sábado, 9 de maio de 2020

Desigualdade e coesão social, Marcos Mendes, FSP

O Brasil é muito desigual desde o início de nossa história. Pessoas com nível de renda tão díspares vivem em mundos diferentes, dentro do mesmo país. Frequentam escolas e hospitais distintos. Não compartilham os mesmos meios de transporte e espaços públicos. Não se veem como iguais.
Desigualdade gera baixa coesão social. Sociedades pouco coesas não têm aptidão para negociar em prol do bem coletivo. Não há confiança de que o outro cumprirá a sua parte.
Falam mais alto os interesses imediatos de cada grupo social, restringindo o espaço para cada um aceitar perdas imediatas em prol da construção da prosperidade conjunta.
Prevalece o incentivo a extrair benefícios do resto da sociedade ou para ela empurrar perdas. O governo, acumulando dívidas a serem pagas pelas próximas gerações, e tributando de forma pouco transparente, é o instrumento em que se dá o jogo do mico preto.
O Estado deixa de ter como função primordial ser um prestador de serviços, como segurança jurídica, proteção dos contratos, educação e segurança. Converte-se em um transferidor de rendas, com programas que vão desde a política social para os pobres até a Bolsa Empresário, passando pela classe média da aposentadoria precoce e a classe alta da universidade gratuita e do emprego público bem remunerado.
Esses programas têm custo e, depois de três décadas de expansão do Estado, levaram a carga tributária e a dívida pública a níveis muito altos, além de prejudicar o crescimento da economia. O conflito distributivo se aguça, e renovam-se as pressões por mais subsídios e políticas sociais.
A Covid-19 nos alcançou quando já amargávamos seis anos de recessão e baixo crescimento, gerados por esse modelo autofágico.
Reagimos à crise como sociedade fraturada que somos.
Nada mais ilustrativo que o líder do governo no Congresso defendendo a preservação do “direito” a aumento de salário de servidores públicos, quase todos entre os 10% mais ricos, em um momento em que empregos e renda no setor privado estão sendo pulverizados.
Os lobistas de sempre já engataram o discurso da proteção comercial em prol da autossuficiência de produtos essenciais. Só esqueceram que por décadas aplicamos as mais altas tarifas do mundo na importação de produtos médico-hospitalares, sem que isso levasse a uma produção local diversificada e competitiva.
Por outro lado, surgem propostas inconsistentes de programas assistenciais, como a criação de renda mínima permanente para mais de 30% da população brasileira, perenizando-se o atual auxílio emergencial de R$ 600.
Ainda que o valor dessa nova bolsa fosse de R$ 200 por mês, e as concessões, limitadas à metade dos prováveis 70 milhões de beneficiários do auxílio emergencial, teríamos um gasto anual de R$ 84 bilhões por ano. Outros programas já aprovados, como linha de crédito subsidiado a pequenas empresas e expansão do Bolsa Família e do BPC (Benefício de Prestação Continuada), levam a conta para mais de R$ 100 bilhões. De onde tirar esse dinheiro?
Esse valor equivale a 40% da receita de CSLL e IRPJ em 2019. Aumento de carga tributária dessa monta, em plena crise, inviabilizaria as empresas que ainda resistem. A fórmula populista de “tribute-se o capital” não resiste à aritmética.
Não dá mais.
A recuperação pós-crise exigirá um acordo social que até agora não fomos capazes de construir. Quem sabe o fato de que a doença está matando igualmente ricos e pobres nos ajude a perceber que estamos todos no mesmo mundo?
O objetivo de médio e longo prazo deve ser a redução da pobreza e da desigualdade, de forma consistente, sem populismos, dentro da realidade fiscal. Focar a assistência social nos realmente pobres, e investir no capital humano de todos, reconvertendo o Estado em um eficiente prestador de serviços essenciais. Aumentar a produtividade da economia, derrubar protecionismos, desmontar mecanismos oportunistas de apropriação de renda.
Se não formos capazes de empreender esse redesenho do Estado, o cenário será de agravamento da pobreza, da desigualdade e da tensão social.
Marcos Mendes
Pesquisador associado do Insper, é autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'

