sexta-feira, 6 de março de 2020

Surdez por opção, Ruy Castro FSP

Qualquer coisa contra Bolsonaro entra por um ouvido de seus apoiadores e sai pelo outro

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Sempre que Jair Bolsonaro encara formalmente uma câmera para o que considera um importante pronunciamento, tem a seu lado um intérprete de Libras. Que, como se sabe, é a Língua Brasileira de Sinais, dirigida aos, com todo respeito, surdos. O Brasil tem 10 milhões de surdos, e, não fosse pelo intérprete, eles seriam os únicos patrícios a gozar do privilégio de não escutar as mentiras e grosserias com que Bolsonaro brinda os ouvintes. Mas nem os surdos são poupados. As afrontas à nação são traduzidas para seus olhos.
Os surdos de verdade não têm nada com isso, claro. Os apoiadores de Bolsonaro é que parecem sofrer de deficiência auditiva. As denúncias de que seu governo está destruindo o meio ambiente, as relações internacionais, os direitos humanos, a educação e a cultura entram-lhes por um ouvido e saem pelo outro, sem um estágio interno que lhes permita registrar e refletir.
Ao fingir não escutar sobre certas atitudes de Bolsonaro —como as mamatas que ele dispensa a igrejas evangélicas, a tal ou qual rede de televisão e até ao Exército em troca de apoio político—, é como se esses apoiadores só tivessem orelhas, não ouvidos.
Mas a ideia de um intérprete ao lado de Bolsonaro não é má. Deveria ser até ampliada. Como não conhece limites e fala o que quer, agredindo minorias, leis e instituições, Bolsonaro é com frequência obrigado a desdizer-se. O que ele faz com flamejante cinismo, usando a velha alegação de que suas palavras foram "tiradas do contexto". Como suas palavras vivem sendo tiradas do contexto, Bolsonaro deveria ter a seu lado um profissional encarregado de atrelá-las ao contexto, para impedir que elas saíssem por aí, flanando por contextos inimigos.
Por enquanto, é a surdez. Mas, se o cerco apertar ao seu redor —como, digamos, a respeito de seus filhos—, Bolsonaro terá de exigir de seus apoiadores a lobotomia.

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