Transcrição livre por Patrícia Kalil de palestra realizada pelo cientista Antonio Nobre –
A crise que nós estamos vivendo tem raízes muito fortes em uma crise de valores. Nos últimos 35 anos, vi incontáveis seminários com ideias excelentes mas com resultados pífios. Continuou uma sangria desatada, pois as iniciativas não conquistaram o coração da coletividade. Essa falha histórica está destruindo o berço esplêndido do nosso país. Quem sente realmente amor pelo Brasil, quem realmente sabe o que significa a riqueza e o benefício que nós temos por ter nascido nesse pedaço do planeta que é tão extraordinário precisa parar, refletir e falar: “pera aí”. Por um viés positivo, o que está acontecendo agora está trazendo à tona todas as toxinas do nosso modelo de desenvolvimento, que estão se apresentando para que nós resolvamos. Quando você tem a circulação de elementos não muito bons no seu sangue, eventualmente nasce um furúnculo. É feio, cheira mal, dói. Mas é uma depuração. Quem somos nós? Quem somos nós, os cientistas? Quem somos nós, as ONGS? Quem somos nós, os produtores? Essa é a oportunidade que temos agora.
Quero falar da casa maior, o que está acontecendo na Terra. Nós vivemos aqui e só aqui e sempre aqui. Não tem outro lugar para viver. Nem para cima, nem para baixo. Temos essa casquinha que é absolutamente frágil na qual nós surgimos, evoluímos e vivemos.
O planeta Terra é um lugar muito especial. A vida está na superfície do planeta nos últimos 4-3 bilhões de anos, o homo sapiens apareceu aqui 300-200 mil anos atrás. No entanto, ainda hoje nós não temos a consciência do que significa estar no lar cósmico. É importante trazer isso para consciência.
A gente fala que a Terra é o planeta água. Nós temos água líquida na superfície por 4 bilhões de anos, o que é desconhecido em outros planetas. E nós nem pensamos sobre isso, que temos oceanos, rios… Só que se você for estudar os outros planetas, você vai ver que a presença de água líquida é desconhecida. Por que aqui é possível? Esse equilíbrio instável que permite ter água líquida acontece por causa de um fenômeno que só tem na Terra: vida. O verde atrai a água, o verde controla o carbono, o verde regula o clima. O verde produz o oxigênio. Somos o único planeta que tem oxigênio livre. Nos últimos quatro bilhões de anos quem produz o oxigênio é o verde. Primeiro, as algas nos oceanos e de 500 milhões de anos para cá as plantas também. Se você olhar as folhas das plantas no microscópio, você vai encontrar uma estrutura cloroplastos, que é uma alga, as mesmas algas lá do oceano que se associaram com outras células e formaram as plantas. Então nas folhas temos uma miniatura do oceano suspensa que interage com a atmosfera e produz oxigênio. Esse oxigênio permitiu o surgimento dos continentes, o nosso surgimento e de todos animais que dependem dele para viver.
As águas doces de superfície são apenas 0,2% da água do planeta. Tudo que nós fazemos depende desses 0,2%. A gente tem o maior rio da Terra passando aqui na frente, outro ao lado, enorme, que é um tributário, e a gente tem essa sensação que a água doce é infinita na Amazônia, mas não é.
A Amazônia é sim um pulmão porque troca gases. A floresta e as plantas fazem o inverso do nosso pulmão: nós respiramos oxigênio e soltamos gás carbônico, as plantas respiram gás carbônico e soltam oxigênio. Dados da fotossíntese do mundo de 2000 a 2010 mostram que a Amazônia tem uma importância global em relação a todos os outros ecossistemas do planeta. Quando falamos que nossa soberania está ameaçada, ela não está ameaçada porque tem gente querendo vir aqui roubar a Amazônia, ela está ameaçada por causa de uma minoria que decidiu destruir o coração do mundo.
