segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A Justiça cobra Maluf


O Estado de S.Paulo
Em tempos pouco propícios a corruptos e corruptores, Paulo Maluf tem até o fim deste mês, agora por força de decisão judicial irrecorrível, para devolver aos cofres do Município mais de R$ 21 milhões desviados no chamado "escândalo dos precatórios", denunciado em 1996.
Por ironia do destino, Maluf está condenado, desde 1998, na ação movida pelo Ministério Público Estadual (MPE), com base em representação feita por iniciativa de líderes do PT, partido ao qual hoje está aliado. Essa aliança se materializou, em São Paulo, com o aperto de mãos entre Lula e Maluf, selando o apoio à candidatura a prefeito de Fernando Haddad.
Aquele que se tornou conhecido, em meados dos anos 90, como "escândalo dos precatórios" foi o resultado de golpes contra o erário concebidos originalmente por um funcionário da Secretaria da Fazenda de Pernambuco, com base numa emenda constitucional de 1993 que permitiu a Estados e municípios emitir e vender títulos públicos, desde que os recursos obtidos fossem destinados, exclusivamente, a pagar dívidas devidamente reconhecidas pela Justiça e anteriores à vigência da Constituição de 1988.
Foi o suficiente para que, no âmbito do Município de São Paulo, o malufismo urdisse a fraude: o valor dos títulos era superestimado e o valor excedente desviado com o concurso de operadores financeiros inescrupulosos. O golpe disseminou-se por várias administrações municipais e estaduais, a ponto de, em dezembro de 1996, ter sido instalada no Senado a CPI dos Precatórios - que começou a funcionar com muito foguetório e chegou a poucos resultados práticos.
Em São Paulo, o "escândalo" envolveu o desvio de recursos provenientes da emissão de títulos emitidos pelo Tesouro Municipal para pagamento de precatórios. A operação fraudulenta, segundo a denúncia do MPE, foi coordenada pelo então secretário de Finanças do prefeito Maluf, Celso Pitta, entre janeiro de 1994 e novembro de 1995. No ano seguinte, Pitta elegeu-se sucessor de seu padrinho.
Na operação financeira que viria a ser denunciada por improbidade administrativa, a Prefeitura emitiu, em 1994, Letras Financeiras do Tesouro Municipal (LFTM) que, de acordo com a denúncia, foram vendidas a corretoras e depois recompradas a preços maiores. A fraude foi denunciada em representação encaminhada ao MPE por um grupo de líderes petistas, entre os quais estavam o atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, os deputados Carlos Zarattini, Adriano Diogo, José Mentor e Devanir Ribeiro (os dois últimos integrantes da Executiva Nacional do partido) e ainda o vereador José Américo.
A denúncia do MPE foi apresentada em 1996 e, dois anos depois, em dezembro de 1998, Maluf e Pitta (que morreu em 2009) foram condenados em primeira instância por improbidade administrativa. Os condenados entraram com vários recursos na Justiça, sendo invariavelmente derrotados, tanto no Tribunal de Justiça paulista quanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, em última instância, no Supremo Tribunal Federal (STF), em março de 2009, em ação relatada pelo ministro Ayres Britto. A partir de então, o Ministério Público paulista passou a reclamar na Justiça a restituição ao Tesouro Municipal dos valores desviados, à época calculados em cerca de R$ 40 milhões. No mês passado, a juíza Liliane Keyko Hioki, da 3.ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, estabeleceu um prazo até o fim deste mês para que Maluf proceda à restituição do que deve à população paulistana.
Com o mesmo desapreço pelas evidências com que sempre contestou as ações judiciais das quais tem sido réu regularmente há 40 anos, e da mesma forma que sempre jurou de pés juntos não ser titular de contas bancárias no exterior, Paulo Maluf instruiu sua assessoria a divulgar nota na qual afirma que "nunca assinou nenhum documento nos quais esse processo está baseado".
É a hoje desmoralizada tese de que a acusação de irregularidade praticada por detentor de cargo público precisa ser sustentada documentalmente por "ato de ofício" que a comprove. Por esse caminho, um dos mais famosos neoaliados de Maluf, José Dirceu, já deu com os burros n'água.

