A função do abecedário é fornecer o conjunto de ferramentas com as quais construímos os pensamentos, os discursos, as relações. Cada modo de reorganização das letras – e eles são infinitos – representa acesso a planos do entendimento, de nós e dos outros, que vão do familiar ao aberrante. Existe o que é consensual e ponto final (ok, quase consensual), o que é particular (até descobrirmos que o outro pode ser uma variante do eu) e o escandaloso. Palavras, frases, discursos, romances, teses e tratados podem confortar ou desestabilizar. Vladimir Safatle escolhe a segunda opção.
Alfabeto das Colisões – Filosofia Prática em Modo Crônico, livro mais recente do professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e do Instituto de Psicologia (IP), ambos da USP, reúne textos publicados na Folha de S. Paulo, El País, revista Cult e mais material inédito. Organiza-se como um conjunto de crônicas cujos títulos compõem as letras do alfabeto. Mas elas seguem-se embaralhadas, F após Q, S precedendo I. Quem disse que a ordem precisa ser sempre a mesma?
Volume de “filosofia prática”, como o próprio autor apresenta. Filosofia que circula entre ética, estética, política e clínica para rachar o piso de certos lugares-comuns da reflexão, da deliberação e da ação. Um filme sobre a ruína de um casal, o divórcio e o surgimento de um duplo monstruoso. Fotografias que ora denunciam a falência das sociedades capitalistas, ora celebram sua monumentalidade diante dos indivíduos. Relatos da agonia de uma fábrica ocupada por trabalhadores no interior de São Paulo. As maçanetas de Wittgenstein. Tensões entre psiquiatria e psicanálise. Todos exemplos de acontecimentos geradores para o exercício da experiência filosófica em tempos de crise.
“Na época em que o capitalismo conseguiu transformar até mesmo o que antes se entendia como ‘intimidade’ em espaço maior de extração da mais-valia, na era em que os padrões de visibilidade de si, de narrativa sobre si estão profundamente codificados em uma lógica gerada nos estertores mais capitalizados da indústria cultural e de suas redes sociais, há quem acredite que a primeira pessoa do singular é a perspectiva política por excelência. Na era dos tutoriais de poses para se fazer em fotos de si mesmo, explodir a primeira pessoa seria talvez uma desorientação politicamente mais transformadora.”
A linguagem é acessível, coerente com a origem jornalística de boa parte dos textos, e Safatle é habilidoso em criar sínteses potentes para alimentar publicações no X e no Instagram. “Há algo que chamamos ‘pensar’ e que nada tem a ver com raciocínio e argumentação”, escreve no início do capítulo Filosofia. “Tem a ver com a capacidade de se deixar violentar por aquilo que só se pensa sob a sombra do involuntário, sob a sombra dos corpos que parecem entrar em órbitas interditadas. Ganharíamos mais se aceitássemos que pensar é uma forma autorizada de violência contra si, contra aquilo que ‘si’ descreveu até agora.”
O juízo aqui não é um demérito, obviamente. O autor sabe em que mundo vive e demonstra habilidade para fazer da filosofia matéria instigante e pervasiva sem demonstrar concessões. Não chega a ser pop, porque não é inofensivo. Trata-se, em realidade, de nutrição para o pensamento. “Alimento pra cabeça nunca vai matar a fome de ninguém”, escreveu certa vez o adolescente Renato Russo, quando ainda fazia punk rock no Aborto Elétrico. Talvez não mate, mas Safatle parece acreditar que dá forças para ir buscar o peixe.
Seu trabalho consiste em pegar certos temas e aplicar torsões nos entendimentos costumeiros. Por exemplo, no capítulo Quebrar, a aposta é na postura de “insegurança ontológica fundamental”. Em um período no qual certezas são exigidas e regurgitadas por todos os cantos, que sucesso é termo-mantra de coachings, influencers e missionários, o autor afirma que precisamos, na verdade, aprender a cair, porque, sendo seres em relação, fomos feitos para quebrar.
Em outro lugar, a crítica parte da experiência clínica. Desejo de diagnóstico psiquiátrico como estratégia contra o sofrimento, por um lado. De outro, patologização como método de adaptar sujeitos a uma sociedade doente. Resultado: “apenas uma forma mais brutal de adoecê-los”, pois diagnosticar é internalizar “desvios” e “doenças” e, assim, governar administrando o que não se conforma. A sugestão é recusar o rótulo do patológico e aceitar o desamparo da singularidade dos pensamentos e emoções, não como algo negativo, mas a própria possibilidade da emancipação. Em outras palavras, recusar o conforto dos vereditos psiquiátricos e abraçar o terremoto do desamparo.