Quando observamos os dados dos últimos 100 mil anos da série climática, percebemos que a Terra teve períodos de glaciações até 11-10 mil anos atrás. Foi ali que começou o Holoceno, quando o homem passou a desenvolver a agricultura com a estabilidade do clima. Antes desse período, éramos basicamente coletores e caçadores. De 10 mil anos para cá, surgiram as grandes civilizações. Nos últimos 200 anos, a ciência está falando de uma nova era geológica chamada Antropoceno (antropo=humano, a era dos humanos). Os humanos se tornaram uma força comparável à geologia e vamos deixar registros. Nesse período de dois séculos, tudo está subindo em escala exponencial. A população explodiu para 7 bilhões e meio de pessoas. O planeta não dá mais conta. Junto, temos uma explosão exponencial na degradação ambiental, climática e de todos os outros indicadores. A gente precisa mudar de atitude radicalmente. Foram 10 mil anos de estabilidade climática e nós estamos destruindo isso nas últimas décadas, de forma acelerada. No clímax do nosso desenvolvimento, estamos acabando com a nossa casa. Acho que o Al Gore disse que a nossa geração é a primeira que está sofrendo o aquecimento global e a última que pode fazer alguma coisa sobre isso.
O corpo de cada um de nós está fazendo homeostase nesse momento. Se ficar frio, cada corpo vai disparar reações, começar a tremer para gerar calor e manter a temperatura em 37º graus. Se ficar quente, vai suar para resfriar. Com isso regulamos nossa temperatura. O planeta Terra tem o mesmo mecanismo. Se a gente pegar os dados de clima da temperatura da Terra em milhões de anos, vamos ver que existe esse mesmo controle de temperatura presente nos organismos. Acontece que o planeta está perdendo a capacidade de fazer a regulação climática. Eventos extremos, secas e enchentes são cada vez mais frequentes.
A agricultura depende umbilicalmente de um clima amigável. Vou dar um exemplo da importância da floresta para o agronegócio. Em estudo recém concluído que ainda vai ser divulgado, fizemos a análise de dois municípios produtores de grãos no Mato Grosso, uma potência do agronegócio. Os municípios em questão foram Querência e Lucas do Rio Verde. Os dois estão quase na mesma latitude, 400 km de distância uma para outra, quase a mesma distância da Amazônia e estão na região de transição do Cerrado. Nos dados de 2011, vimos que Querência tem 7 meses de seca e Lucas do Rio Verde 5 meses de seca, o que possibilita a Lucas duas safras por ano. Por quê? A diferença entre uma localidade e outra é que o vale úmido de Lucas do Rio Verde tem a influência dos 150 km de floresta preservada da Reserva Indígena do Xingu, que umedecem as massas de ar e fazem os rios voadores chegarem em Lucas. A floresta em pé ali perto, em 2011, equivalia a uma diferença de 80 milhões de reais em 2011, ou seja, 400 mil toneladas da segunda safra de Lucas.
O que nós estamos fazendo? Estamos matando a galinha dos ovos de ouro. A destruição da floresta vai secar o Brasil e vai quebrar a agricultura brasileira. Se tiverem dúvida, vai no Google Earth ver o que aconteceu na Arábia Saudita. Lá, 11 mil anos atrás tinha floresta. A pecuária destruiu a floresta lá, assim como no Saara. Estamos fabricando um deserto dentro da América do Sul. Não temos dúvida, as imagens de satélite mundiais mostram isso.
Nos últimos 40 anos, cientistas estão falando sobre as mudanças climáticas e tem sido criminosamente ignorados. Isso por causa de mentiras pagas de trabalhos de mercenários. A mesma coisa está sendo feita em relação à agricultura. É tempo do agronegócio se despertar, porque mercenários vendem conveniências agradáveis de se escutar, mas que são conveniências mentirosas. Agora é momento de pensar também no seu negócio. A destruição de floresta é suicídio. Nós vamos perder a galinha de ovos de ouro.
Todas as melhores pesquisas da Embrapa, das universidades, até mesmo de instituições privadas mostram que ninguém precisa derrubar mais nenhuma árvore para aumentar a produção agrícola. É possível intensificar, fazer diferente.
Não é a indústria da multa que é inimiga do agronegócio, é o desmatamento. De 1988 (quando tivemos um dos maiores desmatamento da série histórica) até 2004, quando o Código Florestal não era aplicado devidamente, tínhamos o desmatamento acoplado ao PIB, ou seja, aumentava a atividade econômica, aumentava o desmatamento. Em 2004, tivemos um desmatamento recorde e isso motivou a articulação envolvendo diversos Ministérios, INPE (ciência), Ministério Público e a polícia para controlar o desmatamento. Agora preste atenção: de 2004 a 2012 o PIB brasileiro explodiu e o desmatamento despencou. Aplicaram a lei ambiental e mesmo assim o PIB cresceu, a imagem do Brasil foi lá para cima e isso foi uma grande vitória do setor agrícola porque conseguiu melhorar sua imagem aumentando sua produção.