Moradores tentam flexibilizar área de preservação na Jureia


Giovana Girardi, Enviada especial - O Estado de S.Paulo
JUREIA - Pouco mais de 150 km separam São Paulo da Estação Ecológica Jureia-Itatins, no litoral sul. Trajeto que pelo ar, de helicóptero, leva só meia hora. São 30 minutos, no entanto, de uma certa sensação de perplexidade pelo choque visual entre a capital e uma das áreas mais bem preservadas do Estado de São Paulo.
Intocada: Praia do Rio Verde na Estação Ecológica Jureia-Itatins (litoral de SP) - Márcio Fernandes/AE
Márcio Fernandes/AE
Intocada: Praia do Rio Verde na Estação Ecológica Jureia-Itatins (litoral de SP)
Depois do maciço cinza de prédios, casas, asfalto, rios poluídos, ocupações irregulares em áreas de manancial, surge um cinturão verde de mata secundária, ainda com a existência de propriedades mais espalhadas. Ao entrarmos na estação pelo norte, porém, a diferença de cores e densidade da floresta tropical se faz gritante. É vegetação primária, íntegra, quase despovoada.
A preservação da área de quase 80 mil hectares em meio às pressões da expansão imobiliária foi possível por conta da sua transformação, em 1986, em estação ecológica - categoria de proteção integral, ou seja, que não permite gente vivendo nela. O local, porém, era ocupado por povos tradicionais, além de algumas casas de veraneio, e, apesar de algumas tentativas legais nos últimos anos, até hoje não foi encontrada uma solução sobre o que fazer com eles.
Um projeto de lei enviado pelo governo do Estado à Assembleia Legislativa no início do ano tenta, enfim, resolver o impasse. A ideia é criar um mosaico de unidades de conservação, com categorias variadas de proteção, sendo duas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que permitem a presença somente de população tradicional, com plano de manejo e exploração controlada dos recursos naturais, inclusive com turismo.
Seu formato foi visto como equilibrado por ambientalistas que estiveram na origem da criação da estação, como Fabio Feldmann, Maria Cecília Wey de Brito e a ONG SOS Mata Atlântica, mas desagradou alguns moradores que não foram contemplados. Eles pedem que a flexibilização atinja uma área maior.

