Um mês de isolamento. Pouco penso e nada crio.
Choro a partida de Rubem, ao som de “Acabou Chorare” de Moraes. Assisto ao noticiário monotemático, atualizo o número de mortos e infectados, acompanho a curva da pandemia e, temerosa, aguardo o pico e o porvir.
Apesar da mente oca, avanço na “Ilíada”.
Incitada pelo desejo volúvel dos deuses e travada em nome da honra e da posteridade, a guerra entre gregos e troianos é descrita por Homero com impressionante sadismo poético. São parágrafos e parágrafos dedicados a lanças que perfuram olhos e rompem vísceras, a cabeças decepadas pelo fio da espada e membros estilhaçados a pedra e paus.
Uma carnificina épica que, milênios depois, encontraria o seu espelho pop nas sagas cinematográficas dos super-heróis da Marvel.
No tempo em que ir ao cinema não representava risco de vida, Aquiles Hulks e Heitores Starks reinavam nos cineplex. Mas quem nos servirá de modelo para lidar com o vilão microscópico, o vírus coroado que trancou a humanidade acovardada em casa? Buda, Cristo, Confúcio, Mao, Dr. House ou Jerônimo, o eremita?
O valor do indivíduo era matéria cara para os gregos que pariram o Ocidente. Nós, herdeiros frágeis, criados à mamadeira de vacina e chupeta de antibiótico, crescemos inebriados pelo poder da própria vontade. Não mais.
Até a América, a do Norte, meca do “self-made man”, da meritocracia, da competição e da liberdade, o Eldorado que se tornaria “great again” pelo toque de Midas de Donald Trump, foi obrigada a empilhar caixões em covas rasas. E descobriu, estupefata, a sua dependência da China comunal, descomunal, fornecedora de quase todos os insumos médicos do planeta.
Quando a crise financeira de 2008 estourou, houve o pânico de que os americanos parassem de consumir. Autoridades vinham a público clamar para que a população não deixasse de ir às compras. A máquina da economia só funciona em movimento.
Não havia grandeza naquela crise. A doença e a cura dependiam da compulsão consumista, da ganância financeira dos triplos As, das mil marcas de jeans, tênis, bolsas e inúteis penduricalhos. Um mundo de excessos.
Pacotes turísticos prometiam aventuras comparáveis às de Odisseu; Wall Street acenava com fortunas dignas dos butins de Agamenon; planos de saúde privada prometiam a vida eterna dos olímpicos e a teleculinária, banquetes finos de ambrosia.
Agora, José, a Terra parou.
Lá se foi a tão louvada liberdade individual. Sobre o direito básico de ir e vir recai o peso da coletividade, da proteção aos vulneráveis e do colapso da saúde pública. Até Zeus Trump se curvou perante o invisível. A “land of the brave” adotou medidas restritivas que, até há pouco, só seriam concebíveis em regimes totalitários.
Do uso de máscaras ao isolamento, os orientais parecem mais preparados para enfrentar o tranco.
Há quem enxergue uma conspiração comunista por detrás da pandemia e considere covardia, fraqueza e histeria a paralisia global. Saudoso da cultura Marvel, Messias incita os brasileiros a enfrentar o micróbio como homens, e não moleques.
Nem Trump serve mais de exemplo para o nosso Capitão América. Iludido pelo canto da sereia da rápida imunização dos fortes, Jair se dispõe a atravessar o rio Estige, guiando, como Caronte, a nação em direção ao vale dos mortos.
No capítulo 14 da “Ilíada”, Odisseu se revolta contra Agamenon. Receoso de que o possuído Heitor ateie fogo às naus, o comandante propõe uma retirada estratégica. O discurso de reprimenda do comparsa astuto bem caberia na boca de Jair ao demitir Mandetta.
“Que proferes do encerro de teus dentes? Malsinado! O céu, de uma tropa de frouxos, te desse o comando, e não o de homens como nós, por Zeus fadados da juventude à idade profecta a enfrentar duros prélios, até a morte.”
Como guerreiros encurralados na praia por um bacilo infecto, oscilamos entre o destemor econômico e a precaução sanitária. O medo, e não a coragem, deveria nos servir de guia, caso contrário, periga colhermos tanto a falência, quanto a mortandade.
Finda a guerra, por quanto tempo vagaremos náufragos? Quem dará cabo de Agamenon? Imigraremos, tal qual Enéas? Sucumbiremos, como Troia? Ou, modestos e melancólicos, pediremos, à moda de Manuel Bandeira, que alguém toque um tango argentino?
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