segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Solavanco democrático e os riscos da crise ambiental, Moises Naim , OESP

Moisés Naím, O Estado de S.Paulo
23 de setembro de 2019 | 05h44

O que Espanha, Itália, Israel e Reino Unido têm em comum? A incapacidade de formar governos estáveis e capazes de governar. E esses são quatro países que, apesar de tudo, têm regimes nos quais ainda se respeita a divisão de poderes e se limita o poder do Executivo. Como sabemos, o que não faltam são países nos quais a disfuncionalidade política é muito mais grave. 
No mundo todo, governar está ficando mais difícil. Em alguns casos, impossível. Vemos que as eleições não funcionam mais como a âncora que estabiliza a política e possibilita aos governos... que governem. Mais do que isso: eleições e referendos agora revelam a profunda polarização do eleitorado, paralisam o jogo político e tornam impossível a tomada de decisões.
Assim, os resultados eleitorais formalizam e quantificam a profunda fissura da sociedade e, em alguns casos, contribuem para dificultar a convivência civilizada entre as facções. A resposta que se dá a esses problemas é convocar novas eleições.
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Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido Foto: Christopher Furlong / AFP
Mas governar não está dificultando apenas a vida das democracias. Tampouco parece normal que Xi Jinping e Vladimir Putin, dois dos homens mais poderosos do mundo, estejam preocupados com manifestações de rua protagonizadas principalmente por jovens desarmados.

Controle férreo na China e na Rússia

Xi e Putin exercem um controle férreo sobre seus países, e os que protestam nas ruas de Hong Kong e Moscou não são uma ameaça para a sobrevivência de seus regimes. O que surpreende é Xi e Putin não terem acabado antes com os protestos.
Talvez a relativa tolerância que esses autocratas vêm mostrando com as manifestações seja um sintoma de quão seguros eles se sentem e da irrelevância dos protestos. Ou talvez não saibam como combatê-los.
Os protestos não têm líderes óbvios e hierarquias claras. A organização, coordenação e participação neles depende das redes sociais. Em Hong Kong, líderes do governo pró-Pequim se queixam de que, ainda que queiram fazer acordos com os manifestantes, não sabem com quem negociar.
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O presidente da Rússia, Vladimir Putin Foto: EFE/EPA/ALEXEY NIKOLSKY / SPUTNIK / KREMLIN POOL
Obviamente, Xi e Putin poderiam acabar com os protestos usando os instrumentos normais das ditaduras: sangue e fogo. Mas o uso da força sempre implica riscos e pode fazer com que, em vez de sufocar os protestos, venha a agravá-los, convertendo-os em ameaças políticas mais graves.
Isso aconteceu, por exemplo, na Síria, onde as manifestações na cidade de Deraa contra a detenção e tortura de 15 estudantes que grafitavam contra o governo ganharam força até se transformarem em uma guerra civil que já dura oito anos e cobrou mais de meio milhão de vidas.

O papel das empresas na crise ambiental

Mas, se o que está ocorrendo na política mundial não é normal, o que vem ocorrendo com o meio ambiente é ainda menos. Os fatos são conhecidos. Imagens de todas as partes do planeta mostrando as catástrofes produzidas por incêndios, chuvas torrenciais, secas prolongadas e furacões são cotidianas.
As evidências científicas são esmagadoras e a inação para fazer frente a essas ameaças é ainda mais. A paralisia ante enfrentar com eficácia as mudanças climáticas constitui sem dúvida o maior perigo que nossa civilização vive.
A inépcia dos governos em responder à emergência climática é exacerbada pela influência de interesses econômicos. A ExxonMobil e os irmãos Charles e David Koch são apenas dois exemplos de empresas e indivíduos ricos que, durante décadas, financiaram fartamente “centros de pesquisa” e “cientistas” dedicados a semear dúvidas sobre a gravidade do problema climático e impedir que governos adotem as políticas necessárias.
O fato de grandes empresas influírem sobre governos para evitar que tomem decisões contra seus ganhos não é novidade. De fato, é o normal.
O que não é normal é líderes de algumas das maiores empresas do mundo repudiarem publicamente a ideia de que seu objetivo primordial seja maximizar os lucros. Foi, no entanto, o que ocorreu há algumas semanas, quando os chefes de 181 das maiores empresas americanas assinaram um comunicado que sustenta exatamente esse repúdio.
Esses altos executivos afirmam que as empresas privadas devem conciliar os interesses de seus acionistas com os de clientes, empregados, fornecedores e comunidades nas quais operam.

Titãs do capitalismo estão atrasados

Obviamente, esses titãs do capitalismo estão chegando atrasados ao diálogo. Para muita gente, já é evidente que ficou insustentável para qualquer empresa ignorar os interesses e necessidades dos grupos dos quais dependem para satisfazer apenas aos acionistas.
O debate agora é sobre como fazer isso, e, principalmente, garantir que as empresas cumpram o que prometem. Alguns importantes líderes empresariais têm ideias a respeito. Brad Smith, presidente da Microsoft, por exemplo, publicou um artigo na revista The Atlantic intitulado “As empresas tecnológicas precisam de mais regulamentação”.
Isso não é normal. Sem dúvida, surpreende que o presidente da 16.ª maior empresa do mundo exorte os governos a regulamentarem suas indústrias. Mas essa, como as outras anomalias que acabamos de discutir, tiradas do noticiário recente, é apenas mais um exemplo de quanto é difícil decifrar o mundo no qual nos coube viver. / TRADUÇÃO

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