Na época em que a estação foi criada, as possibilidades de áreas protegidas eram limitadas. Não existia o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, de 2000, que trouxe a categoria de RDS para aliar proteção ambiental e social.
Segundo cálculos da Fundação Florestal, que gere a estação, o desenho do governo contemplaria mais de 80% da população tradicional que vive hoje na Jureia. Mas, com a discussão aberta no legislativo, alguns dos moradores que ficaram de fora mobilizaram deputados para incluir outras áreas na recategorização, o que, para ambientalistas e pesquisadores de biodiversidade, pode comprometer a proteção da estação.
Um substitutivo apresentado pela bancada do PT propôs a transformação de quase metade da Jureia em RDS. O projeto, porém, nem chegou a ser defendido. Em seu lugar, foi costurada uma emenda aglutinativa que amplia o tamanho das duas RDSs previstas (da Barra do Una e do Despraiado) e cria uma terceira - a da Trilha do Imperador, englobando as praias do Una e do Rio Verde. A proposta acabou sendo levada para votação no final de junho, mas o PV obstruiu a seção. Passado o primeiro turno da eleição, a discussão deve ser retomada.
Mapa da ocupação
O imbróglio envolve uma série de questões: quantas famílias seriam beneficiadas pelas mudanças; se todas elas são tradicionais ou ocuparam a região em momento mais recente; se dependem mesmo da área para sobreviver ou hoje mantém uma residência só para uso eventual no local.
Um laudo antropológico encomendado em 2010 pelo então gestor da estação, o biólogo Roberto Nicácio, levou à criação de um mapa da ocupação (pontos vermelhos no mapa acima). O levantamento mostrou, por exemplo, que na Praia do Rio Verde (cuja foto abre esta reportagem), pleiteada para se tornar RDS, vivem só duas famílias. Na área para onde seria ampliada a reserva do Despraiado também há poucos moradores, alguns não tradicionais. Já a ampliação da Barra do Una contemplaria segundas residências.
"Não justifica criar uma RDS para duas famílias", diz Nicácio durante o sobrevoo. "De cima, fica claro que estamos falando de coisas bem diferentes", afirma se referindo à ocupação visivelmente maior da Barra do Una.
A proposta é encabeçada pela União dos Moradores da Jureia (UMJ), cujo líder, Dauro Prado, é filho de um daqueles dois moradores. O outro é seu tio. "Mas não é só para beneficiar minha família, tem outras que usam o território, pelos menos outras 20, alguns parentes que foram embora por conta das restrições."
Questionado se essas famílias residem na região, ele admite que não, mas diz que elas fazem uso de seus recursos e, com a criação da RDS, poderiam voltar. "Somos os mais tradicionais da região, estamos lá desde 1756." Nicácio lembra que isso não é permitido pela legislação das RDSs. "É para manutenção da população tradicional, que está ali na hora da criação, não para retorno."
Apesar de a UMJ se apresentar em nome de todos os moradores, associações da Barra do Una e do Despraiado disseram não se sentir representadas por ela. "Para nós o projeto está bom. Só queremos que resolva logo, para tocarmos a vida", diz Roberto de Paula e Silva, do Despraiado. "Ninguém faz manejos na área para onde querem crescer a RDS. Só tem três ou quatro famílias lá."
Riqueza biológica
Outro ponto levado em conta é a ameaça que uma exploração maior daquela região poderia trazer para a biodiversidade. A Jureia é considerada o conjunto mais primitivo de Mata Atlântica que sobrou no Estado de São Paulo - única por interligar serra e mar em 47 km de praias. A região foi declarada pela Unesco como Sítio do Patrimônio Mundial Natural e também faz parte do Conjunto Tombado da Serra do Mar pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat). Por isso, a área almejada para virar a RDS da Trilha do Imperador é tão preciosa para ambientalistas e para a pesquisa - e também tão atraente para a exploração turística.
Segundo José Pedro de Oliveira Costa, assessor da Secretaria de Meio Ambiente do Estado e um dos responsáveis pelo projeto original de mosaico, mais de 20 ecossistemas são interligados no local. "Começa nos ecossistemas marinhos, nas pradarias submersas. Depois vem a arrebentação, a vegetação de areia, o jundú, que são aqueles cordões com coqueirinhos na praia. Tem dunas, restinga, lagoas, mangue, vegetações de floresta e montanas, até os campos de altitude. É o coração ecológico da Jureia e, cientificamente, seu valor."
O secretário de Meio Ambiente do Estado, Bruno Covas, disse à reportagem que o governo defende o que está no projeto de lei. "Entendemos que é o texto que consegue, ou ao menos tenta, compatibilizar a ocupação humana com a preservação." O líder do governo na Assembleia, Samuel Moreira, afirmou que o mosaico "não pode atender quem não é tradicional ou uma, duas famílias."
Entretanto, a emenda aglutinativa chegou a ser levada ao plenário, em substituição ao projeto original. O deputado do PT Hamilton Pereira disse que quando as discussões forem retomadas, a intenção é reapresentar esse texto. Moreira não deixou claro qual texto poderá ir à votação.
Ideia de mosaicos já foi tentada há seis anos
Não é a primeira vez que se tenta compatibilizar a proteção ambiental com a permanência de moradores tradicionais. Em 2006, depois de serem feitas diversas consultas públicas, foi aprovada uma lei que transformava a estação ecológica em um mosaico de áreas protegidas.
A proposta, feita pelos deputados Zico Prado e Hamilton Pereira, criava as reservas da Barra do Una e do Despraiado e mais dois Parques Estaduais, um voltado para Peruíbe e outro para Iguape, além de um Refúgio de Vida Silvestre. E foi acrescida à área original protegida uma porção dos banhados que rodeiam a Serra da Jureia. No total, o mosaico passava de cerca de 80 mil hectares para quase 100 mil ha.
Após aprovada, com anuência da população local, começaram a ser feitos os planos de manejos. Mas o Poder Judiciário decretou inconstitucionalidade da lei por vício de iniciativa – a proposta não podia ter saído do Legislativo.
O novo projeto do governo segue em boa parte o anterior, mas atendeu aos pedidos dos moradores e ampliou um pouco mais as duas RDSs. Quando o assunto voltou a ser discutido, porém, abriu uma brecha para novas solicitações daqueles moradores que haviam ficado de fora.