Ok com o home office. Mas há problemas, Celso Ming, O Estado de S.Paulo

Celso Ming, O Estado de S.Paulo
08 de maio de 2020 | 19h24

O trabalho profissional executado em casa, e não no local da empresa previsto para isso, não é propriamente uma novidade neste mundo altamente conectado, mas foi uma das mais relevantes descobertas desta temporada de reclusão.
Graças à sua grande capacidade de redução de custos, veio para ficar e, mais do que isso, será cada vez mais praticado no Brasil e no mundo. Mas atenção: para ser adotado definitivamente, o home office, como o preferem chamar os anglófilos, enfrenta um punhado de problemas, especialmente no Brasil, que precisam ser previamente equacionados.
Para começar, a empresa tem de estar disposta a partilhar seus arquivos e seus sistemas de processamento, sem medo de que dados sigilosos possam ser acessados por terceiros e escapar para onde não devem. Se esse ponto não estiver bem resolvido, mais cedo ou mais tarde, a empresa corre riscos de enfrentar dores de cabeça.
Home office
O home office, antes de ser adotado amplamente, precisa resolver uma série de problemas de infraestrutura, de segurança e de cultura da empresa Foto: Sergei Ilnitsky/EFE
Outro problema é o de que nem todos os funcionários dispõem em casa de instalações adequadas para tocar seu trabalho, como escritório, por mais simples que seja, cadeira confortável e equipamentos eletrônicos em bom estado de funcionamento. 
E há a exasperante instabilidade das conexões pela internet. Nestas primeiras semanas de confinamento no Brasil, as reclamações de queda do sistema proporcionado principalmente pela Claro e pela Vivo foram recorrentes e até agora não foram satisfatoriamente atendidas. O fornecedor vende um plano de banda larga a uma velocidade de 300 megabits por segundo e entrega uma fração disso.
Em casa, os funcionários estão também muito mais sujeitos a interrupções do trabalho por fatores aleatórios. Se chove um pouco mais forte, é comum nas cidades do Brasil a queda do fornecimento de energia e, para esse caso, é preciso prover baterias ou nobreaks que podem ser acoplados imediatamente aos computadores.
E não é só por essa via que surgem imprevistos. Computadores, impressoras e equipamentos periféricos estão sempre sujeitos a defeitos, bugs e tilts. Numa empresa organizada, sempre há uma equipe de plantão para proporcionar socorro imediato. Em casa, é mais complicado. Contratempos mais simples podem ser resolvidos a distância por técnicos, por meio de aplicativos do tipo TeamViewer, mas sempre podem acontecer quebra de conexão com servidores eletrônicos ou avarias mais sérias no próprio hardware do equipamento.
O diretor executivo de tecnologia da consultoria Accenture na América Latina, Fernando Teixeira, observa que, neste momento, o home office foi implantado às pressas, sem que todos os requisitos técnicos tenham sido cumpridos. Por isso, tanto os funcionários como seus chefes devem se munir de dose especial de paciência para enfrentar imprevistos. Qualquer um pode ter filhos ou pessoas idosas na família que, a qualquer momento, podem exigir cuidados especiais que interrompem tarefas em execução. “Mas se o sistema do home office for adotado permanentemente, situações como essas pedirão solução também permanente. Não pode haver perda de qualidade no trabalho”, diz.
Teixeira observa, também, que o regime de trabalho em casa não pode se submeter às mesmas condições de controle convencional, como registro de ponto, cálculo de horas extras e atualização de banco de horas. Embora já existam aplicativos que, sem invadir a privacidade, monitorem a tela do computador e contabilizem automaticamente as horas trabalhadas, nem as empresas nem a legislação preveem as situações novas, como essa.
Para o sócio da consultoria PwC Federico Servideo, “é um pouco incongruente o trabalho remoto com controle de jornada”. Além de atualizações na legislação, ele sugere que, para não ficarem presos ao registro de ponto, empregador e empregado definam metas a serem cumpridas ao longo de um determinado período, como de um ou dois dias, semana ou mês, como acontece nos serviços contratados por empreitada. “O home office requer trabalho muito mais por resultado do que por tempo de serviço.”
Afora isso, nem todos os problemas de uma rotina podem ser resolvidos a distância. É preciso prever, também, temporadas presenciais que incluam não só reuniões de grupos com as chefias, mas também execução de determinadas tarefas também no escritório central da empresa. Tudo bem executar as tarefas em casa, mas o funcionário não pode se desplugar da cultura da empresa. / COM GUILHERME GUERRA

Incompetência brasileira, Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo

Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo
09 de maio de 2020 | 05h00


