sábado, 28 de abril de 2018

O eclipse da política, Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo



Há quase 200 anos, Tocqueville viu a possibilidade de governantes traírem o eleitorado


28 Abril 2018 | 02h00
A democracia já não é mais o que era. Bem longe está do conceito que tinha nos antigos tratados de teoria política, sendo que nenhum deles previu a jabuticaba que aqui brotou sob a forma de um oxímoro: “Golpe democrático”. Temos ouvido muito essa expressão ultimamente. O golpe “democrático” consiste em seguir a norma jurídica até determinado ponto, para depois escapar dela amparado em justificativas que desviam da lei, desmoralizando o ritual jurídico e anulando a norma.
A historiadora Lilia Schwarcz estudou essa ardilosa aberração - não só no presente, mas também no passado (a ditadura militar não “legalizou” o arbítrio?) - e disso nos dará conta no próximo e sempre esperado ciclo de conferências anuais organizado pelo professor Adauto Novaes, o décimo da série Mutações, que começa na próxima quarta-feira e se estende até 14 de junho. 
O tema da vez é o eclipse da política. Ou, como prefere Novaes, “a outra margem da política”. Possuir duas margens não é atributo exclusivo dos rios.
Com a habitual equipe de professores ligados ao grupo Arte Pensamento - Marilena Chauí, Newton Bignotto, Olgária Mattos, Frédéric Gros, Jean-Pierre Dupuy, Renato Janine Ribeiro, Eugenio Bucci, etc. -, a novidade deste ano é o retorno da capital paulista ao roteiro das palestras, deslocadas para a Casa do Saber. Ano passado, graças mais a um eclipse administrativo do Ministério da Cultura (gestão Roberto Freire) do que à crise econômica, apenas Rio, Brasília e Belo Horizonte tiveram acesso à maratona.
Providencialmente amparado pelo Instituto Cultural do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais e a Caixa Econômica Federal, Novaes conseguiu fechar o circuito de novo. No Rio as conferências serão na Fundação Casa de Ruy Barbosa.
A epígrafe de Alexis De Tocqueville no texto de introdução ao curso deste ano antecipa o cerne de suas discussões: “Um novo mundo pede uma nova política”. Já pedia em meados do século 19 e continua pedindo, com a urgência e intensidade exigidas pelas revoluções tecnocientíficas das últimas décadas.
Há quase 200 anos, De Tocqueville vislumbrou a possibilidade de governantes legitimados pelas urnas, porém mais zelosos de seus próprios interesses que do bem comum, traírem o eleitorado, sob a proteção de uma legislação tíbia, se não impotente, e o incentivo de uma apatia cívica generalizada, abrindo caminho para uma forma inédita de opressão: o “despotismo democrático”. Hitler, vale sempre lembrar, foi eleito legitimamente.
Franklin Leopoldo e Silva, mestre em filosofia da USP, irá explorar o “formalismo vazio” a que foi reduzida a democracia, não mais amparado em De Tocqueville, mas em outro presciente pensador do passado, igualmente francês, o poeta e ensaísta Paul Valéry, permanentemente apreensivo com a tendência da política a tornar-se “a arte de impedir o povo de se interessar por aquilo que lhe diz respeito”, e obrigá-lo, ao mesmo tempo, a decidir sobre o que nada entende. E menos ainda passou a entender depois que o juridiquês virou o patoá mais ouvido em nossos telejornais, acrescento eu.
Como conciliar democracia e governo representativo quando se sabe que o representante não representa? Os políticos traem seus ideais, suas promessas de campanha, seus partidos; nem precisam render-se à corrupção para exercer papel negativo na vigília de um Estado cujas instituições foram ocupadas por forças econômicas incoercíveis e entidades religiosas.
“Como pensar certos conceitos (democracia, autoridade e liberdade, as crises da cultura, educação, o advento da mentira na política) no momento em que todas as respostas oferecidas pela tradição perderam sua validade?”, pergunta-se Novaes. Abandonando as construções e ideias petrificadas para retomar as coisas em suas fontes, indo aos fundamentos da política, ele mesmo responde. Em suma, atravessando até a outra margem da política.
Ao longo de 44 noites, os palestrantes irão falar da tecnociência e sua uniforme e perigosa autonomia, a dominar as instituições políticas, as artes, os costumes, a linguagem, as igrejas e as mentalidades, com a força de uma nova religião. E também do poder ilusório das mídias sociais. Do crescente peso da bancada evangélica. Do futuro homem pós-político, frankenstein eletrônico, sem ética, nem ideologia. Do pragmatismo de uma civilização que já não pode mais distinguir fatos e valores, verdades e mentiras.
Uma leitura dos resumos das conferências revelou a presença preponderante de Valéry. Desta vez, ele ganhou até de Nietzsche e Wittgenstein. Onipresente nos ensaios de Novaes, Valéry espraiou seu brilho e sua “vigilância crítica” pelas demais intervenções. Como não podia deixar de ser. Seu clarividente desânimo com o mundo moderno pode nos servir de guia para entendermos como fomos parar onde atolamos.
“O mundo moderno, em toda sua potência, de posse de um capital técnico prodigioso, inteiramente penetrado de métodos positivos, não soube entretanto criar uma política, uma moral, um ideal, nem leis civis ou penais que estejam em harmonia com os modos de vida que ele criou, e até mesmo com os modos de pensamento que a difusão universal e o desenvolvimento de certo espírito científico impõem pouco a pouco a todos os homens.”