Dos esquadrões ao PCC, 52 anos de violência mataram 130 mil pessoas


O Estado de S.Paulo
Das execuções do esquadrão da morte nos anos 1960 aos homicídios ordenados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) nos dias de hoje, a epidemia de assassinatos em São Paulo matou 130 mil pessoas. Ao longo de 52 anos, como em um comportamento contagioso, os assassinatos começaram a crescer. De menos de um homicídio por dia em 1960, chegou a quase uma morte por hora em 1999.
Nesse ano, a cidade registrou 63,5 assassinatos por 100 mil habitantes, taxa semelhante à dos três anos de guerra no Iraque. A partir de 2000, a exemplo das epidemias, o contágio cessou e os homicídios despencaram 77% ao longo de 11 anos. Neste ano, contudo, disputas incessantes entre policiais militares e integrantes do PCC mostraram que essa pacificação se sustentava sobre frágeis estruturas.
Como compreender essas mudanças bruscas no comportamento dos homicidas? De hoje a quinta-feira, o Estado publica uma série de reportagens para explicar a variação dos assassinatos em São Paulo.
O material é resultado de 13 anos de investigações e estudos e de mais de cem entrevistas - muitas feitas com matadores que atuaram em diferentes períodos em São Paulo. O trabalho resultou em uma tese de doutorado, defendida em 28 de agosto no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Entre 1960 e 1999, homicídios pularam de 217 casos para 6.653. Em 2000, as mortes começaram a cair

BRUNO PAES MANSO - O Estado de S.Paulo
"Para cada policial morto, dez bandidos vão morrer", bradou em novembro de 1968 o investigador Astorige Correia, o Correinha, na frente de jornalistas durante o enterro de Davi Parré, investigador morto por um traficante da zona norte de São Paulo conhecido como Saponga. O juramento antecipava a série de assassinatos praticada por policiais civis do famigerado esquadrão da morte liderado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Na semana passada, a fatídica sentença voltou a assombrar o cotidiano dos paulistas como se as 130 mil mortes ocorridas em 52 anos tivessem sido insuficientes para dar lições. O homicídio de policiais militares na Baixada Santista e em Taboão da Serra provocaram uma sequência de 20 homicídios nos bairros vizinhos. Moradores que viram o massacre apontaram PMs à paisana como suspeitos.
Em dois momentos distantes, separados por mais de meio século, a vingança continua fazendo a engrenagem dos homicídios girar. Para compreender a violência nos dias de hoje, é fundamental entender a variação dos homicídios nos últimos 52 anos. A epidemia dos assassinatos começa no fim dos anos 1960, depois que as mortes à bala passam a ser vistas como uma maneira de se manter o controle dos roubos em uma cidade que crescia desordenadamente.
Antes disso, o mundo do crime em São Paulo era quase romântico, palco dos desviantes que vagavam na boca do lixo perto da Estação da Luz e da velha rodoviária do centro. No chamado Quadrilátero do Pecado, região da Avenida Duque de Caxias, que no futuro se transformaria na cracolândia, em vez de revólveres, os malandros usavam navalhas em noitadas abastecidas por anfetaminas e destilados.
Mais do que um reduto de criminosos violentos, o submundo paulistano era palco de contravenções e contraventores que vendiam sexo, jogos de azar e drogas leves. Assassinatos, nesse tempo, eram a opção dos vilões, malvados e loucos. "Os tempos eram outros. O crime que mais assustava era o furto qualificado, quando o ladrão invadia um comércio ou uma casa quando o dono estava fora", lembra o criminalista Roberto Von Hyde, de 82 anos, que defendeu criminosos perseguidos pelo esquadrão, além de João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, que em 1967 foi preso por assaltar casas e matar quatro pessoas.