Muitos perguntam quando a pandemia vai atingir o pico no Brasil. Costumava oferecer um palpite, agora digo que o pico ocorrerá quando aproximadamente metade da população tiver sido infectada. Retrucam que hoje, com 100 mil casos, temos 8 mil mortes, será possível que com 100 milhões de casos teremos 8 milhões de mortes? Sim, e se o número total de casos continuar a duplicar a cada semana chegaremos lá em 10 semanas, em julho. Saco a calculadora e multiplico 100 mil por dois, dez vezes. A calculadora mostra 102 milhões. 
Nunca esse pequeno diálogo socrático deixou de fazer efeito. Então mostro a curva do total de casos que tenho à mão. Na verdade, digo, nas últimas semanas o multiplicador correto seria 1,6. Tínhamos 50 mil casos em 22 de abril, 80 mil em 29 de abril e chegamos a 125 mil em 6 de maio. Proponho que as contas sejam refeitas. Refazemos e concordamos: levará por volta de 15 semanas. O pico será no fim de agosto, talvez setembro.
Então, com a atenção total de quem perguntou, desejando uma resposta capaz de criar algum grau de conforto, introduzo a segunda parte do argumento. Esse é o curso natural de uma pandemia causada por um vírus que se espalha com enorme facilidade, e essa seria a trajetória se fôssemos uma colônia de 200 milhões de ratos incapazes de mudar nosso comportamento. Qualquer outro desfecho depende de nós. Sabemos que o vírus se espalha pelo ar quando ficamos próximos de uma pessoa doente, ou através da mão quando tocamos um objeto ou superfície contaminada. Um desfecho com menos mortes depende de medidas de higiene e da diminuição da interação entre pessoas. Fácil falar, difícil fazer. E o Brasil não está conseguindo fazer. Após um mês e meio de medidas de distanciamento, a velocidade de espalhamento está aumentando. 
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As razões de nosso fracasso são muitas. Somos um país pobre onde a maioria das pessoas precisa ganhar a vida a cada dia e não possui reservas financeiras para simplesmente se trancar em casa por semanas a fio. Grande parte da população vive em locais onde o isolamento é impraticável pelo simples fato de as pessoas estarem aglomeradas em pequenos cômodos. Além disso, as condições para implementar medidas básicas de higiene não existem, e o governo federal se mostrou primeiro incapaz, e agora contrário a liderar uma resposta da população à pandemia. Sem saber para onde ir, a população aos poucos volta à normalidade, já conformada com 600 mortes por dia.
O colapso do sistema hospitalar é um fato em boa parte do País. Nesse ritmo atingirá todas as capitais nos próximos dias. Pessoas já morrem em casa sem tratamento, cadáveres esperam junto aos leitos de doentes graves ou se empilham em contêineres refrigerados. Sequer a notificação das mortes funciona a contento. Mais leitos não resolvem sem médicos e enfermeiros. E a imprensa, que já não acredita no número oficial de mortes, prefere contar os enterros nas covas coletivas.
Não é possível imaginar que isso vá melhorar nas próximas semanas pois o que vai acontecer até o fim de maio está determinado pelo comportamento da população hoje. Nos últimos dias o que se vê na periferia de grandes cidades é o movimento normal do comércio frequentado por pessoas mascaradas que foram induzidas a se sentir protegidas por máscaras que sequer sabemos se são realmente úteis.
Essa realidade descreve perfeitamente a estratégia que o Brasil escolheu involuntariamente - por incompetência, descaso, ou ganância - para lidar com a pandemia. Ela consiste em deixar a população se contaminar rapidamente até atingirmos a imunidade de rebanho, que automaticamente diminuirá casos e mortes assim que começarmos a sentir seus efeitos nos próximos meses. Até lá o caos aumentará. Mortes devem logo chegar a 2 mil por dia e a realidade de Manaus será observada em todas as capitais com alta densidade populacional. Esse sempre foi o desejo de Bolsonaro e assim será.
Tudo indica que no Brasil a pandemia seguirá seu curso natural, talvez ligeiramente afetada pelo comportamento da sociedade. É triste, mas é como se o vírus estivesse se espalhando em uma colônia densa de 200 milhões de ratos desorientados. Espero estar errado, mas é assim que vejo nosso futuro. A estratégia do Brasil é a imunidade de rebanho por incompetência.