Sem polícia, 48 presídios desafiam facções e indústria carcerária no país, FSP

Sem polícia, 48 presídios desafiam facções e indústria carcerária no país

Em expansão, modelo prisional alternativo das Apacs deve alcançar cem unidades no Brasil até 2020

É de uma casa simples no centro de Itaúna (MG), a 83 km de Belo Horizonte, que Valdeci Ferreira, presidente da Fbac (Fraternidade Brasileira de assistência aos Condenados), planeja a expansão do modelo de prisão humanizada que desafia as facções criminosas e a indústria do preso.
“Nossa meta é chegar a cem presídios sem polícia e armas no país até 2020”, diz, sobre as Apacs (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). Elas já administram 48 centros de reintegração social, onde presos se ocupam de disciplina, limpeza e comida.
Com um limite de 200 internos por unidade, um custo dois terços menor e índices de reincidência criminal de 20% contra 85% no sistema prisional tradicional, as Apacs se mostram uma alternativa em meio ao caos de penitenciárias superlotadas e dominadas por facções.
É o caso do Maranhão, após o massacre de Pedrinhas, em 2013. Seis Apacs estão em funcionamento no estado e outras duas devem ser abertas em breve.
“A primeira Apac em uma capital foi a de São Luís, que nasceu dentro daquele contexto grave com decapitações de presos em Pedrinhas”, relata Ferreira.
O espaço oferecido pelo governo do Maranhão ficou inicialmente às moscas. “Tínhamos os voluntários, apoio da comunidade, mas não clientela, pois Pedrinhas e outros presídios do estado estavam dominados pelas facções”, diz o presidente da Fbac. “Foi feito um pacto, e o preso que optasse pela Apac era autorizado a romper com sua facção.”
Só assim foram ocupadas as 40 vagas iniciais. Hoje, a Apac de São Luís abriga 80 presos.
O governador Flávio Dino (PC do B) levou para a secretaria de Administração Penitenciária do Maranhão Murilo Andrade de Oliveira, que acompanhou a evolução das Apacs em Minas Gerais.
Desde 2001, o movimento de presídios humanizados virou política pública do Tribunal de Justiça do estado, a partir da experiência pioneira em três comarcas: Itaúna, Nova Lima e Sete Lagoas.
O modelo ganhou impulso em 2004 com a adesão do governo de Minas, após a alteração da lei estadual de Execução Penal, que passou a permitir convênios para manutenção e construção de novas Apacs.
Hoje são 38 unidades e 3.035 vagas. Cerca de 10% dos presos condenados no estado cumprem pena nessas unidades, segundo cálculos do juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, designado pelo TJ-MG para assuntos relativos às Apacs.
“Com o respaldo do TJ, juízes foram acreditando na metodologia e colocaram a própria credibilidade para encampar a ideia.” Convenceram a comunidade. “É outra lógica, a da responsabilidade compartilhada.” O juiz cita o exemplo de quando esteve à frente da Vara de Execução Penal em Lagoa da Prata (MG).
“Eu tinha uma Apac com 150 presos e quatro plantonistas e uma cadeia pública também com 150 presos, mas 37 agentes penitenciários.” A Secretaria de Estado de Administração Prisional de Minas transferiu, em 2017, R$ 43 milhões para manutenção/custeio de 32 unidades masculinas e seis femininas no estado. 
