Há quase 200 anos, Tocqueville viu a possibilidade de governantes traírem o eleitorado
28 Abril 2018 | 02h00
A democracia já não é mais o que era. Bem longe está do conceito que tinha nos antigos tratados de teoria política, sendo que nenhum deles previu a jabuticaba que aqui brotou sob a forma de um oxímoro: “Golpe democrático”. Temos ouvido muito essa expressão ultimamente. O golpe “democrático” consiste em seguir a norma jurídica até determinado ponto, para depois escapar dela amparado em justificativas que desviam da lei, desmoralizando o ritual jurídico e anulando a norma.
A historiadora Lilia Schwarcz estudou essa ardilosa aberração - não só no presente, mas também no passado (a ditadura militar não “legalizou” o arbítrio?) - e disso nos dará conta no próximo e sempre esperado ciclo de conferências anuais organizado pelo professor Adauto Novaes, o décimo da série Mutações, que começa na próxima quarta-feira e se estende até 14 de junho.
O tema da vez é o eclipse da política. Ou, como prefere Novaes, “a outra margem da política”. Possuir duas margens não é atributo exclusivo dos rios.
Com a habitual equipe de professores ligados ao grupo Arte Pensamento - Marilena Chauí, Newton Bignotto, Olgária Mattos, Frédéric Gros, Jean-Pierre Dupuy, Renato Janine Ribeiro, Eugenio Bucci, etc. -, a novidade deste ano é o retorno da capital paulista ao roteiro das palestras, deslocadas para a Casa do Saber. Ano passado, graças mais a um eclipse administrativo do Ministério da Cultura (gestão Roberto Freire) do que à crise econômica, apenas Rio, Brasília e Belo Horizonte tiveram acesso à maratona.
Providencialmente amparado pelo Instituto Cultural do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais e a Caixa Econômica Federal, Novaes conseguiu fechar o circuito de novo. No Rio as conferências serão na Fundação Casa de Ruy Barbosa.
A epígrafe de Alexis De Tocqueville no texto de introdução ao curso deste ano antecipa o cerne de suas discussões: “Um novo mundo pede uma nova política”. Já pedia em meados do século 19 e continua pedindo, com a urgência e intensidade exigidas pelas revoluções tecnocientíficas das últimas décadas.
Há quase 200 anos, De Tocqueville vislumbrou a possibilidade de governantes legitimados pelas urnas, porém mais zelosos de seus próprios interesses que do bem comum, traírem o eleitorado, sob a proteção de uma legislação tíbia, se não impotente, e o incentivo de uma apatia cívica generalizada, abrindo caminho para uma forma inédita de opressão: o “despotismo democrático”. Hitler, vale sempre lembrar, foi eleito legitimamente.
Franklin Leopoldo e Silva, mestre em filosofia da USP, irá explorar o “formalismo vazio” a que foi reduzida a democracia, não mais amparado em De Tocqueville, mas em outro presciente pensador do passado, igualmente francês, o poeta e ensaísta Paul Valéry, permanentemente apreensivo com a tendência da política a tornar-se “a arte de impedir o povo de se interessar por aquilo que lhe diz respeito”, e obrigá-lo, ao mesmo tempo, a decidir sobre o que nada entende. E menos ainda passou a entender depois que o juridiquês virou o patoá mais ouvido em nossos telejornais, acrescento eu.
Como conciliar democracia e governo representativo quando se sabe que o representante não representa? Os políticos traem seus ideais, suas promessas de campanha, seus partidos; nem precisam render-se à corrupção para exercer papel negativo na vigília de um Estado cujas instituições foram ocupadas por forças econômicas incoercíveis e entidades religiosas.
“Como pensar certos conceitos (democracia, autoridade e liberdade, as crises da cultura, educação, o advento da mentira na política) no momento em que todas as respostas oferecidas pela tradição perderam sua validade?”, pergunta-se Novaes. Abandonando as construções e ideias petrificadas para retomar as coisas em suas fontes, indo aos fundamentos da política, ele mesmo responde. Em suma, atravessando até a outra margem da política.
Ao longo de 44 noites, os palestrantes irão falar da tecnociência e sua uniforme e perigosa autonomia, a dominar as instituições políticas, as artes, os costumes, a linguagem, as igrejas e as mentalidades, com a força de uma nova religião. E também do poder ilusório das mídias sociais. Do crescente peso da bancada evangélica. Do futuro homem pós-político, frankenstein eletrônico, sem ética, nem ideologia. Do pragmatismo de uma civilização que já não pode mais distinguir fatos e valores, verdades e mentiras.
Uma leitura dos resumos das conferências revelou a presença preponderante de Valéry. Desta vez, ele ganhou até de Nietzsche e Wittgenstein. Onipresente nos ensaios de Novaes, Valéry espraiou seu brilho e sua “vigilância crítica” pelas demais intervenções. Como não podia deixar de ser. Seu clarividente desânimo com o mundo moderno pode nos servir de guia para entendermos como fomos parar onde atolamos.
“O mundo moderno, em toda sua potência, de posse de um capital técnico prodigioso, inteiramente penetrado de métodos positivos, não soube entretanto criar uma política, uma moral, um ideal, nem leis civis ou penais que estejam em harmonia com os modos de vida que ele criou, e até mesmo com os modos de pensamento que a difusão universal e o desenvolvimento de certo espírito científico impõem pouco a pouco a todos os homens.”