quinta-feira, 30 de abril de 2020

Escravos de três números Fernando Reinach*, O Estado de S.Paulo


30 de abril de 2020 | 05h00

Menos de uma semana depois de relaxar as medidas de distanciamento social, a Alemanha teve de recuar e aumentar o isolamento. Esse fato demonstra como nos próximos meses nossa vida será determinada por três números muito importantes. A Alemanha conhece os três e os usa para definir suas políticas de controle da epidemia. Aqui no Brasil só conhecemos um deles. Enquanto não formos capazes de medir os outros dois, nossa vida continuará ao sabor do palpite.
Quando registrou a primeira morte, em 9 de março, a Alemanha adotou medidas de distanciamento social. As mortes atingiram seu pico em 17 de abril e foram reduzidas para um terço do pico. Ao mesmo tempo implementou programas de testagem capazes de medir diariamente a velocidade de propagação do vírus e o número de pessoas já infectadas. Duas semanas atrás, quando esses indicadores apontaram uma diminuição da velocidade de propagação e hospitais sem sobrecarga, a Alemanha resolveu relaxar o distanciamento social. Bastou uma semana para que os indicadores apontassem um aumento na propagação. Antes que esse aumento provocasse uma maior ocupação dos hospitais, a Alemanha anunciou ontem que seria necessário apertar novamente o distanciamento social. A Alemanha é a primeira sociedade ocidental que se tornou escrava voluntária de indicadores numéricos para tomar decisões. Esse rigor é bem-vindo, ele salva vidas. Mas qual são esses indicadores?
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O primeiro é o índice de ocupação dos hospitais. Esse indicador é o mais fácil de aferir e o único de que dispomos no Brasil. Ele é influenciado pelo número de pacientes que precisam de internação, pelo número de altas e óbitos e pela expansão do sistema hospitalar. O importante é entender que as características desse vírus tornam impossível manter baixa a taxa de ocupação simplesmente aumentando o número de leitos, construindo hospitais de campanha, comprando ventiladores, e contratando médicos. O vírus se espalha tão rápido que, caso sua propagação não seja contida, construir mais hospitais é o equivalente a enxugar gelo. Com aproximadamente 20% dos casos mais sérios necessitando internação e aproximadamente 5% necessitando de respiradores, nunca será possível construir os hospitais suficientes. É necessário adotar o isolamento social.
O segundo dos três indicadores é o número de pessoas infectadas a cada dia. Medindo precisamente esse número é possível estimar o valor de R, que simplificadamente é o número de pessoas que são infectadas por cada pessoa com a doença. Se R é maior que 1 a epidemia aumenta, se R é menor que 1 ela diminui e se R é igual a 1 fica estável. Na subida da curva de novos casos, R é maior que 1. O distanciamento social que diminui R para um valor próximo a 1 (quanto mais isolamento, menos pessoas cada infectado consegue infectar). Quando R fica abaixo de 1, o número de novos casos por dia diminui. O problema é que um aumento no valor de R só é refletido no número de internações e mortes após 15 dias e por esse motivo é preciso medir R diretamente quando as pessoas são infectadas. Só assim é possível agir antes do aumento de casos inundar os hospitais duas semanas depois. 
Para medir R, é preciso testar todas as pessoas com sintomas leves, mesmo que elas não sejam internadas, pois essas pessoas também transmitem a doença. E para isso é preciso um programa organizado de testes onde todos os casos positivos sejam registrados pelo governo em tempo real. O Brasil está longe de ser capaz de estimar R diretamente. Sem isso é impossível prever o que vai acontecer nos hospitais daqui a 15 dias.
O terceiro indicador é a fração da população que já foi infectada pelo vírus desde o início da epidemia, a chamada imunidade do rebanho (IR). Esse é o número de pessoas já com anticorpos contra o vírus, que dificilmente serão infectadas novamente no curto prazo. À medida que esse número aumenta, mais difícil fica para o vírus se espalhar na população, pois vai encontrar pela frente um número crescente de pessoas já resistentes. E quanto mais pessoas forem resistentes, mais rapidamente pode ser relaxado o distanciamento.
Vejamos um exemplo: no início da pandemia, quando IR é menor que 10%, a abertura de lojas pode levar a um aumento grande no número R e, portanto, deve ser evitada. Essa mesma medida de relaxamento vai ter um efeito muito menor no aumento de R quando uma maior parte das pessoas já tiver sido infectada (por exemplo quando IR for igual a 50%). Esse terceiro número (IR) é o que o estudo piloto que começa a ser feito em São Paulo vai tentar medir. Outro estudo, organizado em Pelotas, está determinando IR para o Rio Grande do Sul e pretende expandir essa medida para o Brasil. Se esses estudos funcionarem a contento poderão ser repetidos frequentemente e o País passará a saber o valor desse indicador.
Quando conhecermos esses três números será possível controlar a epidemia, garantindo que os hospitais não ficarão superlotados, o que por sua vez deve diminuir muito o número de óbitos e deve permitir a abertura gradual da economia. É por isso que no próximo ano, até que surja uma vacina, seremos escravos voluntários desses três números, que ditarão a maneira como vamos viver. O mais importante é entender que cada um de nós pode influenciar no valor desses três números, respeitando as medidas de distanciamento social e colaborando nesses estudos.
* É BIÓLOGO

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