sábado, 18 de maio de 2013

Com uma farofinha...


Neide Rigo
Podemos até discordar da estratégia da FAO de combater a fome e prevenir catástrofes nutricionais estimulando o consumo de insetos, pois uma das saídas seriam ações para melhorar a distribuição de alimentos e evitar seu desperdício. Mas duas coisas são certas. Uma é que, involuntariamente, comemos insetos, ovos e larvas com certa frequência. Afinal, ainda que evitemos alimentos industrializados vermelhos à base de carmim, corante natural feito a partir de cochonilhas, é difícil fugir da proteína animal do bicho da goiaba e dos carunchos dos cereais, às vezes ainda na forma de ovos ou larvas. Outro dado é que o Brasil é essencialmente um papa-insetos, ainda que não o admita, pelo menos até agora.
O próprio documento da FAO cita o País usando referências do especialista baiano Eraldo Medeiros Costa Neto, que estima em 135 o número de espécies de insetos comestíveis por aqui. Diante de nossa biodiversidade e das quase 2 mil possibilidades mundo afora também mencionadas pelo relatório, é de se imaginar que esse número seja ainda maior.
O hábito indígena de comer insetos – sejam formigas nos vários estágios, larvas de abelhas, cupins, tenébrios, lagartas ou crisálidas – sobrevive, e podemos trazer do Alto Rio Negro deliciosas saúvas inteiras com tucupi e pimenta ou paneiros com seus abdomes moqueados. Ainda podemos ir à cidade de Silveiras, no Vale do Paraíba, para comer içás em restaurante popular. Mas mesmo nos bairros da cidade de São Paulo e arredores encontramos grandes formigueiros de saúvas cortadeiras, terror dos jardins, com o mesmo sabor de citronela do inseto amazônico.
O perfume cítrico característico dessa espécie, Atta sexdens, vem do feromônio produzido numa glândula mandibular. A substância tem várias funções, entre elas a de inibir o crescimento de micro-organismos outros que não o fungo desejável para a própria nutrição da colônia. Porém, apesar do apreciado sabor herbáceo na cabeça dessas formigas, o hábito disseminado por todo o Brasil é perseguir as fêmeas em revoada, chamadas de içás ou tanajuras, quando estão prenhes. É exatamente o abdome esférico, do tamanho de um grão de ervilha, que é dourado na própria gordura ou na banha de porco e comido como petisco crocante, puro ou com farinha. Uma mistura de torresmo com amendoim torrado, uma iguaria.
No entanto, tirando o exemplo do Vale do Paraíba e da Amazônia, onde há certo orgulho do alimento, pouca gente admite que come ou já tenha comido içá ou qualquer outro inseto. É hábito tachado como primitivo ou de pobre – exceção feita a quem viaja para o México, ou Tailândia, Japão, China e tantos outros países asiáticos, onde os insetos são vendidos na rua ou em lojas especializadas. Basta ao turista experimentar um deles, fotografar e postar na rede social como fato pitoresco e, pronto, está batizado. Passar a encarar os insetos como alimento nutritivo e saboroso do dia a dia, sem distinção de classe, é outra história.
No verão passado, por exemplo, quando consegui recolher um tanto de içá em Piracaia, cidade a 100 km de São Paulo, achei que só eu sabia que aquele inseto era comestível, que só eu tinha presenciado centenas de formigas gordas caindo do céu. Aos poucos, as pessoas foram revelando que também coletaram içás naquela tarde de domingo que anunciava chuva com trovoadas – mas só depois de eu dizer que já tinha provado a formiga até em restaurante e gostava muito. Não fosse assim, teriam negado até a morte.
