sexta-feira, 6 de março de 2020

O chipeiro e a jornalista, Dorrit Harazin, O Globo

Foi em abril de 2018 que o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, estreou no Congresso dos Estados Unidos como convocado de uma comissão do Senado sobre o uso abusivo de dados de consumidores. A empresa havia admitido ter usado sem autorização informações pessoais de 87 milhões de usuários no chamado escândalo da Cambridge Analytica, e o foco dos 44 senadores estava na ameaça de interferência digital criminosa nas eleições presidenciais americanas. “Zuck” esmerou-se em eludir perguntas incisivas, deslizou por respostas que lhe convinham, e ostentou uma estudada paciência diante do enciclopédico desconhecimento digital de alguns inquiridores.
Ainda assim, a armadura impassível do criador de 33 anos saiu avariada. Mas o poder inescapável de sua criatura, o Facebook, ficou intocado: até os senadores mais combativos na sabatina orientaram seus seguidores a acompanhar a sessão através do... streaming Facebook Live.
Na terça-feira passada, em Brasília, ocorreu a 19ª sessão da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instalada meio ano atrás para apurar a disseminação de notícias falsas na eleição presidencial brasileira de 2018. A testemunha única da sessão chamava-se Hans River do Rio Nascimento e tinha tudo a ver com o tema da “CPMI das fake news”: o depoente havia sido funcionário da Yacows, uma das empresas suspeitas de recorrer ao uso fraudulento de nome e CPF de idosos para registrar chips de celular, e disparar lotes de mensagens em benefício de políticos. O “Sr. Hans”, como passou a ser designado, havia se desentendido com o seu empregador em final de 2018, movera-lhe uma ação trabalhista, e à época fornecera valiosas informações e documentos à repórter investigativa Patrícia Campos Mello, da “Folha de S. Paulo”. Segundo a reportagem exclusiva publicada em dezembro daquele ano, a empresa Yacows prestara serviços a vários políticos e fora subcontratada por uma produtora (AM4) que trabalhou para a campanha do presidente eleito, Jair Bolsonaro.
Já por isso, e pelo fato de a testemunha ter sido convocada pelo deputado do PT Rui Falcão, era lícito supor que o depoimento do Sr. Hans resultasse em informações comprometedoras para o governo.
Nada saiu conforme o roteiro — nem para a oposição nem para o depoente, nem para a vida democrática, nem para a jornalista. Assistir à íntegra das cinco horas de transmissão pela TV Senado é de grande serventia, pois revela bem mais do que os momentos chulos e as ilações de vulgaridade abjeta contra a jornalista. A íntegra revela sobretudo a testemunha que, ao contrário de Mark Zuckerberg, adquiriu protagonismo por acaso e não sabe como sair dele sem deixar anéis e dedos.
Da aberrante narrativa criada por Hans River, de ser um ingênuo em meio a uma jornalista que lhe oferece favores sexuais em troca de matéria, consta, sim, uma verdade: o depoente foi e é ingênuo. Ingênuo ao subestimar as ferramentas com as quais a premiada Patrícia Campos Mello trabalha: apuração rigorosa, provas, comprovantes, documentos, checagem e, rechecagem. Ingênuo ao acreditar que conseguiria driblar perguntas com uma postura desenvolta, malemolente, distraída e desmemoriada. Ingênuo ao tentar engabelar a sessão com uma vídeo-aula sobre chipeiras —o equipamento que utiliza chips de celular com dados usurpados, usados em plataformas de disparos em massa no WhatsApp.
Hans River do Rio Nascimento se declara músico, sem recursos para pagar ao advogado a seu lado, é diabético, hipertenso e negro. Trabalhou como chipeiro na Yacows em condições medievais e ritmo alucinado, contando com rendimento suplementar pelas horas extras. Ao ver que não receberia o devido, entrou na Justiça. E ao dar entrada na Justiça, seu processo cruzou com o implacável faro investigativo da jornalista da “Folha”. Ela o contatou, ele concordou em falar, ela anotou, gravou e, antes de publicar, foi ouvir “o outro lado”— a Yacows. A partir daí, tudo mudou. Hans fez acordo com a empresa, quis retirar o que dissera e reaver o material entregue. Tarde demais.
Passado um ano e meio desde a publicação da reportagem coassinada por Artur Rodrigues, Hans River reapareceu com memória seletiva: não lembra o número do seu celular nem tem ideia do primeiro nome de Eduardo Bolsonaro, sentado à sua frente. Mentiu e omitiu tanto que a relatora da CPMI , deputada Lídice da Mata (PSB-BA), solicitou à Procuradoria-Geral da República que investigue o depoente. Fora alertado meia dúzia de vezes durante a sessão de que mentir em CPI é crime.
Repetir de público afirmação falsa de depoente não é punível por lei. “Eu não duvido que a senhora Patrícia Campos Mello, jornalista da ‘Folha’, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o Sr. Hans, em troca de informações”, reiterou o filho do presidente da República no Senado, no plenário da Câmara e via Twitter — o que, por sua vez, abriu a comporta de seus seguidores nas mídias sociais mais ferozes.
Como observou Natalie Southwick, coordenadora do Comitê de Proteção a Jornalistas com sede em Nova York, não deixa de ser irônico que uma audiência parlamentar sobre fake news tenha servido de combustível a uma campanha de fake news contra uma jornalista. Tempos brabos.

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