terça-feira, 21 de abril de 2020

Mundo ameaçado por coronavírus não se parece com filmes apocalípticos de Hollywood, diz Zizek, FSP

Slavoj Zizek
[RESUMO] Filósofo esloveno contrapõe a pandemia de coronavírus a roteiros cinematográficos que marcam nosso imaginário, argumentando que desenrolar da crise atual não terá um desfecho catastrófico rápido. Mundo desmorona sem fim à vista, e é preciso contornar lógicas de mercado para reagir à pandemia, afirma.
Nestes tempos, é comum ouvirmos que estamos passando por coisas que só víamos nas distopias de Hollywood. Então, cabe a pergunta: a que tipo de filme estamos assistindo agora?
Quando fiquei sabendo, por meio de muitos amigos americanos, que os estoques de lojas de armas no país se esgotaram mais rapidamente que os de farmácias, tentei imaginar o raciocínio desses compradores: eles provavelmente se imaginaram em uma situação de isolamento, na segurança de suas casas bem-abastecidas, se defendendo com armas de uma turba infectada e faminta, como nos filmes sobre ataques de zumbis.
(Podemos também imaginar uma versão menos caótica desse cenário: as elites vão sobreviver em suas áreas afastadas, como no filme "2012" (2009), de Roland Emmerich, em que um grupo seleto de alguns milhares se salva —pelo preço de entrada de US$ 1 bilhão por pessoa.)

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Outro cenário mais ou menos nessa mesma linha catastrófica me veio à mente quando li a seguinte notícia: “Estados em que a pena de morte é legalizada são instados a liberar estoques de drogas para pacientes de Covid-19. Especialistas em saúde assinam carta afirmando que medicamentos utilizados em injeções letais podem salvar a vida de milhões de pessoas”.
Entendi imediatamente que a ideia era amenizar a dor dos pacientes, e não matá-los, mas por uma fração de segundo me lembrei do filme distópico “No Mundo de 2020” (1973), dirigido por Richard Fleischer, que se passa em um planeta pós-apocalíptico sobrepovoado, onde os cidadãos mais velhos, enojados diante da vida em um mundo tão degradado, têm a opção de “retornar ao lar de Deus”: em uma clínica governamental, se sentam confortavelmente para assistir à projeção de cenas de natureza intocada enquanto são postos para dormir de maneira gradual e indolor.
Essa opção encenada no filme não seria uma forma “humanizada” de concretizar a proposta de alguns conservadores americanos, que defenderam que a vida daqueles com mais de 70 anos de idade deveria ser sacrificada para manter a economia funcionando e salvar o "american way of life"?
Ainda não estamos nesse ponto. Quando o coronavírus começou a se disseminar, a ideia predominante era que seria um breve pesadelo, que passaria assim que o tempo voltasse a esquentar com a chegada da primavera —o filme reprisado naquele momento era o de um ataque curto (um terremoto, um tornado etc.) que desempenha a função de nos fazer revalorizar a nossa sociedade.
(Uma subespécie dessa versão é a história de cientistas que salvam a humanidade no último minuto ao inventar a cura ou a vacina certas contra um contágio —a esperança secreta da maioria de nós hoje.)
Agora que somos obrigados a admitir que a epidemia permanecerá conosco ao menos por algum tempo, alterando profundamente toda a nossa vida, outro cenário cinematográfico começa a pipocar em nosso imaginário: uma utopia disfarçada de distopia.
Lembremos do filme “O Mensageiro”, o megafiasco pós-apocalíptico de 1997 dirigido e estrelado por Kevin Costner, ambientado em 2013, 15 anos depois de um acontecimento apocalíptico não especificado deixar um enorme impacto na civilização humana e destruir a maior parte das nossas tecnologias.