Não é diferente o que acontece com os bichos de coco, de taquara, de tronco de palmeira. A larva do besouro Pachymerus nucleorum, por exemplo, cresce dentro da amêndoa do fruto de várias palmeiras, como o licuri, que produz coquinho adocicado e crocante. Essas larvas, que parecem confitadas em gordura de coco como uma síntese da polpa que as alimentou, são apreciadas em todo o Brasil, seja a que dá no butiá, no babaçu ou no buriti. Os nomes regionais variam conforme a planta e são geralmente repletos de "os": gongo, coró, fofó, boró, bigolô, gogolô. No interior do Maranhão, os gongos do coco babaçu fritos viram ingrediente para farofas ou são servidos com arroz. Mas é comida interna, familiar, de pertencimento. Vá querer compartilhar essa emoção...
O preconceito chegou com o colonizador, que encontrou aqui grandes dissonâncias de costumes e higiene em relação aos padrões europeus. Vide os termos pejorativos e de asco em relação aos hábitos alimentares dos índios nos relatos dos viajantes. Hoje sabemos o que nossos índios sempre souberam: que quase todos os insetos são comestíveis – grilos, lagartas sem pelo, larvas, crisálidas, cupins, abelhas, besouros. Estaríamos mais saudáveis e teríamos menos problemas ambientais se não comêssemos tanta carne e tantos camarões – que se alimentam de restos putrefatos do fundo do mar – e enxergássemos gafanhotos nutridos à base de folhas verdes como limpos e apetitosos camarões do campo.
* NEIDE RIGO É NUTRICIONISTA, COLUNISTA DO PALADAR E AUTORA DO BLOG COME-SE

Mercado do medo



O resultado positivo para alta probabilidade de câncer de mama transformou Angelina Jolie em cliente da mercadoria risco

18 de maio de 2013 | 15h 46
Debora Diniz - O Estado de S.Paulo
Não há sobrevivência humana sem a experiência do adoecimento. E não se trata de uma resignação passiva diante do corpo que insiste em falhar, pois essa é nossa condição. O encanto da medicina está no poder de nos oferecer tratamento para as aflições e as dores. O câncer é uma delas – "uma palavra que impõe medo nos corações das pessoas", disse Angelina Jolie. Talvez tenha sido o medo que a fez se submeter a uma cirurgia de mastectomia radical: retirou os dois seios como medida preventiva para desautorizar o destino anunciado em seus genes. Angelina não estava doente – o câncer era uma probabilidade. A estatística genética a sentenciou à morte e o mesmo bisturi que a mutilou reconstruiu seu corpo.
Atriz revelou que fez uma cirurgia de retirada de mamas para diminuir o risco de câncer - Todd Heisler/NYT
Todd Heisler/NYT
Atriz revelou que fez uma cirurgia de retirada de mamas para diminuir o risco de câncer
Angelina contou sua história em um jornal de circulação mundial. A narradora do texto – em um misto de confidência e apelo às outras mulheres – seduz pela autoridade de atriz e pacifista da Organização das Nações Unidas. A mãe de Angelina morreu aos 56 anos de um câncer de mama. Um teste genético identificou a herança materna do gene defeituoso. "Assim que soube do risco, decidi ser proativa e minimizá-lo", justificou-se. Risco não é somente um fenômeno estatístico, mas uma categoria moral e uma mercadoria. Minimizar o risco do adoecimento genético ofereceu a Angelina um sentimento de controle sobre o futuro e acerto de contas com o passado: os filhos não vivenciariam sua história de orfandade. Ou, ao menos, assim o mercado dos testes genéticos a faz crer.
O teste sanguíneo para a identificação do gene defeituoso de Angelina custa US$ 4 mil nos EUA. É produzido por uma única empresa, a mesma que busca patentear o sequenciamento genético na Suprema Corte americana. No Brasil, não está disponível na rede pública de saúde por duas razões. A primeira é que a genética clínica ainda não foi seriamente implementada como política pública do SUS. A segunda, e mais importante, é o custo exorbitante do exame, dado o controle econômico da patente e do sequenciamento do gene por uma única empresa. É a ciência que cartografa nossos genes a que vende o teste para classificar alguns deles como "defeituosos". O de Angelina tem nome, BRCA1. Mas a história da mastectomia radical para tratamento do câncer de mama conheceu matriarcas distantes da atriz de Hollywood: em 1894, William Stewart Halsted, médico do Hospital Johns Hopkins, propôs o revolucionário tratamento de mutilação dos seios para o câncer. A diferença é que a mastectomia do século 19 era feita após o câncer dar sinais de presença no corpo.