Se quebra e desamparo não são exatamente os termos que se esperaria encontrar ao final de um volume de ética voltado ao grande público, é porque Safatle tem em mente as colisões que batizam sua obra. Nada termina resolvido ao final dos capítulos, mas o que resta ao leitor são os estilhaços da pancada entre as reflexões do autor e os objetos que analisa. São provocações ao pensamento, que fraturam algumas ideias mais ou menos bem aceitas sem desatar soluções, mas oferecendo pontes para mais questionamentos.
Como a discussão sobre o “falar de si”, que surge lá pela metade do livro. Habitando uma época que viu nascer esse tipo específico de fala, naturalizamos a necessidade do discurso sobre nossa singularidade e nossas experiências. Chegamos mesmo a fazer dele processo de cura, como se vê na psicanálise. É preciso falar de si nas redes sociais, gerir a própria imagem, transformar a intimidade em propaganda daquilo que colocamos à venda (seja um bem material ou nossa própria força de trabalho).
“Durante anos, por exemplo, houve quem acreditasse poder lutar por emancipação falando em ‘empreendedorismo da multidão’, ‘empreendedorismo periférico’ e outras coisas da mesma natureza. No entanto, isso não era luta nenhuma. Era apenas a expressão de que havíamos perdido tão profundamente que estávamos a mostrar como perdemos até mesmo nossa gramática. Falávamos como CEOs com um ‘rosto humano’ e o mundo que poderíamos prometer era apenas uma versão pretensamente mais leve do mesmo mundo que nos acorrentava. Havíamos esquecido que ‘empreendorismo’ não é apenas uma forma de ação econômica. Ele é uma forma de violência social, pois pressupõe organizar relações a partir da generalização da lógica da concorrência, da redução instrumental dos objetos à condição de ‘capitais’, da redução da ação à dinâmica de produção do valor.”
Safatle indica a questão, contudo: até que ponto esse falar de si não é, ao contrário do que o senso comum aponta, fonte de sofrimento e imposição? Em vez do falar de si, não existiriam situações que demandam certo falar do outro ou mesmo um “falar como outro”? “Há momentos em que falar de outros, falar com a voz de outros, é a única fala verdadeira, por indicar o que está em movimento de se tornar algo distinto”, escreve o autor. “Há a voz das coisas e dos objetos, há a voz de outros em nós. Essas vozes são uma universalidade de combate no interior de todo corpo singular.”
O jeito de fazer isso fica por conta das próprias reflexões do leitor. A colisão se deu, resta a escolha por tentar restaurar as formas originais ou extrair do impacto algo novo. Como acontece nas ponderações a respeito de uma propaganda que sugere ao consumidor ser normal. Quando a publicidade de um supermercado pretende anular nossa distância em relação à gramática das mercadorias, o que é ser normal?
Ou quando um desfile militar para altas autoridades incorpora em seu repertório musical temas de festas rave dos anos 1990, nos fazendo pensar sobre os atributos do poder. E, ao finalmente constatarmos a identidade entre progresso e destruição global, talvez a saída não seja entender que o progresso, até agora, foi na verdade um fracasso? Não seria só a partir dessa consciência que poderíamos realmente caminhar para algum tipo de “progresso”?
Uma “escrita em farrapos”, último reduto para a redenção, classifica o autor. Diante de uma realidade em crise, Safatle recusa tanto a venda rasteira de ilusões quanto o pessimismo sentimental, nem as conclusões agridoces e tampouco as soluções de compromisso. Situa-se no exemplo de Karl Marx, que durante os acontecimentos da Comuna de Paris, em 1871, escreveu ao amigo Ludwig Kugelmann: “Seria muito cômodo fazermos a história universal se nos engajássemos nas lutas apenas à condição de nos sabermos vitoriosos”. Alfabeto das Colisões, assim, é combustível para batalhas. Mesmo aquelas que já se sabem derrotadas. E isso não é um problema, pois, como lembra o autor, o que é exatamente uma derrota? E por quanto tempo uma derrota é uma derrota? Os caminhos não são simples, mas podem ser trilhados.
Alfabeto das Colisões – Filosofia Prática em Modo Crônico, de Vladimir Safatle, Ubu Editora, 160 páginas, R$ 59,90.
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