Pode acontecer de um obituário ter sido escrito por alguém que também já morreu
A morte de Eric Bentley, talvez o ensaísta mais importante da história do teatro, no dia 5 último, em Nova York, não mereceu uma linha na imprensa brasileira. Bentley era inglês, radicado nos EUA e estava com 103 anos. Foi o homem que divulgou, traduziu e explicou Bertolt Brecht para o público americano. Produziu também o maior corpo crítico sobre Bernard Shaw e, em 1971, juntou os interrogatórios do macarthismo num livro de 992 páginas, “Thirty Years of Treason”.
Bentley veio ao Brasil em 1988 e entrevistei-o para o Estadão. Brecht, segundo ele, era importante como encenador, não como teórico, o que explicava que, já então, suas peças tivessem “perdido o gume político”. As de Bernard Shaw, ao contrário, continuavam “uma homenagem à inteligência”. Mas, para Bentley, Shaw não ficava bem na Broadway, porque os atores americanos eram fracos nas falas longas: “Não sabem dizer parágrafos, só frases. Tendem a pôr um ponto nas passagens que foram escritas entre vírgulas”.
O obituário de Bentley no New York Times saiu no dia seguinte à sua morte e é uma aula de resumo biográfico e analítico de sua vida e carreira. Foi assinado por Christopher Lehmann-Haupt, antigo editor de obituário do jornal. No pé do texto, uma informação: Lehmann-Haupt morreu em 2018.
Significa que o artigo já estava pronto antes de 2006, que foi quando Lehmann-Haupt se aposentou no jornal, aos 72 anos. Naquele ano, já Bentley tinha 89 e tudo indicava que partiria antes. É prática comum da imprensa preparar com antecedência obituários de pessoas importantes e em idade avançada. O incomum é que o autor do obituário morra antes do personagem.
Eu devo saber. Em 1995, a Folha me pediu o obituário de Dercy Gonçalves. Ela tinha 90 anos; eu, 47. E não é que Dercy só foi morrer em 2008, aos 104, e, nos três anos anteriores, tive de pular várias fogueiras e quase fui embora primeiro?
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