Em 2012, houve uma pressão de um grupo minoritário que tem desproporcional pressão no congresso para mudar o Código Florestal. Foi uma mudança feita por questões ideológicas muito lamentáveis. Deram anistia para quem sabia que estava cometendo crimes ambientais. O resultado vem nesses anos todos. De lá para cá, o desmatamento vem crescendo e as multas do IBAMA diminuindo. Não é só no governo Bolsonaro, foram em vários outros governos, esquerda ou direita não importa. Existe uma outra agenda. Agora note: de 2012 a 2019, o PIB brasileiro despencou e o desmatamento explodiu, antes essas coisas cresciam ou caíam juntas. Isso mostra que já está desacoplado e que o principal vetor para controlar o desmatamento é a aplicação da lei. De 2012 para cá, paramos de aplicar a lei. Este ano chegamos ao apocalipse. Temos um julgamento que já está em curso e é fora dos tribunais. E qual é esse julgamento? O desmatamento acumulado está encontrando no clima um juiz que sabe contar árvores e não esquece nem perdoa.
Vamos sair desse ciclo vicioso?
Diferente do que escutamos, a natureza funciona em colaboração absoluta. Começando no nosso próprio corpo, existe uma sistema de segurança que não tolera egoísmo. Quando uma célula do nosso corpo resolve ser egoísta e quer crescer sozinha temos um câncer. O que o sistema imune de uma pessoa saudável faz? Ataca. Os linfócitos vão lá e atacam a célula egoísta, a célula cancerígena que quer se multiplicar de forma doentia e dominar o ambiente. Se não fosse o contra-ataque do nosso sistema imune, todo mundo teria câncer pois nosso corpo está o tempo todo produzindo células cancerígenas. Isso é verdade também para os ecossistemas. A maior parte do setor agrícola brasileiro percebe a importância de trabalhar no sentido das leis da natureza, da cooperação, da colaboração. Mas tem um pequeno setor que é um tumor, que está contrariando as leis da natureza, mudando as leis que estabelecemos com amplo debate na sociedade, que está impondo uma realidade, que está estimulando o crime e que está destruindo o conjunto todo. Vamos corrigir isso ou morrer de câncer? No contraponto, a colaboração é sinergia e sucesso. A colaboração amplia as capacidades. A cabeça de um grileiro de terra, por exemplo, pensa em pegar a floresta do outro e do outro. Câncer que funciona assim. O equilíbrio e a evolução são complexos. O que é dominante no sistema é a colaboração e a complexidade, a rede de segurança só é acionada em momentos extremos. A seleção natural é uma rede de segurança. Quando não funciona com a colaboração, quando perde o equilíbrio, aí tem uma rede de segurança.
PERTENCER me faz sensível à comunidade onde eu moro, à região toda. Pertencer é a mãe, antes de tudo vem a mãe. Pertencer envolve, hospeda, nutre, concebe e dá a luz. Se eu tenho negócios ou propriedades longe de onde eu moro, eu não desenvolvo uma relação de pertencimento àquela região. O SER é ligado ao pertencer, o SER pertence, permeia, inventa, colabora, agradece e retribui. Na cultura de povos tradicionais, de ribeirinhos, quilombolas e indígenas, o PERTENCER e o SER estão, como na natureza, intimamente ligados. Na cultura ocidental, o SER sofreu uma ruptura do PERTENCER e então a pessoa sonha “ser maior que as outras e dane-se o resto”. Pertencer-ser sempre são seguidos de EVOLUIR. É uma lei da natureza. Quando a planta pertence e é, ela pode crescer. Tudo está em movimento. A natureza evolui em comunidade. Precisamos evoluir como coletividade. Agora é o momento de COMPREENDER, refletir sobre o que é pertencer, o que é ser, o que é evoluir. Podemos dialogar para cuidar melhor daquilo que a gente compreende. A gente só preserva aquilo que a gente compreende.
O povo INCA já tinha princípios muito parecidos com esse. Na floresta Amazônica viviam mais de 10 milhões pessoas antes do homem branco chegar. Mais de 10 milhões e não devastaram a floresta. Faziam agricultura, estradas, barragens. Agora, estamos querendo crescer pelo caminho errado. Se o ovo for quebrado por uma força externa, a vida acaba. Quando o ovo é forçado por uma força interna, é a vida que começa. Por isso é tão importante explicar as coisas. As grandes coisas sempre surgem de dentro, aceitar o próximo e colaborar.
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