Os médicos de uma mulher com risco genético alto para o câncer de mama podem indicar a mastectomia preventiva. Diferente do passado, não há uma doença instalada no corpo, apenas seu espectro de probabilidade. O admirável mundo novo da genética não apenas provocou a ficção científica dos embriões em tubos de ensaio de Aldous Huxley, mas atiçou um extenso mercado de medos e novas necessidades. O teste genético passou a ser uma necessidade de saúde para Angelina. O resultado positivo para a alta probabilidade a transformou em cliente do mercado do medo. Os números eram fortes: com os seios, seu risco de desenvolver o câncer eram de 87%; mutilada, de 5%. A mutação genética está em seu corpo e o mercado que a identificou oferece promessa de solução.
Se Angelina se salvou da ficção como a garota interrompida, é agora uma mulher sobrevivente de um câncer que nunca teve. Mas é também uma celebridade genética. Angelina lançou-se como ativista de mais uma causa: a do teste preditivo para o câncer de mama e da mastectomia preventiva. Suas boas intenções humanitárias favoreceram o crescente mercado genético. Em poucos dias, as ações comerciais da Myriad Genetics, a única que controla o teste preditivo para o BRCA1, cresceram nas bolsas de valores. A missão agora é convencer outras mulheres a despir-se do apego ao corpo e lançar-se à hipótese da antecipação da doença. Para isso, apresentou-se como rosto e voz da necessidade da mutilação e descreveu suas próteses como bonitas. Porém, não há escolha simples. A de Angelina foi favorecida pelo poder de consumo médico, animada pela orfandade da mãe e pelo cuidado dos filhos.
Mas probabilidade não é predestinação. Nem na genética nem em nenhum outro campo da medicina. A diferença é que a medicina genética se move por um poder de sedução que revolucionou as políticas populacionais – a métrica estatística. Angelina é não somente uma mulher com gene defeituoso, mas também uma mulher laudada pela genética como de alto risco para desenvolver a doença e morrer precocemente. Ser uma mulher com genes defeituosos foi insuportável para ela, como é para tantas outras. Esse novo estatuto faz circular uma ampla rede de produtos, profissões e consumos. Por isso, nosso estranhamento não deve ser à história de Angelina Jolie, sua mutilação e reconstrução corporal, mas ao discurso médico e de consumo que nos oferece destinos. Mesmo que a escolha pela mutilação venha a ser considerada a mais razoável, ela é apenas uma tentativa de controlar o acaso da vida humana e seu eterno jogo com o adoecimento.
* DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

Pontos abertos (sobre médicos importados)



O Brasil precisa importar médicos? Segundo o governo, os cubanos, portugueses e espanhóis seriam bem-vindos. Mas eles viriam mesmo?

18 de maio de 2013 | 16h 00
Juliana Sayuri - O Estado de S.Paulo
Tempo de médicos com fronteiras. E a nacionalidade é só uma delas. O imbróglio começou dias atrás, com a possível vinda de 6 mil médicos cubanos, contratados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e destinados a cidades esquecidas no interior, mediante um acordo noticiado pelo chanceler Antônio Patriota. O Conselho Federal de Medicina chiou. Na terça-feira a medicina voltou à baila, com a possível "importação" de médicos portugueses e espanhóis, uma "prioridade" na expressão do ministro Alexandre Padilha. O conselho protestou. "O Brasil precisa de mais médicos, mas bons médicos", disse o ministro Aloizio Mercadante, afastando a possível flexibilização do rigoroso Revalida, o sistema de validação de diplomas médicos obtidos no exterior. Ainda assim, o conselho foi esbravejar na Procuradoria-Geral da República contra a porteira aberta pelos três ministérios.