O filósofo Slavoj Zizek em 2012 - Ulf Andersen/Aurimages/AFP
O enredo acompanha a história de um andarilho nômade que encontra o uniforme de um antigo carteiro do Serviço Postal dos Estados Unidos e começa a distribuir o correio entre aldeias esparsas, fingindo agir em nome dos “Estados Unidos Restaurados da América”. Em determinado momento, outros começam a imitá-lo e, aos poucos, por meio desse jogo, a rede institucional básica dos Estados Unidos ressurge.
A utopia que emerge depois do grau-zero da destruição apocalíptica é o mesmo país que temos hoje, só que purificado de seus excessos pós-modernos —uma sociedade modesta em que os valores básicos da nossa vida são plenamente reafirmados.
Nenhum desses cenários, no entanto, dá conta do aspecto realmente estranho da atual pandemia de coronavírus: seu caráter não apocalíptico. Não se trata de um apocalipse no sentido corriqueiro de destruição total do nosso mundo, menos ainda de um apocalipse no sentido original da revelação de alguma verdade até então oculta.
Sim, nosso mundo está desmoronando, mas esse processo de desmoronamento só se arrasta, sem fim à vista. Quando os números de infectados e mortos aumentam, nossa mídia especula sobre quão longe estamos do pico —já chegamos lá, será daqui a uma ou duas semanas?
Todos nós aguardamos ansiosamente o pico da pandemia, como se esse momento fosse seguido de um retorno gradual à normalidade, mas a crise só se arrasta. Talvez nós devêssemos reunir a coragem para aceitar que vamos permanecer em um mundo viral ameaçado por epidemias e perturbações ambientais. Afinal, é bem possível que, mesmo que uma vacina contra o vírus for descoberta, vamos continuar vivendo sob a ameaça de outra pandemia ou catástrofe ecológica.
Estamos agora despertando do sonho de que a epidemia vá evaporar no calor do verão. Não há nenhum plano claro de saída a longo prazo —o único debate é sobre como gradualmente afrouxar as medidas de isolamento. Quando, finalmente, a pandemia recuar, estaremos exaustos demais para desfrutar da situação. Que cenário isso implica? O trecho seguinte foi publicado no início de abril em um grande jornal diário britânico, desenhando uma possível história:
“Reformas radicais —invertendo a direção predominante das políticas adotadas nas últimas quatro décadas— terão de ser postas na mesa. Governos terão de aceitar um papel mais ativo na economia. Eles devem enxergar serviços públicos como investimentos em vez de encargos e procurar formas de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição mais uma vez estará em pauta; os privilégios dos mais velhos e ricos em questão. Políticas até recentemente consideradas excêntricas, como a renda básica e a taxação de fortunas, terão de entrar no pacote.”
Seria esta uma versão atualizada do manifesto do Partido Trabalhista britânico? Não, é um trecho de um editorial do Financial Times. Mais ou menos nessa mesma linha, Bill Gates pede uma “abordagem global” para combater a doença e alerta que, se deixarmos o vírus se disseminar sem obstáculos em países em desenvolvimento, haverá rebotes que atingirão as nações mais ricas em ondas subsequentes:
“Mesmo que as nações ricas consigam retardar a disseminação da doença ao longo dos próximos meses, a Covid-19 pode retornar se a pandemia continuar grave o bastante em outros lugares. É muito provável que seja apenas uma questão de tempo até que uma parte do planeta volte a infectar outra. [...] Acredito muito no capitalismo, mas alguns mercados simplesmente não funcionam adequadamente em uma pandemia, e o mercado de suprimentos médicos é um exemplo claro.”
Por mais bem-vindas que sejam, essas previsões e propostas são excessivamente modestas: será preciso muito mais. Em um certo nível básico, devemos simplesmente contornar a lógica da lucratividade e começar a pensar em termos da capacidade de uma sociedade mobilizar seus recursos para continuar funcionando.
Temos recursos suficientes. A tarefa é alocá-los diretamente, fora da lógica do mercado. Assistência médica, ecologia global, produção e distribuição de alimentos, fornecimento de água e eletricidade, serviços de internet e de telefonia —isso deve permanecer, todas as outras coisas são secundárias.
Isso implica também o dever e o direito de um Estado mobilizar indivíduos. A França (mas não apenas ela) tem um problema agora: é época da colheita de frutas e legumes da primavera, e geralmente milhares de trabalhadores sazonais se deslocam da Espanha e de outros países para fazer esse trabalho.
Como agora as fronteiras estão fechadas, quem vai fazer isso? O país já está procurando voluntários para substituir trabalhadores estrangeiros, mas e se não houver o suficiente? Há necessidade de alimentos —e se a única forma for a mobilização direta?
Alenka Zupancic resumiu a questão de maneira simples e clara: se é verdade que reagir à pandemia de maneira plenamente solidária pode causar danos maiores que a própria pandemia, isso não é uma indicação de que há algo terrivelmente errado com uma sociedade e uma economia incapazes de sustentar tal solidariedade? Por que deveria haver uma escolha entre solidariedade e economia?
Nossa resposta a esse dilema não deveria ser a mesma que esta: “Café ou chá? Sim, por favor!”? Não importa o nome que daremos à nova ordem de que precisamos, comunismo ou “co-imunismo”, como faz Peter Sloterdijk (aludindo a uma forma coletivamente organizada de imunidade contra ataques virais), o objetivo é o mesmo.
Essa realidade não seguirá nenhum dos roteiros cinematográficos do nosso imaginário. Precisamos urgentemente de novos roteiros, novas histórias que forneçam uma espécie de mapeamento cognitivo, uma noção realista e ao mesmo tempo não catastrófica de onde deveríamos estar indo. Precisamos de um horizonte de esperança. Precisamos de uma nova Hollywood pós-pandêmica.

Slavoj Zizek, filósofo e psicanalista esloveno, é autor, entre outros livros, de "A Visão em Paralaxe", "Menos que Nada: Hegel e a Sombra do Materialismo Dialético" e “Pandemia: Covid-19 e a Reinvenção do Comunismo”, lançado neste mês pela Boitempo.
Tradução de Artur Renzo.

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