Nossas decisões são inapelavelmente determinadas pela ética ou pela falta dela
Hoje eu vou dar uma de filósofo chato e preciosista. Tornou-se um lugar-comum afirmar que Bolsonaro age contra a ciência e que suas atitudes diante da pandemia de Covid -19 são absurdas. Concordo que são absurdas, mas receio que não seja tão simples carimbá-las como anticientíficas.
Não me entendam mal, sou fã da ciência. É a ela que devemos quase todos os desenvolvimentos que tornaram a existência humana menos miserável nos últimos séculos. Mas, se quisermos usar os conceitos com algum rigor, a ciência nunca nos diz como devemos atuar.
Quem chamou a atenção para o problema foi David Hume (1711-1776). Para o filósofo, existe uma diferença lógica fundamental entre proposições descritivas, que são as que a ciência nos dá, e proposições prescritivas ou normativas, que são as que se traduzem em decisões de como agir. Nós nunca podemos extrair as segundas diretamente das primeiras. Esse passo necessariamente envolve valores, que não são do domínio da ciência, mas da ética.
Isso significa que a ciência só vai até certo ponto. Ela nos esclarece sobre o comportamento de vírus novos em populações suscetíveis, alerta para a força avassaladora da curva exponencial e vai nos municiando com os parâmetros epidemiológicos do Sars-Cov-2, sobre os quais ainda paira muita incerteza. O que fazemos com essas informações, porém, já não é da alçada da ciência.
Muitas vezes, os cenários traçados pelos especialistas são tão desequilibrados que não deixam margem a dúvida. A escolha sobre o que fazer se torna simples aplicação do bom senso. É o caso da adoção do isolamento social nesta primeira fase da epidemia. Em outras tantas, porém, sobrepõem-se camadas adicionais de complexidade, que precisamos sopesar à luz de valores.
O ponto central é que nossas decisões devem ser informadas pela ciência, mas são inapelavelmente determinadas pela ética —ou pela falta dela.
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