Em Minas, funciona ainda um segundo modelo alternativo, o de PPP: o Complexo Penal de Parceira Público-Privada, em Ribeirão das Neves, na região metropolitana de BH. 
São três unidades com 2.164 presos, ao custo de R$ 126,85 vaga/dia, R$ 98 milhões/ano.
Para expandir o modelo das Apacs, baseado em 12 pilares, entre eles espiritualidade e fortalecimento de laços familiares, a Fbac aposta na força do exemplo mineiro. 
Já foram aprovadas legislação semelhante à de Minas em Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Maranhão e Amapá. O ex-governador de Minas e hoje senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) apresentou projeto de lei para dar amplitude nacional ao modelo Apac.
Enquanto não é aprovada, a unidade de Macaú, no Rio Grande do Norte, por exemplo, funciona com doações da comunidade. “Lá nós tivemos uma ação de inconstitucionalidade e não pudemos celebrar convênio com o governo porque a tarefa de custodiar presos no Brasil é do estado”, explica Ferreira. “Em Minas, rompemos isso pela primeira vez.”
O modelo de presídios sem polícia e armas foi apresentado como alternativa também nas negociações do acordo de paz entre governo e guerrilha na Colômbia. O presidente da Fbac, que dissemina o método pelo no mundo, viajou na semana passada para Medellín.
Para um crescimento sustentável sem desvirtuar a metodologia, a Fbac, que venceu o Prêmio Empreendedor Social 2017, desenha planejamento estratégico para a entidade. “É preciso um novo modelo de governança e gestão para conseguirmos um salto de escala maior”, diz Ferreira.
Esbarra em desafios, como a cultura de encarceramento em massa e a crença de parcela da população de que "bandido bom é bandido morto". 
Ferreira chama atenção para o fato de o método Apac ter 45 anos e um número reduzido de recuperandos, em um universo de mais de 726 mil presos no Brasil, terceira maior população carcerária do mundo.
"Nadamos contra a correnteza. A indústria do preso cresce mais que a automobilística, a farmacêutica e o agronegócio. Muitas corporações, instituições e pessoas que vivem da miséria dos encarcerados."
Neste processo de sensibilização, a Fbac vem colhendo apoios, como o do Movimento das Mulheres do Brasil, capitaneado por Heloísa Helena Trajano. A Apac feminina de Florianópolis prestes a ser inaugurada conta com a parceria do grupo que agrega lideranças femininas de vários segmentos.
Outro desafio é mudar a mentalidade de autoridades para o fato de que a justiça não se realiza tão somente com a condenação. Depois da sentença judicial, Ferreira defende uma terapêutica penal que permita àqueles que um dia feriram a sociedade reciclar valores e mentalidades.
“O nosso método leva à responsabilização do dano causado às vítimas e ao mesmo tempo fazer o recuperando se dar conta de que todo homem é maior do que seu crime.”
Eliane Trindade
É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social.