(Rodrigo Peñaloza)
Os tiranos têm amigos? Certamente possuem pessoas com as quais mantêm mútua afinidade de interesses e pensamentos, mas não amigos. Étienne de la Boétie, em seu Le Discours de la Servitude Volontaire, diz que “a amicícia é um nome sacro, é uma coisa santa, ela não se entrega jamais senão entre as gentes de bem, e não se a cativa senão pela mútua estima” (L’amitié c’est um nom sacré, c’est une chose sainte; elle ne se met jamais qu’entre gens de bien, et ne se prend que par une mutuelle estime). É impossível não ver nessas palavras de Boétie qual tenha sido a fonte donde hauriu tão elevado pensamento: Cícero. Em De Amicitia (“Sobre a Amizade”), XI-37, diz-nos Cícero: “como a promotora da amizade foi a reputação da virtude, difícil é manter a amizade se da virtude te tenhas afastado” (cum conciliatrix amicitiae virtutis opinio fuerit, difficile est amicitiam manere, si a virtute defeceris). Não pode haver, portanto, Amizade sem a manutenção da virtude. O político que mente ao povo e que dos cofres da Nação rouba os tesouros não é do tirano seu amigo, mas assecla.
Étienne de la Boétie (1530–1563) foi um humanista francês, contemporâneo de Michel de Montaigne. Ainda novo, escreveu o seu famoso Discurso da Servidão Voluntária, um opúsculo libertário que permanece utilíssimo, mesmo em nossos tempos. Os historiadores gostam de dizer que uma das razões para o Discurso tenha sido um imposto sobre o sal, que causou a revolta do povo contra o exército e os fiscais do rei. Mas não creio que tenha sido a razão fundamental. Quando disse que essa não foi a motivação fundamental, quiz dizer que pode ter sido o estopim, mas sua motivação certamente veio de sua própria forma de pensar e de sua formação humanista. Alguém que traduziu Xenofonte e Plutarco e ainda defendeu a liberdade, a coragem e a dignidade humana nas cativantes linhas que perfazem o Discurso da Servidão Voluntária dificilmente terá sido alguém cujo espírito não fosse enobrecido. Não houvesse recaído sobre o povo mais um imposto, ele o teria escrito mesmo assim.
O Discurso começa com uma citação de Homero, recordando Ulisses, que disse: “Não é bom ter vários senhores; tenhamos um só”. O tipo de tirano a que se refere Étienne de la Boétie é o tirano detentor de poderes absolutos. Convém lembrar que a palavra tirano na Grécia Antiga não tinha o significado negativo de hoje. Segue ele, dizendo que é preciso desculpar Ulisses, pois isso foi dito em uma circunstância específica: apaziguar a revolta do exército. Ulisses adaptou o discurso mais à circunstância que à verdade. Logo, a tirania não está de acordo com a Verdade. A Verdade é a Liberdade.
A pergunta principal que ele se faz é: como é possível que os povos se submetam ao tirano, que tem o poder que tem apenas porque esse poder lhe é conferido? Essa servidão é um vício pior que a covardia: é inominável. Quem conhece a liberdade, luta com mais coragem para defendê-la do que aquele que luta para conquistar o inimigo. É porque conhece a Luz.
Étienne de la Boétie manifesta em seguida sua indignação: é o povo que se sujeita; é o povo, que, podendo ser livre, aceita o jugo; o tirano se anula por si mesmo, basta não servi-lo; parece que os homens desdenham a liberdade simplesmente porque seria fácil obtê-la, bastando não querer servir; a Natureza, primeiro agente de Deus, verteu-nos todos na mesma fôrma: somo irmãos; a uns deu partes maiores, a outros menores, para fazer nascer em todos a afeição fraternal, para colocar o Homem na condição de ajudar os irmãos, tendo uns o poder de dar socorro, outros a necessidade de recebê-lo.
Como enraizou-se a servidão? Ele apresenta duas razões para a servidão voluntária: o hábito e o medo. Falando do hábito, argumenta que quem não viu a Luz, não sabe a felicidade que dela auferiria. Quanto à segunda razão, diz que quem vive sob o medo vive infeliz. Isso vale tanto para quem serve quanto para o tirano.
Qual é o fundamento de toda a tirania? Não são as armas que defendem o tirano, mas 5 ou 6 que o apóiam e subjugam toda uma nação. Esses 6 têm 600 que debaixo deles domam e corrompem; esses 600 têm 6.000. Assim, o tirano subjuga os súditos uns através dos outros. É a corrupção, a troca de favores, a esperança de receber favores como migalhas.
Étienne de la Boétie termina: “Aprendamos a fazer o bem. Nada é mais contrário a Deus, soberanamente justo e bom, do que a tirania”.
A ignorância preserva o hábito da servidão: ignorância cultural, cívica, moral e espiritual. Para o cidadão, fazer o bem é exigir de seus representantes políticos a virtude, sem a qual não se poderá dizer que o político é amigo do povo e do país. Não! A quadrilha que nos tem roubado não conhece a Amizade, porque não há virtude nos que se sujeitam ao tirano.
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