O projeto de reforma tributária do Ministério da Economia, que acaba com o PIS/Cofins e cria a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), responsabiliza plataformas de comércio eletrônico pelo recolhimento do tributo.
Em outras palavras, aplicativos de compras, inclusive os de alimentos, e os marketplaces, que têm crescido durante a pandemia, ganham a responsabilidade de recolher o novo tributo de terceiros.
Nas regras atuais, não existe uma definição clara do papel dessas plataformas digitais e a iniciativa do governo já causa controvérsias.
Na exposição de motivos do projeto, o Ministério da Economia diz que a nova regra segue as recomendações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para adequação do sistema de tributação do consumo à economia digital.
Ana Cláudia Akie Utumi, sócia-fundadora de Utumi Advogados, diz que já há decisões judiciais no Brasil que responsabilizam as plataformas pelo recolhimento de tributos e que há uma tendência internacional de tentar transferir essa responsabilidade.
"Não é uma coisa só brasileira. A OCDE, há algumas semanas, soltou uma publicação falando da importância de as plataformas digitais compartilharem informações com os fiscos, para que eles tenham mecanismos melhores de fiscalização e responsabilização", afirma a tributarista.
Segundo a advogada, a medida gera uma série de complicações para essas empresas. Em especial, no caso das importações, pois os intermediários terão de reter antecipadamente parte do dinheiro da venda para garantir o pagamento do tributo. Além disso, terão de acompanhar a logística da importação, para recolher a CBS no momento em que houver o desembaraço aduaneiro no Brasil.
"É uma medida pesada, porque obriga essa plataforma a ser um fiscal, uma extensão da Receita Federal. Por outro lado, há uma tendência internacional nesse sentido", diz.
Para alguns advogados tributaristas, a proposta do governo fere o CTN (Código Tributário Nacional) e deve ser revista pelo Congresso ou mesmo questionada no Judiciário.
De acordo com o projeto, as plataformas digitais serão responsáveis pelo recolhimento da CBS sobre a operação realizada por seu intermédio, nas hipóteses "em que a pessoa jurídica vendedora não registre a operação mediante a emissão de documento fiscal eletrônico".
No dia em que o projeto foi divulgado, o Ministério da Economia informou que essa responsabilidade se aplicaria a "plataformas de vendas entre pessoas físicas", mas o texto enviado ao Legislativo acabou por tratar apenas de pessoas jurídicas.
Para a Abcomm (Associação Brasileira de Comércio Eletrônico), isso afeta principalmente microempreendedores individuais (MEI). A venda de produtos usados por empresas também seria tributada.
Outro ponto polêmico é que o governo abriu quatro exceções, tirando a responsabilidade de plataformas de fornecimento de acesso à internet, processamento de pagamentos, publicidade ou procura de fornecedores, desde que não cobrem pelo serviço com base na venda realizada.
Para não ter responsabilidade, a empresa só pode realizar uma das quatro atividades. Se realizar duas delas, já seria responsabilizada pelo recolhimento do tributo de terceiros, segundo a Abcomm.
O diretor jurídico da entidade, Guilherme Henrique Martins Santos, diz que plataformas que publicam anúncios e cobram taxa por eles vão ser enquadradas na lei, mesmo que não façam a intermediação do pagamento pela venda.
"Miraram no MEI, mas parece que acertaram um pouco além. Aquele pequeno empresário que vive de plataformas eletrônicas vai ser onerado. É evidente que as grandes empresas de marketplace vão ter de repassar esse custo. Isso vai ser um estímulo à informalidade", afirma Santos.
Ainda segundo o texto da norma, na importação feita por pessoa física, os fornecedores estrangeiros e plataformas digitais também ficam responsáveis pelo recolhimento da CBS. Para isso, precisam fazer cadastro simplificado via internet na Receita Federal. Está mantida a isenção para remessa sem valor comercial ou pequenas encomendas de pessoa física.
Patricia Azevedo, advogada tributária do Kincaid | Mendes Vianna Advogados, afirma que essa mudança não pode ser feita por projeto de lei ordinária, que é o caso da proposta do governo, pois contradiz o Código Tributário Nacional. Seria necessário outro projeto, de lei complementar, que precisa de maioria absoluta para ser aprovado (41 senadores e 257 deputados).
"A norma está extrapolando a competência dela. Esse formato de lei não se presta para estabelecer esse tipo de responsabilidade", afirma Azevedo.
Ela diz também que a regra prejudica pessoas que utilizam o comércio eletrônico para viabilizar pequenos negócios, além de gerar uma responsabilidade para as plataformas que não deveria ser delas.
"A mercadoria não é dela, a receita não é dela. A plataforma tem receita sobre intermediação, sobre a qual incidiria a CBS, mas não sobre a receita de outro contribuinte."
O advogado Pedro Siqueira Neto, da área tributária do escritório Bichara Advogados, diz que já faz um tempo que os governos tentam empurrar a responsabilidade de fiscalização para as empresas de marketplace e que o projeto de lei deixa isso explícito.
O projeto, no entanto, entra em conflito com o artigo 128 do Código Tributário Nacional, que diz que "a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação".
"Você pode imputar a responsabilidade a quem tem vinculação jurídica com o fato gerador, mas tem de praticar o fato gerador junto. O marketplace não pratica. Quem pratica é o comprador e o vendedor", afirma Siqueira Neto.
PARA GOVERNO, MUDANÇA SEGUE TENDÊNCIA GLOBAL
Na exposição de motivos enviada ao Congresso junto com o projeto de lei, assinada pelo ministro Paulo Guedes (Economia), o governo diz que relatório da OCDE de 2015 já relatava as dificuldades das administrações tributárias em cobrar o imposto sobre valor adicionado nas transações internacionais B2C (Business to Consumer) e que o princípio da cobrança no destino, com diz o projeto do governo, deveria ser mantido a fim de manter a neutralidade nas transações entre países.
"Assim, ficou mantida a tributação incidente na importação realizada por não contribuinte, sendo a responsabilidade pelo recolhimento atribuída aos fornecedores estrangeiros", diz o ministério no texto enviado ao Congresso.
"A responsabilidade das plataformas digitais também foi imposta aos estabelecimentos brasileiros, mas apenas nas hipóteses em que não houver registro em documento fiscal por parte dos fornecedores de bens."
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