357 bilhões a mais de receita no ano que vem!

A longo prazo, com o aumento da receita decorrente da recuperação econômica, a carga se estabilizaria em patamar 3,4 pontos percentuais acima do nível pré-crise.

A simulação ainda é otimista, porque não prevê a redução do crescimento econômico que decorreria de aumento tão intenso da carga tributária. Enxugaríamos gelo: a relação dívida/PIB cresceria pelo baixo crescimento do denominador.

Impossível gastar mais e ajustar só pelo lado da receita.

Uma proposta intermediária seria elevar a carga em “apenas” dois pontos percentuais. do PIB a partir de 2022 e deixar o gasto crescer 1,5% acima da inflação somente por dois anos, para desafogar o momento pós-pandemia. Nos anos seguintes, se faria um ajuste reduzindo gastos.

O problema é que, para atingir a meta de dívida de 90% do PIB em 2031, essa redução posterior no gasto seria muito mais dura que a atual regra do teto: quatro anos seguidos de queda real de 1,7%!

Parte do aumento da carga tributária pode vir da redução dos benefícios tributários. Como eles geram distorções que travam o crescimento econômico e beneficiam segmentos de alta renda, a sua redução ajudaria tanto a conter a dívida quanto a acelerar o PIB, além de reduzir desigualdade. É uma agenda
que precisa ser enfrentada.

Mas não se pode colocar o carro na frente dos bois. Já há quem proponha aumentar o teto de gastos pelo valor dos benefícios tributários extintos. Seria um erro.

Primeiro, porque se manteria a atual dinâmica arriscada da dívida: todo o ganho de receita viraria mais gasto.

Segundo, porque não é possível calcular com precisão qual o ganho de receita gerado por uma extinção de benefício. Suponha que uma isenção de CSLL seja extinta. Como computar exatamente o aumento de arrecadação do tributo decorrente dessa medida, quando outros fatores como preços e volume de transações também afetam a arrecadação?

Fazer o cálculo por estimativa será porta aberta para pressão política por superestimação de valores. Uma regra tão incômoda como a do teto precisa ter valores calculados de forma direta,
simples e transparente.

A aritmética desagradável indica que a redução de gastos tributários deve ser feita junto com o respeito ao teto, e não como instrumento para afrouxá-lo.

Marcos Mendes

Pesquisador associado do Insper, é autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'