"Crimes de sangue" envolviam geralmente histórias de maridos traídos, que, movidos pelo ódio incontrolável, muitas vezes matavam a si próprios em tragédias passionais à la Nelson Rodrigues. Entre 1960 e 1965, em mais da metade dos assassinatos em São Paulo, corpos de vítimas foram encontrados dentro de casa, revelando forte associação entre esse tipo de crime e paixões domésticas mal resolvidas.
Por serem ações tresloucadas, os assassinos sofriam controle acirrado de instituições e da sociedade. Casos como o de Benedito Moreira de Carvalho, que ficou conhecido como o Monstro de Guaianases ao ser acusado de violentar e matar dez mulheres entre 1950 e 1953, tornavam o homicida um pária, odiado e caçado como personagem de filme de terror.
Mudança. A epidemia de assassinatos em São Paulo começou quando homicídios passaram a ser vistos como ferramenta para limpar a sociedade dos bandidos. Com o crescimento dos roubos e dos assaltos a banco no fim dos anos 1960, viraram instrumento de extermínio ou vingança para ser usado em benefício da população com medo.
Em vez de monstros, os homicidas que alegavam agir em defesa da sociedade e tornar a cidade mais segura se transformaram em heróis. Os chamados "presuntos" eram desovados em estradas de São Paulo, depois de serem retirados de presídios como o antigo Tiradentes.
Chefe do esquadrão da morte, o delegado Fleury - que começou em 1968 a matar suspeitos com ajuda de outros integrantes do bando - virou um dos ídolos do período, recebendo homenagens em letras de canções populares. E os métodos cruéis do esquadrão também ganharam prestígio durante o regime militar. Técnicas de tortura e assassinatos passaram a ser usadas por integrantes do Exército e da Polícia Militar no combate à guerrilha e para desbaratar os grupos de esquerda. Em 1969, Fleury estava à frente da emboscada que levou à morte do líder comunista Carlos Marighella na Alameda Casa Branca, nos Jardins.
Rota. No combate ao crime comum, policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) assumiram nos anos 1970 o posto de "caçadores de bandidos", celebrados pelo povo. "Em bairros das periferias, a população pedia para beijar nossa mão", lembra o coronel Niomar Cyrne Bezerra, ex-comandante da Rota na época.
Nos anos 1980, saiu da PM um dos principais matadores da história da cidade. O soldado Florisvaldo de Oliveira, conhecido como Cabo Bruno, morto há duas semanas depois de ficar 27 anos na prisão, iniciou sua carreira de justiceiro matando a soldo de comerciantes. Logo justiceiros pipocaram por todos os cantos de São Paulo. De forma geral, todos alegavam matar bandidos em defesa dos trabalhadores.
Em 1987, depois da prisão de Francisco Vital da Silva, justiceiro conhecido como Chico Pé de Pato, a população do Jardim das Oliveiras, na zona leste, foi em peso ao Fórum de Santana pedir sua liberdade.
Com o passar dos anos, no entanto, foi ficando mais claro que os homicídios, em vez de controlarem o crime, acabavam provocando novos assassinatos, em círculos ininterruptos de violência. Se por um lado eliminavam suspeitos, consolidavam também nesses bairros o medo da morte e estimulavam o desejo de vingança.
É o que revela a história do matador César de Santana Souza, que nos anos 1990 dizia ter matado mais de 50 pessoas no Grajaú, na zona sul. Ele praticou o primeiro homicídio por vingança, depois que um amigo foi morto em um campinho de futebol. Jurado de morte por inimigos que queriam vingança, passou a matar por razões cada vez mais banais, sempre que pressentia que corria risco de ser morto. Ele chegou a acreditar que a violência o ajudaria a dominar o bairro. Depois de um tempo, percebeu, no entanto, que homicídios serviam apenas para provocar novos homicídios. Em 2006, terminou assassinado por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) que passaram a vender drogas em seu bairro.

