sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Como o rabo de galo migrou dos botecos paulistanos para a alta coquetelaria mundial, FSP

 LAURA LEWER

SÃO PAULO

Nos botecos da São Paulo dos anos 1950, cachaça e vermute eram misturados em um copo de shot para reproduzir uma bebida recém-criada. Nas mãos do cliente, o consumo seguia o mesmo ritual da pinga, velha conhecida dos brasileiros —parte do líquido era derramada em homenagem ao santo e outra era despejada dentro da boca. Uma pancada com o copo no balcão arrematava a performance. Assim se espalhava o rabo de galo, nascido e criado na capital paulista.

Mas a receita, que logo se tornou obrigatória nos pés-sujos da cidade, não teve uma origem orgânica. Tudo começou com uma jogada da fábrica do vermute Cinzano, da Itália, que desembarcou no Brasil para molhar o bico dos imigrantes que moravam aqui. O que eles não esperavam era que o paladar italiano já estivesse conquistado pela aguardente local.

Para recuperar clientes e conquistar os cachaceiros brasileiros, a empresa decidiu unir o melhor dos dois mundos e criou copos de shot específicos para a nova mistura, com marcações que indicavam a proporção de cada bebida.

De olho nos hábitos do país, reforçou o fundo dos copinhos com uma grossa camada de vidro para que eles não se quebrassem quando fossem batidos no balcão. O nome escolhido foi uma tradução literal do que era a bebida —um coquetel, ou "cocktail", em inglês, e, portanto, rabo de galo.

Quase sete décadas depois, a mistura perdeu a fama de bebida exclusiva de botecos e hoje aparece com frequência cada vez maior em cartas de bares descolados e da alta coquetelaria paulistana.

Em alguns, fica reservada às seções do cardápio dedicadas aos clássicos brasileiros, como o bombeirinho e a caipirinha. Em outros, ganha nova roupagem com vermutes artesanais e receitas mais elaboradas feitas por alguns dos bartenders mais relevantes da capital. A única ordem, dizem, é manter a cachaça na receita.

"As nossas bebidas evoluíram e hoje temos a possibilidade de fazer releituras do rabo de galo sem esquecer de sua origem. Temos como servir em taças, em copos de cristal, com gelos especiais, fazer infusões, criar bitters, coisas que não existiam antes", diz Mestre Derivan, bartender e criador do Concurso Nacional de Rabo de Galo, que faz sua quarta edição no dia 13 deste mês.

Para Márcio Silva, consultor internacional de bares e apresentador do reality show de coquetelaria Bar Aberto, parte da valorização do coquetel nos últimos cinco anos surge também de uma vontade dos bartenders de educar o paladar das pessoas para boas cachaças. "O drinque foi enaltecido muito pela explosão do negroni pelo mundo. Quem começou a beber o negroni passou a adaptar o paladar para sabores mais pungentes. E aí passam a gostar do rabo de galo, é uma evolução do gosto", explica.

Mestre Derivan diz que a bebida só chegou tão longe porque faz parte do imaginário brasileiro. "Dificilmente você acha uma família em que o tio ou um pai não bebiam o rabo de galo em suas épocas de estudantes", conta.

Segundo ele, que há alguns anos embarcou na empreitada para que o coquetel seja incluído na lista da IBA (Associação Internacional de Bartenders) como um clássico internacional, o coquetel já está mais do que pronto para alçar novos voos. "O rabo de galo não é mais paulistano ou brasileiro, é do mundo. Ele está na França, nos Estados Unidos, no Japão, na Áustria, em Portugal, na Inglaterra. Já tomou conta de tudo."

Veja, abaixo, onde beber o rabo de galo em sua receita original ou em releituras criativas em cinco bares da cidade em que ele foi criado.

Bar Brahma
O bar que fica na mais famosa esquina paulistana é o único que serve uma releitura do Mestre Derivan. Por R$ 34, bebe-se a mistura com cachaça umburana, um vermute feito pelo próprio bartender, bitter de chocolate com café e casca de laranja-.
Av. São João, 677, centro. Instagram @barbrahma


Caos
No bar, que também funciona como loja de antiguidades e estúdio de tatuagem, é possível tomar shots da versão original do coquetel e também de uma adaptação mais adocicada, chamada de Rabo de Galinha —criada por Ane Moraes, a bartender da casa, leva cachaça com infusão de canela e xarope artesanal de gengibre. As duas versões custam R$ 13 cada uma.
R. Treze de Maio, 174, Bexiga. Instagram @caosbar.sp


Giro
Em Pinheiros, o bar serve o drinque em sua seção mais brasileira, ao lado de clássicos como bomberinho e caipirinha. Por lá a bebida, vendida por R$ 32, é feita com cachaça, vermute tinto e bitter.
R. Padre Garcia Velho, 26, Pinheiros. Instagram @girobar_


Kaia
O bar na região central é outro que aposta no clássico para o cardápio. O copo recebe uma mistura da cachaça Arbórea, Cynar —que foi incorporado à receita original nos anos 1970— vermute e suco de limão-taiti. Custa R$ 25.
R. Marquês de Itu, 413, Vila Buarque, tel.: (11) 3222-2075. Instagram @kaia.sp


Mocotó
O restaurante de comida sertaneja da zona norte apresenta a versão criativa Galo do Zé (R$ 28,90), que leva cachaça envelhecida em carvalho, licor de alcachofra, licor triple sec e laranja desidratada.
Av. Nossa Sra do Loreto, 1.100, Vila Medeiros, tel.: (11) 2951-3056 Instagram @mocotorestaurante

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