Eu não sabia que a dor de perder um filho tinha variações de intensidade
Londres ferve. Culpa do Brexit. Circulo pela cidade e, entre os meios letrados, há um ódio ao premiê Boris Johnson que não permite qualquer discussão racional. O homem é um ditador e, mais ainda, quer tirar o Reino Unido da União Europeia.
Sorrio. Depois pergunto duas coisas, “sotto voce”. Primeira: se ele é um ditador, por que motivo a esquerda recusa as eleições que ele propôs? Segunda: sair da União Europeia não foi aquilo que os ingleses escolheram no referendo de 2016?
Perguntas óbvias, ao nível de um débil mental, mas que são temerárias no ambiente em que vivemos. A culpa, como dizia um sociólogo americano hoje esquecido (Alvin Gouldner), está no “complexo de Platão”: a ideia antiga, antiquíssima, de que as massas são deploráveis —e de que a cidade deve ser governada por uma qualquer casta de sábios.
Que o “complexo de Platão”, agora mais forte do que nunca, seja o contrário do ideal democrático, eis um pormenor que não passa de um pormenor para os sábios.
De fato, não há nada de novo debaixo do sol. Leio os jornais. Um editorial do The Guardian analisa o livro de memórias do ex-premiê britânico David Cameron.
E o editorialista, fazendo uma referência à morte do filho de Cameron (um menino de seis anos, que sofria de paralisia cerebral), afirma: Cameron conheceu a dor, sim, mas foi uma “dor privilegiada”.
Eis o raciocínio: perder um filho é duro. Mas, no caso de Cameron, o seu dinheiro, o seu privilégio, a sua influência permitiu-lhe ter acesso aos melhores tratamentos e a um luto mais confortável.
Curioso. Eu não sabia que a dor de perder um filho tinha variações de intensidade consoante a renda. O Guardian esclareceu-me: quando somos pobres, dói mais. Quando temos dinheiro, a dor é coisa passageira.
Aliás, para que o editorial fosse completamente bolchevique (e não envergonhadamente bolchevique), só faltava esclarecer que os ricos não têm sentimentos e que Cameron, depois do funeral, fez uma festa lá em casa.
O século 20 foi pródigo nessas tácticas: para justificar a guerra de classe, era preciso mostrar o inimigo como um ser sub-humano. Será que o século 21, e o clima de histeria política em que ele está mergulhado vai ressuscitar velhos fantasmas?
Depois da aberração, o The Guardian pediu desculpas. Até quando?
Vou ao Garrick Theatre para ver a mais recente peça de David Mamet, “Bitter Wheat”. Pergunta: qual o tema mais radioativo que um dramaturgo poderia escolher? Resposta: os crimes sexuais de Harvey Weinstein.
David Mamet, que nunca temeu a polémica, ocupa-se do assunto. Pior: ocupa-se do assunto em tom de comédia, entregando o papel de Weinstein (na peça, o nome do personagem é outro, lógico) a John Malkovich. Resultado?
Não, “Bitter Wheat” não é uma apologia do assédio. Pelo contrário: Malkovich, gordo e literalmente repulsivo, dá uma boa ideia de como seria Weinstein com as beldades do cinema. Uma mistura de gangsterismo com autocomiseração patética, que só um ator como Malkovich seria capaz de recriar para nosso genuíno horror.
A peça, que já terá deixado Londres quando o leitor ler estas linhas, não terá estreia em Nova York. É pena. Como diziam os antigos, é rindo que se corrigem os costumes.
Joe Biden, candidato à indicação democrata para as presidenciais de 2020, é velho. E os jornais não se cansam de relembrar o fato em tom jocoso ou condenatório.
Engraçado. Se Biden fosse negro ou gay, será que os mesmos jornais fariam referência a isso no mesmo tom com que falam da sua idade?
Claro que não. Neste tempo de “wokeness” (palavra nova, que significa estar alerta para as injustiças da sociedade) todos os grupos têm direito a uma defesa apaixonada. Todos, exceto os velhos.
E, no entanto, parece que o “ageism” (outra palavra nova; significa atos ou expressões discriminatórios contra os mais velhos) cresce como nunca. Não apenas no caso de Biden; aqui, no Reino Unido.
Um estudo recente da Sun Life, intitulado The Ageist Britain e divulgado pela imprensa, informa que 34% dos britânicos já discriminaram “pessoas de uma certa idade”.
As “pessoas de uma certa idade” confirmam: 68% dos inquiridos com mais de 50 anos já sentiram essa discriminação. No trabalho, nos transportes, até nas compras do dia a dia.
Parafraseando George Orwell, todas as vítimas são iguais mas algumas são mais iguais do que outras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário