segunda-feira, 27 de abril de 2020

‘‘Querem cortar combustível do Posto Ipiranga”, afirma Delfim Netto, OESP

Sonia Racy
27 de abril de 2020 | 00h40

ANTONIO DELFIM NETTO FOTO WERTHER SANTANA ESTADÃO
Ex-ministro da Fazenda, Agricultura e do Planejamento (cargos exercidos durante a ditadura militar), Antonio Delfim Netto está atônito com as últimas notícias vindas de Brasília, inclusive a que levanta a possibilidade de Paulo Guedes deixar o ministério da Economia. “Como a gente costuma brincar aqui, parece que querem cortar o combustível do Posto Ipiranga”, diz.
Questionado sobre o programa Pró-Brasil da ala militar do governo Bolsonaro, lançado terça-feira e apoiado em cinco power points, o pai do “milagre econômico” dos anos 70 avalia: “Permita-me dizer, primeiro, que nunca houve milagres, seria um efeito sem causa. Houve sim, o duro trabalho. No caso desse projeto, trata-se de coisa de amador produzidas por mágicos atacados por um keynesianismo hidráulico, semelhante aos planos do governo Geisel”, explica o economista.
Ele relembra que o general- presidente adorava gráficos exponenciais no papel e que nunca viraram realidade. “Toda vez que os militares se envolvem em programas econômicos, revelam saudades do velho ‘tenentismo’ e terminam muito mal”. Para Delfim, o último a tentar um projeto deste tipo foi o general Albuquerque Lima, que “fez um curso madureza na Cepal e formulou o programa que encantou a famosa linha dura. Se tivesse ido à frente, o País tinha afundado”.
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O economista de 91 anos pondera que o Brasil inicia um processo que “vai se desenrolar dolorosamente”, acreditando que Bolsonaro até pode sofrer impeachment mas jamais vai renunciar. “Minha convicção é que o MPF, juntando o que é conhecido pelo STF, vai saber quem financia e quem financiou, quem promoveu e quem continua promovendo os ataques às instituições, quem estava por trás das fake news. Os porões do Planalto e os filhos de Bolsonaro estão nisso até a cabeça”, desconfia.
Amparado também pela experiência de 20 anos como deputado federal por São Paulo (de 1987 a 2007), Delfim Netto salienta que o grande problema de Bolsonaro diante da crise (não a da covid-19) é que, apesar do vasto passado como deputado, pouco fez.
Grupo de risco do vírus que atacou primeiro a China, Delfim conversou com a coluna por telefone, de sua casa, na capital paulista, sábado.
O que o senhor achou da defesa de Bolsonaro frente às acusações de Sergio Moro depois de entregar o cargo?  
Acho que o presidente, no seu discurso, não entendeu o que estava fazendo direito, ou o que ele tinha que fazer – aliás, quando invocou aquelas histórias todas. E depois, achei triste convocar todo seu ministério, coloca-los de pé, ali, para assistir aquilo. Houve rebaixamento do governo.
Diante do ocorrido sexta-feira, seria o caso de Bolsonaro renunciar agora, como sugere FHC?
Mesmo se fizesse isso, processos jurídicos já em pauta continuariam andando. E parece que vão atingir, de maneira muito grave, a família Bolsonaro bem como industriais e comerciantes que financiaram todo esse projeto. Acho que não tem mais como voltar atrás. Se Bolsonaro ainda tem alguma esperança de que pode vencer, não vai renunciar.
A iniciativa privada financiou ações como as que vimos das fake news?
Seguramente. O financiamento disso tudo, desde o início do governo Bolsonaro, todos esses ataques às instituições nacionais, vem do setor privado. Não tem investimento do setor público isso. Mesmo porque hoje existe um controle muito maior e existe uma imprensa realmente investigativa.
Paulo Guedes permanece?
Ele está cumprindo seu papel, mas, na minha opinião, a situação dele, aparentemente, mudou muito. Como a gente costuma brincar aqui, acho que querem cortar o combustível do Posto Ipiranga. O ministro tem ideia do Brasil grande, mas aquele power point apresentado pelos militares só traz desejos. Eles não estão entendendo as consequências da destruição das finanças que esse plano vai produzir. Minha convicção é que esse processo vai se desenrolar dolorosamente.
Além da economia e das questões políticas, está preocupado com o coronavírus?
Estou bem escondido, compreende? Mas sabendo que, em algum momento, todos nós vamos ter contato com o vírus. E se todos nós estivermos imunizados, ele vai virar uma gripe simples. Porque vão descobrir uma vacina, vão descobrir um remédio. Isso faz parte da história do homem. Desde que ele se tornou sedentário, se fixou na agricultura e passou a domesticar animais. Estamos diante de um fato da natureza.
Tem gente achando que a pandemia é a terceira Guerra Mundial.
Se for, a China já ganhou. Não é não. Em geral, essas pragas vêm do Oriente, porque eles têm hábitos alimentares muito diferentes, comem todo tipo de bicho.
Acha que o SUS está preparado para enfrentar a pandemia?
O SUS é um grande instrumento, talvez um dos melhores do mundo, mas as pessoas têm mania de subavaliá-lo. Só agora é que estão elogiando, mas todos nós, que temos noção das coisas, sabemos que é um instrumento espetacular. Sempre achei que, para você ter soberania nacional, precisa de autonomia alimentar (e nós temos), de autonomia energética (e nós temos) e de uma força dissuasiva – para podermos viver em paz. Hoje eu vejo que há uma quarta condição, que os economistas não enxergam porque ela só tem valor, só tem taxa de retorno, quando você vive um cenário de pandemia: a saúde. Nós podíamos ter construído um nível de proteção do SUS capaz de enfrentar qualquer pandemia, devíamos ter investido muito mais. Mas os economistas pensam no curto prazo: por que colocar recurso na saúde se tenho essas outras áreas A, B e C muito mais efetivas? De fato, no curto prazo, podemos ter taxas de retorno maiores, mas agora estamos vendo que investir cuidadosamente na saúde, de forma a manter a estrutura capaz de enfrentar crises como esta, tem um valor infinito.
E quanto ao futuro do capitalismo? Acabou a era do domínio do sistema financeiro?  
Como o governo tem déficit de permanência, o sistema financeiro recorre à nossa poupança e compra papéis do próprio governo. Normalmente, esse é um dos grandes problemas. O sistema financeiro deveria estar trazendo recursos. Porque o governo é muito maior do que dizia ser, não cria recurso nenhum, é um mero transferidor de recursos e, para transferi-los, cobra um preço enorme. O fato é que toda essa casta que se apropriou do poder continua com seus salários intocados. Acho que uma redução dos salários traria dois efeitos positivos: melhoraria as finanças e, como eles passariam a trabalhar menos, o Brasil cresceria mais.
Qual o papel do Estado em um novo desenho?
O papel que sempre teve, ele existe porque o homem, sem o Estado, acaba criando o regime do mais forte. Quando você cria o Estado, entrega um pedaço da sua liberdade a ele. E o que espera em troca? Que ele vá te proteger. Que a lei te proteja. Porque você entrou em um acordo, criou uma Constituição e essa Constituição vai regular o comportamento do Estado. Por isso que, em cenários como este, de pandemia, o último recurso é o Estado. Porque só ele pode mobilizar os recursos na direção que deseja.
E a ideia do Estado mínimo?
Nunca existiu a ideia de Estado mínimo. Isso é uma injustiça com os economistas. Você tem de ser muito burro, tem de nunca ter lido um livro de antropologia, nunca ter lido um livro sobre a história do homem para defender uma ideia como essa. Porque o Estado foi o instrumento por meio do qual o homem se civilizou. E isso desde que começamos a nos unir, nos fixar em determinados locais e nos dedicar à agricultura e à pecuária.
Acredita que, como a velocidade de tudo no mundo hoje é dinâmica, esta pandemia tende a desaparecer mais rapidamente?
Acho que, se tivéssemos tido a capacidade de prever que a pandemia um dia viria, teríamos investido muito mais recursos no SUS e nos preparado para enfrentá-la. Tínhamos de ter estrutura para que, quando ela surgisse, pequenos movimentos e ajustes pudessem resolver o problema. Agora, estamos enfrentando uma condição moral, de ter de escolher quem vive e quem morre. Assisti na TV, estes dias, a um médico italiano chorando, dizendo que teria de escolher entre salvar um senhor de 58 anos com um problema cardíaco grave – e que, provavelmente, viveria mais um ou dois anos – ou um idoso de 80 anos saudável, que provavelmente vai viver mais dez. Quer dizer, você não pode dar aos médicos o papel de Deus.
Mas como se preparar e fazer estoque de tudo, à espera de uma pandemia que talvez nem viesse?
Temos de dar ao SUS aquilo que não demos durante esse período que ele prestou excelentes serviços. Até porque, normalmente, essas pandemias estão associadas ao sistema respiratório. Basta conversar com os médicos: eles têm uma noção clara do que deveríamos ter feito. Ao invés de investir em máscaras, respiradores etc., para nos protegermos de uma pandemia – e o passado ensina que ela sempre vem –, preferimos gastar o dinheiro em uma estrada, por exemplo. O papel do Estado também é aprender.

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