"A discussão sobre a possível vinda de médicos estrangeiros, como panaceia mirabolante para solucionar vazios assistenciais no território nacional, está mal localizada. É preciso ter uma discussão mais abrangente: qual é o modelo de sistema de saúde que queremos?", questiona Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) na área de políticas e sistemas de saúde. Mineiro, Scheffer estudou em Juiz de Fora, Campinas e São Paulo. Ativista, jornalista e pós-doutor na USP e na Faculdade de Ciências Medicas da Santa Casa, Scheffer vive na capital paulista desde 1992. Paralelamente à atividade acadêmica stricto sensu, há tempos se dedica ao ativismo na luta contra a aids, principalmente com o Grupo Pela Vidda.
Para Scheffer, coordenador do estudo Demografia Médica no Brasil (financiado por CFM e Cremesp), a importação seria mero paliativo para o déficit de médicos em determinados rincões do País. Um band-aid que faria cócegas numa sangria desatada. "Além disso, qual será o fator atrativo para médicos estrangeiros virem ao Brasil? É intrigante, pois não há. Não se pode esperar uma legião estrangeira", diz. Bem-vindos, pois. Mas virão?
Muito se debateu a vinda de médicos estrangeiros para suprir o déficit em certas áreas do País. Por que tanta discussão?
A discussão sobre a possível vinda de médicos estrangeiros, como panaceia mirabolante para solucionar vazios assistenciais no território nacional, está mal localizada. É preciso ter uma discussão mais abrangente: qual é o modelo de sistema de saúde que queremos? É preciso compreender as razões para as desigualdades de distribuição dos médicos em determinados pontos no Brasil. Isso se dá em três níveis. Primeiro, a desigualdade geográfica. De fato, temos altas concentrações de médicos nas capitais e nas regiões Sul e Sudeste. Segundo, a diferença entre o público e o privado. Há muito mais médicos e mais recursos no setor particular, o que é incompatível com um sistema de saúde que se pretende universal. Terceiro, a distribuição irregular nas especialidades. Afinal, há diferentes perfis e necessidades nas diferentes regiões e cidades. Portanto, não bastam medidas paliativas, que não interferem nas causas dessa desigualdade. Tais medidas imediatistas são cortina de fumaça, que escondem os reais problemas. É quase que escamotear os reais motivos da ausência de médicos nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo. Não me parece adequado responsabilizar os médicos brasileiros, como se fosse apenas uma decisão individual não ir a esses lugares. É uma visão muito simplista. Estamos diante de um problema político e estrutural.
O que justifica os vazios assistenciais?
Estudando a migração interna de médicos, vimos que eles têm preferido os mesmos lugares: as grandes cidades, nas regiões Sul e Sudeste. Há diversos fatores decisivos para essa movimentação – e não só a questão salarial. É uma trinca: oportunidade e remuneração atraente; possibilidade para dar continuidade à formação e aprimoramento profissional; e estrutura para garantir condições de trabalho adequadas. Logo, quando se diz que tal cidade está abrindo vagas com bons salários, e os médicos brasileiros não estão interessados, é porque eles pesam essas outras condições. Esse fluxo para os mesmos lugares indica que o simples aumento do contingente de médicos, abrindo mais faculdades ou flexibilizando a entrada de estrangeiros, não será suficiente para resolver o déficit nas cidades do interior e nos rincões do País. Fizemos um estudo sobre os médicos estrangeiros que já estão no Brasil, com diplomas validados e inscrições nos conselhos. São 7.200 médicos – estrangeiros e brasileiros formados lá fora. E notamos que eles buscam os mesmos lugares. Desses 7 mil, há 215 profissionais cubanos. 40,2% deles estão nas capitais.
