domingo, 19 de abril de 2020

‘O CORONAVÍRUS ESTÁ NOS ENSINANDO QUE, PARA SATISFAZER AS NECESSIDADES RADICAIS, NÃO PRECISAMOS TER DINHEIRO, MAS SENTIDO DE HUMANIDADE’, oesp

Maria Fernanda Rodrigues

Famoso por seus estudos dentro do campo da sociologia do trabalho, o italiano Domenico De Masi, autor de O Ócio Criativo, está confinado em casa. E vem se dedicando a ler, estudar e refletir sobre o momento. Para ele, o coronavírus desnuda o desequilíbrio do planeta, mostra que podemos viver bem apesar de consumir menos e indica que devemos privilegiar o essencial. A cultura, para ele, é o que pode ajudar as pessoas em um período como o atual.
“Cada um pode aproveitar do ócio para crescer culturalmente: lendo, ouvindo música, escolhendo programas inteligentes na TV, dialogando pelo telefone ou pelo Skype com pessoas mais inteligentes e mais cultas”, disse o sociólogo de 82 anos. Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail ao Estado:
 Em seu livro mais recente no Brasil, Uma Simples Revolução (Sextante), o senhor apontava novos rumos para uma sociedade perdida. Quando as coisas pareciam não poder piorar mais, elas pioraram. Para onde ir agora? O que fazer?
A partir dos anos 1980, quando, com Ronald Reagan e a Margaret Thatcher, o neoliberalismo se tornou o pensamento único do Ocidente, houve uma dissociação entre os sociólogos e os economistas. Os economistas defendiam o mercado, baseados no entrechoque dos egoísmos, e difundiram a ideia de que o crescimento do Produto Interno Bruto pode ser infinito. Os sociólogos, por sua vez, afirmavam que o equilíbrio do planeta é extremamente instável e que nós o estamos colocando em risco. Há muitos anos, Kenneth Building, um dos pais da teoria geral dos sistemas, escreveu: “Os que acreditam possível o crescimento infinito em um mundo finito ou são loucos ou são economistas”. E o sociólogo Serge Latouche prosseguiu afirmando: “O drama é que já somos todos mais ou menos economistas. Para onde vamos? Iremos colidir diretamente contra um muro. Estamos a bordo de um bólido que não tem piloto, nem marcha à ré nem freios, que irá se espatifar contra os limites do planeta”. O que já aconteceu no mundo todo com o coronavírus demonstra que os sociólogos estavam certos e que o neoliberalismo poderá nos levar à destruição do planeta.
 Qual é o papel da introspecção e do ócio neste momento? Como podemos nos beneficiar disso? E como transformar o ócio depressivo em ócio criativo?
Nós nos acostumamos a ter muito espaço à nossa disposição e pouco tempo para usufruir dele. Os nossos dias estavam repletos de mil compromissos, muitos dos quais inúteis e sem sentido. Agora, ao contrário, fechados em casa para nos defender do coronavírus, temos muito tempo, mas somos obrigados a permanecer em um espaço mínimo, exatamente como os presidiários. A única coisa que pode nos ajudar é a cultura: literária, musical, científica, religiosa, artística. Já em 1930, o grande economista Maynard Keynes imaginava que, no ano 2000, graças à tecnologia, chegaríamos a trabalhar apenas 15 horas por semana e teríamos muito tempo livre. De que maneira ocupá-lo, como evitar o tédio, a droga, a violência? A depressão? Keynes propunha: “Pela primeira vez desde a sua criação, o homem se encontrará diante do seu verdadeiro e constante problema: como empregar o tempo livre que a ciência e os juros compostos lhe proporcionaram para viver bem, de maneira agradável e com sabedoria?”. E ele respondia que a única salvação está na cultura porque a cultura exige tempo e aplicação, mas não precisa de espaço. Esta é a única maneira pela qual podemos transformar o ócio depressivo em ócio criativo.  Evidentemente, quando falo em cultura não entendo sempre e somente cultura acadêmica. Entendo, para cada um de nós, um grau de cultura mais elevado do que o que possuímos. Cada um pode aproveitar do ócio para crescer culturalmente: lendo, ouvindo música, escolhendo programas inteligentes na TV, dialogando pelo telefone ou pelo Skype com pessoas mais inteligentes e mais cultas.
 Em O Ócio Criativo, o senhor fala de um modelo no qual indivíduos e sociedades são educados para privilegiar a satisfação de necessidades radicais, como a introspecção, o convívio, a amizade, o amor e as atividades lúdicas. É mais ou menos o que estamos vivendo – não fosse o fator da urgência de nos protegermos de um inimigo invisível?
O coronavírus está nos ensinando a dispensar o supérfluo, a reconhecer e a privilegiar o essencial. Está nos ensinando que o consumismo é um vírus pior ainda, que nos faz perder o sentido do necessário para nos impor o supérfluo. Está nos ensinando que as necessidades radicais de introspecção, amizade, amor, jogo, beleza e criatividade são muito mais importantes do que as necessidades alienadas de poder e dinheiro. Está nos ensinando que, para satisfazer as necessidades radicais, não precisamos ter dinheiro, mas sentido de humanidade.
 É possível que no fim desta pandemia estejamos ainda mais ociosos (especialmente pela falta de emprego). Como usar, então, o ócio e a criatividade a nosso favor, mesmo diante do desânimo e da depressão? É a criatividade que pode nos salvar e nos indicar caminhos? Criatividade é algo que se aprende?
Os gênios são raros porque possuem uma grande imaginação e uma grande consistência. Entretanto, cada um de nós, sem ser um gênio, tem um bom grau de criatividade em algum setor específico: teórico ou prático. Precisamos descobrir em que setor somos mais criativos e cultivar este setor específico. Esta pandemia nos demonstrou que podemos viver bem apesar de consumirmos menos e refletirmos mais.
 O que esta crise histórica nos ensina? Sairemos dela como entramos? E como evitar um dano irreparável?
Há muitos anos, Dominique Belpomme, especialista mundial em saúde ambiental, escreveu: “Há cinco cenários possíveis para o desaparecimento da humanidade: o suicídio violento do planeta, por exemplo uma guerra atômica; o surgimento de doenças graves, como uma pandemia infecciosa ou uma esterilidade que determine um declínio demográfico irreversível; o esgotamento dos recursos naturais; a destruição da biodiversidade; e, por fim, modificações extremas no nosso ambiente, como o desaparecimento do ozônio estratosférico e o agravamento do efeito estufa”. Hoje, com o novo coronavírus, nós estamos experimentando uma pandemia infecciosa, mas, ao mesmo tempo, não paramos de destruir a biodiversidade, de esgotar os recursos naturais, de causar o desaparecimento do ozônio e agravar o efeito estufa. Tudo isto porque perseguimos um modelo de vida baseado no frenesi do excesso que o neoliberalismo legitima. A revista Nature publicou um artigo que demonstra a relação direta existente entre poluição do planeta e pandemia. As zonas mais poluídas (como, na Itália, a região da Lombardia), são as que atraem muito mais o vírus, transmitindo-o mais rapidamente e tornando-o mais invulnerável. Portanto, o vírus está nos ensinando a não poluir. Mas será que estamos aprendendo? TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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