Renato Sérgio de Lima
Ao longo dos últimos anos, talvez até potencializado pelo filme “Tropa de Elite”, dirigido por José Padilha, acostumamo-nos a pensar em unidades especializadas (BOPE, RAIO, ROTA, COE, COT, BAEP, GATE, entre outras) como a “elite” das polícias brasileiras. É muito comum que tais unidades sejam tomadas como sinônimo do que há de mais prestigiado e moderno em temos de padrões de policiamento e modelos de conduta.
A grande questão é que, ao fazermos isso, estamos valorizando apenas um padrão de policiamento, desenhado para o enfrentamento com o oponente, em detrimento da pluralidade de situações e papéis que as polícias deveriam exercer em uma sociedade dinâmica, multicultural e democrática; em detrimento da construção de confiança entre polícia e comunidade.
Se olharmos com atenção, veremos que as unidades especializadas são, em geral, aquarteladas, exigem doutrinas específicas, preparo, capacitação contínua e vocação. Elas demandam superioridade tática para a eventualidade de necessidade de uso da força já em um gradiente maior na garantia da lei e da ordem. Correto, essa é uma função fundamental e não pode ser desconsiderada.
Mas isso nos autoriza a trata-las como a “elite” das polícias? A meu ver, não. E por uma razão muito simples e pragmática: ao fazermos isso, estamos relegando o padrão de policiamento territorial e preventivo a um segundo plano e, mesmo que indiretamente, transmitindo a mensagem que ser policial é ser, exclusivamente, combatente.
E nada mais equivocado e perverso do que isso. Os impactos desta concepção são por demais nocivos para uma corporação que precisa motivar seus profissionais para o exercício de múltiplas funções. O uso amplamente disseminado da doutrina de enfrentamento tem potencial de aproximar a identidade do policial, sobretudo do policial militar, às figuras do militar das Forças Armadas e do herói.
Porém, polícia, no mundo todo, serve para muitas outras tarefas do que apenas o controle e enfrentamento do crime e, se a reduzirmos a isso, estamos tratando-a como uma instituição menor, quando ela é essencial para a democracia. Ela nos traz uma outra questão associada. Não precisamos, por mais nobre que seja a ideia, de policiais heróis, mas de profissionais valorizados, bem pagos e com direitos assegurados.
A ideia do herói tem, no caso das polícias, uma enorme dubiedade, já que sinaliza para a extraordinária e abnegada contribuição para com a sociedade. Isso é o que temos como dos mais elevados valores cívicos. Entretanto, na prática e no cotidiano da tragédia da violência que nos assola, recorrer à ideia do policial herói esconde a possibilidade real de os policiais serem tratados pelo Poder Público de forma injusta, sem direitos e equipamentos de proteção adequados, muitas vezes (herói não precisa de proteção).
Mas voltando à ideia de unidades especializadas como “elite”, outro efeito perverso é que policiamento preventivo acaba por ser visto como menos prestigiado e, por conseguinte, reservado, no imaginário coletivo, aos profissionais ditos menos vocacionados, preparados ou motivados. Ser policial territorial é, então, um duplo fardo, por ser pouco reconhecido pela população e pela própria corporação.
Só que a imensa maioria dos policiais está no policiamento territorial, que é central para a manutenção da ordem e para a gestão dos sentimentos de medo e de insegurança. E, se o ideal é ser “elite”, eles tendem a mimetizar o que é valorizado na perspectiva de serem reconhecidos e, nesse processo, o preventivo vira uma versão do enfrentamento.
Em suma, ao se valorizar as unidades especializadas como “elite” e desmerecer as unidades territoriais, dificilmente os estranhamentos entre polícias e comunidade serão enfraquecidos. Ou valorizamos todas as unidades de policiamento pelo seu caráter protetivo de direitos e cidadania, que contempla o uso gradual da força em determinadas situações mas também várias outras atividades, ou só estaremos enganando os policiais e os eleitores com promessas e valentias retóricas.