Mas a ideia inicial, segundo os ministros Antonio Patriota e Alexandre Padilha, seria encaminhar esses médicos ‘importados’ para essas cidades necessitadas.
Pois é, mas ainda não temos todos os elementos para avançar nessa discussão. Até agora, as informações foram fragmentadas. Quais serão as regras? Quanto tempo ficarão nessas áreas necessitadas? Por que resistiriam mais tempo ali que os médicos brasileiros? E que quesitos serão oferecidos para atrair médicos estrangeiros para cá? Isso provoca outra discussão: a revalidação do diploma. Os países desenvolvidos adotam medidas para revalidação do diploma, independentemente da nacionalidade do médico estrangeiro, sem privilégios nem deméritos. Qualquer tentativa para fragilizar esse rigor da revalidação seria um risco. Na atual degradação calamitosa da formação médica no Brasil, muitos médicos teriam imensa dificuldade em revalidar o diploma brasileiro em outros países. Se nossos médicos, recém-formados e egressos das universidades, tivessem que passar por um exame... Na experiência paulista, a obrigatoriedade do exame indica sérios problemas na formação. Mas são avaliações totalmente diferentes: uma destinada a medir equivalência do diploma; outra voltada para a formação de nossos médicos.
O CFM respondeu furiosamente à possível vinda de médicos ‘importados’, usando a expressão ‘pseudomédicos’.
Há certo corporativismo, mas também uma fúria virulenta contra a discussão sobre as regras para revalidação. O Revalida é um exame ancorado nos parâmetros do próprio governo – que não são mais rigorosos que os que um médico brasileiro enfrentaria em outros países. O que está provocando discussões vigorosas é a revalidação automática. Neste ponto, concordo com o CFM. Penso que, se essa questão for esclarecida, a resistência diminuiria. Tradicionalmente, Cuba tem uma formação mais voltada para a atenção básica, o que é importante para qualquer sistema de saúde. Com bons médicos na atenção primária, é possível solucionar até 85% dos problemas de saúde, desafogando prontos-socorros e complicações. Bons médicos, com diploma revalidado, seriam bem-vindos. Independentemente da nacionalidade. Porém, foi apresentada essa medida sem antes ter esgotado outras alternativas, que podem ser mais eficazes.
Por exemplo?
O plano de carreira federal. Para municípios longínquos, um plano com previsão de rotatividade e possibilidade de ascensão atrairia mais médicos. Assim foi possível, parcialmente, promover a presença da Justiça em cidades de difícil acesso. Em 2010, ainda com o ministro José Gomes Temporão, foi feita uma proposta de carreira voltada para a atenção básica para cidades com determinadas necessidades. Mas a proposta foi abortada, por decisão política, imagino. Era uma alternativa, mas não foi experimentada. Outras, experimentadas, não surtiram muitos resultados, como o Provab, que pretende dar benefícios a recém-formados para irem a essas áreas. Enfim, não há uma resposta. É preciso ter uma combinação – e a vinda de médicos estrangeiros pode contribuir com isso, reitero, desde que acompanhada por critérios rigorosos. Os moradores de cidades isoladas, já absolutamente carentes de saúde, não merecem uma medicina inferior. São os que mais precisam e mais sofrem com a falta de médicos. É um fluxo perverso: muitas vezes, os médicos com formação frágil (de universidades brasileiras ou estrangeiras) acabam atendendo justamente as populações mais necessitadas. Uma medicina pobre para pobres. Para solucionar isso, a combinação é complexa: passa por maior financiamento do sistema público, maior desenvolvimento das regiões socioeconômicas e remuneração acompanhada de plano de carreira.