Grupos eram mais letais que a ditadura

O Estado de S.Paulo
Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, o esquadrão da morte representou o começo da epidemia de assassinatos. Não pela quantidade de homicídios de seus integrantes, mas por colocar em prática uma nova forma de ver o mundo e lidar com assassinatos em sociedades em processo de urbanização.
O esquadrão começou no Rio em 1958 e serviu de modelo para o resto do Brasil, inclusive São Paulo. Policiais paulistas conversavam com os cariocas antes de se organizar para matar. O Espírito Santo, Estado que liderou o ranking dos assassinatos no Brasil nos anos 1980 e 1990, também teve seu esquadrão.
Considerando levantamentos policiais do período, entre 1963 e 1975 os grupos de extermínio formados por policiais mataram quase 900 pessoas no Rio (654) e em São Paulo (200) - mais do que os 20 anos de regime militar.
9/8/1967

Vingador oficial, Fleury inicia a onda de mortes

 Estado de S.Paulo
Um delegado ligava para os jornalistas anunciando que havia um "presunto" na estrada. A fonte secreta tinha o apelido de Lírio Branco e passava a ficha criminal do morto. Em alguns casos, os matadores deixavam ao lado do corpo desenhos de caveira do esquadrão da morte. Não bastava matar. Era preciso avisar o público, pelos jornais, que os assassinos tentavam livrar o mundo dos bandidos.
Entre 1969 e 1971, mais de 200 suspeitos foram executados pelo esquadrão. O efeito dessas mortes, no entanto, transcenderam as vítimas. Aplaudidos pela população e respaldados pelas autoridades paulistas e nacionais, os assassinos consolidaram em São Paulo a ideia de que os homicídios podiam ser usados como uma ferramenta eficaz para limpar a sociedade dos bandidos, ao mesmo tempo em que aplacavam o desejo de vingança de uma população amedrontada.
"Os efeitos dos assassinatos praticados pelo esquadrão são sentidos até hoje. A limpeza social continuou sendo defendida e praticada por grupos de extermínio hoje localizados principalmente na Polícia Militar", afirma o padre Agostinho Duarte Oliveira, de 81 anos, na sede do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em São Paulo.
Amigo de infância do delegado Sérgio Paranhos Fleury, com quem jogava futebol no mesmo clube da Vila Mariana, padre Agostinho conseguiu, em 1969, autorização do secretário da Segurança Pública, Hely Lopes Meirelles, para ingressar no antigo Presídio Tiradentes, em São Paulo, onde a presidente Dilma Rousseff também cumpriu pena com outros presos políticos, separada dos presos comuns.
Conversando com os detentos, padre Agostinho descobriu como o esquadrão da morte agia. Os presos comuns eram retirados das celas nas madrugadas para serem exterminados e terem o corpo cheio de balas jogado em alguma estrada. Para provar o que falava, o religioso conseguiu a lista oficial dos presos. Como eles apareciam nas estradas com suas identidades divulgadas nos jornais, bastava checar a lista e ver quem deveria estar nas celas. "Eu comprava o antigo jornal Notícias Populares e lia o nome dos mortos para saber se eram os que estavam no Tiradentes."
Vingança. Depois da morte de Saponga, em vingança ao crime contra o investigador Davi Parré, as execuções do esquadrão passaram a se tornar corriqueiras e banais. Jornais da época contabilizavam o total de mortos anunciados pelo esquadrão. Havia uma certa tolerância com essas ações, cujas investigações eram inexistentes. Afinal, aqueles que deveriam investigar eram os mesmos que matavam.
O jornalista Afanásio Jazadji, que cobria o assunto no período, lembra quando, certa noite, atendeu um telefonema na sala de imprensa da central de polícia que existia no Pátio do Colégio e lhe disseram que havia quatro corpos jogados em um matagal em Guararema, na Via Dutra. Iniciante, ele foi apurar o crime em busca de um furo sem falar para os outros jornalistas, que continuaram jogando baralho. Para evitar que concorrentes depois chegassem ao local e reportassem a informação aos seus jornais, mudou os corpos de lugar para despistar os outros colegas. "Imagina. Naquele tempo isso era possível. Foi quando deixei de ser foca."
A situação dos integrantes do esquadrão mudou em 17 de julho de 1970, depois da morte de outro investigador. O suspeito da autoria da morte do policial Agostinho Gonçalves de Carvalho era um jovem de 20 anos conhecido como Guri. No mesmo dia da morte do investigador, oito corpos baleados foram levados ao Instituto Médico-Legal.
O promotor Hélio Bicudo, que passaria a atuar no caso do esquadrão, descobriria, com a ajuda posterior do padre Agostinho, que quatro mortos tinham sido retirados do Presídio Tiradentes. Nos dias que se seguiram, para achar Guri, Fleury e seus homens foram acusados de torturar os pais do suspeito para que eles o entregassem.
Guri acabou sendo encontrado na mata fechada de uma fazenda no Parque do Carmo, na zona leste. Os policiais chegaram acompanhados de jornalistas que descreveram a cena nos dias seguintes nos jornais. Guri foi morto com mais de 100 tiros em seu corpo, que ficou desfigurado. O homicídio, anunciado aos quatro ventos pelos policiais, provocou a reação das instituições como o Tribunal de Justiça.
Em agosto de 1970, o depoimento do padre Agostinho, de sobreviventes e de presos do Tiradentes ajudaram o então promotor Hélio Bicudo, hoje procurador aposentado, e o juiz corregedor Nelson Fonseca a iniciarem o processo que levaria ao indiciamento de 35 pessoas. Só seis foram condenadas. Apesar da dificuldade em punir, os autos trouxeram à luz informações preciosas.
Vieram à tona, por exemplo, daods de que traficantes de São Paulo eram beneficiados por mortes praticadas pelo grupo. A promiscuidade de policiais e bandidos da boca do lixo motivou várias mortes do esquadrão, que protegia traficantes amigos de rivais, como revelaram depoimentos do processo.
"A violência era tolerada porque aparentemente ocorria em defesa da sociedade, mas na verdade era usada para acobertar outros tipos de crime", lembra Bicudo, um dos principais responsáveis pelas investigações do período, hoje com 92 anos. "Os esquadrões da morte acabaram seguindo o caminho do crime. É o que costuma ocorrer. Engana-se quem acredita em um assassino", diz.