terça-feira, 11 de setembro de 2012

Nota Paulista atropela LRF sem alcançar objetivos




Coluna Econômica - 11/09/2012, por Luis Nassif


Principal bandeira do governo José Serra, a Nota Fiscal Eletrônica foi responsável por desvios bilionários dos repasses a municípios, Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), universidades estaduais e escolas técnicas.
A legislação do ICMS obriga o depósito do imposto a uma conta do Tesouro paulista no Banco do Brasil. Sobre a arrecadação bruta, 25% são automaticamente transferidos para municípios, outros 20% para o Fundeb e 9,57% para as universidades estaduais e escolas técnicas.
Nos últimos 4 anos, a Nota Fiscal distribuiu R$ 7 bilhões em prêmios e créditos distribuídos pela Fazenda. Na hora de contabilizar o valor, no entanto, a Secretaria da Fazenda valeu-se de uma esperteza: passou a considerar esse pagamento como “devolução de imposto”. Fazendo isso, evitava efetuar os repasses sobre os valores distribuídos.  Seria o mesmo que tratar os prêmios da Loteria, pela Caixa Econômica Federal, como devolução de imposto.
Fazendo isso, atropelou vários procedimentos definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
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Graças a essa manobra, nos últimos quatro anos foram desviados R$ 1,75 bi dos municípios, R$ 1,4 bi do Fundeb e R$ 683 milhões das universidades e escolas técnicas. Na verdade, dos R$ 7 bi distribuídos, o Estado de São Paulo bancou R$ 3,1 bi. O restante foi subtraído desses setores. Ou seja, fazia caridade com o chapéu alheio.
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Até hoje não foi divulgado nenhum estudo demonstrando eventuais ganhos de arrecadação com a implantação da Nota Fiscal paulista. Na época do seu lançamento, funcionários graduados da Secretaria da Fazenda indicavam o contrassenso de utilizar a NF em grandes estabelecimentos – que, por serem alvos preferenciais da fiscalização, tem baixa propensão a sonegar. Pagavam-se prêmios sem a contrapartida da redução da sonegação – já em níveis baixos.
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A fim de evitar qualquer viés político no estudo, o Conselho dos Representantes do Sinafresp recomendou a contratação de um especialista sobre as conclusões levantadas. Foi contratado parecer técnico do professor Heraldo da Costa Reis, Coordenador do Centro Interdisciplinar em Finanças da Escola Nacional de Serviços Urbanos do IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal).
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Além das irregularidades contábeis, o estudo constatou que praticamente não houve aumento na arrecadação, proporcionado pela NF. Ela incidia apenas sobre o setor varejista. Ocorre que o incremento, no período, foi no mesmo ritmo dos demais setores de atividades do Estado.
Pelos cálculos, estima-se que o resultado direto da NF Paulista foi de cerca de R$ 2,2 bi, em valores de agosto de 2012. Sendo assim, o custo final da Nota Paulista pode ter sido de R$ 4,4 bilhões.
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O estudo foi encaminhado ao TCE, MPF, universidades estaduais e Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Além das críticas, o trabalho traz recomendações para sanar as imperfeições da Nota Paulista.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O que a favela oculta


JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O Estado de S.Paulo
A frequência de incêndios em favelas de São Paulo gera compreensíveis preocupações e até suspeitas, não necessariamente fundamentadas. É preferível situar o tema, inicialmente, no contexto mais apropriado das condições fisicamente adversas e impróprias de localização dos aglomerados subnormais, como os denomina o IBGE. O tempo seco, sem dúvida, favorece esses desastres porque as habitações são construídas com materiais de fácil combustão, como madeira e papelão, são coladas uma às outras, têm gambiarras de fios expostos, botijões de gás, fogões acesos e fósforos ao alcance de crianças cujos pais, não raro, estão ausentes, no trabalho.
Os aglomerados subnormais têm localização bem determinada na geografia habitacional brasileira. Em todo o país, os 6.329 que foram identificados e recenseados em 2010 estão em apenas 323 dos 5.565 municípios. Neles vivem 6% da população. A maioria (88,6%) em 20 das regiões metropolitanas e 49,8% nas do Sudeste, e aí já, predominantemente em favelas. Um terço deles na Região Metropolitana de São Paulo e mais de um sexto na do Rio. Em São Paulo, 11% dos habitantes vivem nesses aglomerados, sendo mais de 2 milhões de pessoas. No entanto, em Belém do Pará, 62,5% da população neles vive, 26,7% em Salvador, 22,4% em Recife, 23,9% em São Luís, 13,3% no Rio, 13,2% em Teresina, 10,2% em Maceió. Portanto, um bom número das grandes cidades brasileiras já contém, em tamanho significativo, o que Lewis Munford classifica como áreas de deterioração social.
Quando se entra em casebres e até barracos de favelas, pode-se entender de imediato qual é o grande, embora não o único, fator da crescente favelização das cidades brasileiras. Muitas casas, em particular as de alvenaria crua, que não são poucas nos aglomerados subnormais, são até mais confortáveis do que as habitações de roça de onde procedem muitos de seus moradores. Quem ali mora é autor da própria moradia, capaz, sozinho ou com ajuda de amigos, de construir a casa. Muitos desses são operários da construção civil, que sabem o que estão fazendo. O que lhes faltou não foi casa ou meios e capacidade de construí-la: foi terreno.
O risco de incêndio não é o único que correm as favelas. Outras ocorrências trágicas, como as inundações, os escorregamentos ou os deslizamentos de terra têm marcado a agonia de seus moradores. Impossibilitados de pagar o preço da terra nos lugares apropriados, restam-lhes os terrenos perigosos e insalubres, até porque de mais fácil invasão, pois de maior risco.
Não obstante o cenário adverso, favela é lugar de intensa mobilidade social, provavelmente mais intensa do que na média da sociedade brasileira. Os barracos de madeira e cartão constituem, quase sempre e felizmente, apenas o primeiro degrau de uma lenta ascensão social, que culminará com o casebre de alvenaria em terra alheia e até mesmo a migração para a casa em terra própria. Barracos de favela são moradias de passagem, o que se nota em seu animado "mercado imobiliário". Isso não torna as favelas aceitáveis. É preciso compreender essa sociedade peculiar que surge e prolifera à margem da sociedade dominante às custas de engenhosas estratégias de sobrevivência.
A grave questão social dos aglomerados subnormais esconde problemas que essa sociedade não quer enfrentar. Neles vive a não insignificante população de mais de 11 milhões de pessoas. É neles que está uma parte da força de trabalho, particularmente relevante se considerarmos que sua maior concentração se encontra nas regiões economicamente mais desenvolvidas. É neles que habitam muitas das empregadas domésticas, dos trabalhadores braçais, sobretudo os da construção civil, muitos dos trabalhadores do chamado setor de serviços, como limpeza e jardinagem. Seus salários sabidamente baixos são complementados pelo barateamento das condições de vida, em particular as da habitação. Subsidiam, com sua pobreza, o bem-estar da classe média que do seu trabalho se beneficia e depende. O discurso moral e religioso sobre a pobreza até hoje não conseguiu tocar no ponto complicado da questão: a funcionalidade econômica da miséria numa sociedade como a nossa. É significativo que na campanha eleitoral destes dias o eleitorado se defronte com uma briga de comadres e uma troca de maledicências e não tenha ouvido ainda uma palavra corajosa e competente sobre o gravíssimo problema das favelas, dos cortiços e dos moradores de rua e sobre quanto grandes cidades como São Paulo deles dependem.
Se se fizesse a conta de quanto custam aos governos, e a todos nós, pelos enormes problemas que sofrem no socorro de que carecem nos incêndios, nas inundações, nos deslizamentos, nas questões de saúde agravadas pelas más condições de vida, nas políticas sociais compensatórias, provavelmente ficaria mais fácil encontrar a saída para esse problema social. Como se fez no fim da escravidão: foi só comparar o preço do escravo com o custo do trabalho livre para que a Lei Áurea fosse assinada.

O Facebook como espelho



Ainda me lembro da época em que o público de um espetáculo musical estava lá para ouvir música, talvez para cantar e dançar, certamente não para fotografar e ser fotografado.
Silenciosamente algo mudou. A popularização das câmaras e das redes de compartilhamento parece ter despertado até nos mais tímidos uma compulsão por mostrar tudo o que é vivido, mesmo que seja um acontecimento banal.
"Se não fotografou e não publicou, então não existe." O exibicionismo é expresso em páginas, video-casts, perfis e linhas do tempo que parecem relatórios clínicos de narcisistas compulsivos, em suas várias formas: fotografias com caras e bocas, opiniões rasas a respeito de praticamente tudo, vídeos em que nada de interessante acontece e a triste alegria coletiva com o grotesco e a humilhação.
A exposição é razoavelmente recente. Uma das primeiras autobiografias dedicadas ao registro do cotidiano é "Confissões", de Rousseau. Arrojado e provocador para o século 18, o iluminista francês ficaria chocado com o tamanho da exibição de hoje. Desde os anos 1980, quando yuppies, computadores pessoais e o culto ao corpo abriram canais para a expressão individual, o particular é cada vez mais público e amplificado.
Celulares e redes de compartilhamento transformaram os 15 minutos de fama em uma espécie de "Show de Truman" universal, em que registros banais e confissões diversas tornaram todos um pouco inseguros, verificando a composição de sua figura no espelho do Facebook e corrigindo seu discurso e conduta de acordo com as menções e aprovações recebidas.
Nem o Narciso mitológico seria tão autocentrado. Aquele que morreu afogado ao se apaixonar por sua figura refletida em um espelho d'água poderia argumentar que não sabia que via um reflexo. Como muitos usuários de redes sociais, ele se apaixonou por uma tela e sucumbiu ao confundi-la com a realidade.
Essa confusão entre o real e o fictício publicado é uma das faces mais assustadoras do narcisismo digital. Muitos têm uma visão de realidade tão distorcida pela percepção alheia, tão fragmentada e amplificada pelos perfis e grupos a que pertencem, que geram especulações maiores do que pode supor sua vã fenomenologia.
A vida na vitrine da interface, livre da moderação e da compostura que qualquer grupo social demanda, cria uma gigantesca câmara de eco, em que mensagens são referências de referências de referências, perdendo significado e substância no processo.
O sucesso de uma trilogia pornô, derivada de uma fantasia de fã da série "Crepúsculo", que por sua vez é derivada das clássicas histórias de vampiros, é o exemplo mais recente.
Impulsionado pela indicação do amigo do amigo do amigo nas redes sociais, "50 Tons de Cinza" se transformou no maior best-seller do país que um dia foi de Shakespeare e Charles Dickens.
Há uma certa melancolia na situação. Ambientes que permitem tanta exposição e manifestação de identidades múltiplas demandam coerência de pensamento para que seus atores não se tornem reféns das personagens que representam.
Sem contar que todo esse egocentrismo é muito, muito chato.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blogwww.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.