Mas mais médicos no Sul e Sudeste não quer dizer que a saúde seja melhor ali, certo? Certo. Há capitais brasileiras com concentração maior que em países da União Europeia. Em Vitória, há 11 médicos por mil habitantes. Em São Paulo, há 4 (A OMS recomenda um médico para cada mil habitantes). Isso não se reflete em melhor atendimento. E não quer dizer que eles estejam presentes onde deveriam. Vivemos uma situação inusitada na capital paulista: temos alta concentração de médicos e mais de 60% da população vinculada a planos particulares, faltando profissionais para atender a esse setor particular, que cresceu mais do que poderia oferecer.
Essa distribuição irregular acontece em outros países?
Sim. Mas, no Brasil, o agravante são as desigualdades acirradas. O desenvolvimento socioeconômico de certas regiões não é atrativo – e nossa dimensão continental amplia essa disparidade. Há ainda o caráter híbrido e disfuncional do sistema de saúde brasileiro, a combinação perversa do público e do privado. Estamos numa encruzilhada. Vamos apostar – nós, o governo e a sociedade – no sistema de saúde idealizado na Constituição, igualitário e justo, em que as pessoas são atendidas de acordo com as necessidades? Ou vamos apostar na privatização do sistema, um modelo excludente em que as pessoas são atendidas de acordo com o poder aquisitivo? Esse segundo é um modelo fracassado, como mostrou o caríssimo e ineficaz sistema dos Estados Unidos. Enquanto isso, países como Canadá, França e Inglaterra, que privilegiam a universalidade do sistema de saúde, em que o SUS se inspirou, são majoritariamente financiados por recursos públicos (mais de 70%). No Brasil, temos essa equação invertida. Temos um sistema universal, mas uma estrutura liberal. O privado subtrai do público não apenas recursos financeiros, mas recursos humanos e principalmente médicos. Aí a conta não fecha. A saúde virou ocasião de negócio. Era para ser um direito, mas se tornou mais uma mercadoria. Os efeitos colaterais são imensos. A saúde é uma discussão política. Lembra a abertura da Olimpíada de Londres? O sistema de saúde inglês era hasteado como um dos símbolos nacionais. A sociedade brasileira, por acaso, se orgulha do SUS?
O ministro Alexandre Padilha citou Canadá e Inglaterra como países com políticas para atração de médicos estrangeiros.
Os três – Canadá, Estados Unidos e Inglaterra – têm regras rigorosas para revalidação de diplomas. Também têm modelos para atrair profissionais, a tal trinca. Por isso há um movimento pendular muito forte nesses países. Essa não é nossa realidade. Qual será o fator atrativo para estrangeiros virem para o Brasil? É intrigante, pois não há. A experiência histórica mostra que eles não virão. Atualmente há 54 portugueses e 11 espanhóis. Não se pode esperar uma legião estrangeira.
Qual é o perfil do médico no Brasil?
É um perfil jovem, na casa dos 40 anos. A "novidade", desde 2009, é o crescimento das mulheres na medicina. Ainda é uma profissão predominantemente masculina (60%), mas as mulheres estão conquistando mais espaço. É um fenômeno global promissor. No Brasil, há 400 mil médicos – nunca tivemos tantos. De 1970 para cá, tivemos um aumento de 557%. Aí há duas questões: a formação e a distribuição. Por um lado, tivemos um boom desordenado de novas escolas médicas (muitas sem as mínimas condições, sem hospitais universitários). Por outro, a distribuição é cada vez mais irregular. E, desses 400 mil, apenas 55% estão no SUS. É muito, muito pouco. A saúde está sendo pilhada no Brasil: ficou sem os 30% do orçamento previsto na Constituição de 1988, viu o desvirtuamento da CPMF e, na regulamentação da Emenda Constitucional 29, ficou sem os 10% previstos. A medicina ainda é uma profissão prestigiada, mas tem adquirido um perfil preocupante. Atualmente, o médico lida com duas características: a multiplicidade de vínculos (tanto no setor público quanto no privado) e a carga horária excessiva (mais de 50 horas semanais). O médico se tornou refém desse sistema.