Que sejamos capazes de fazer amor em meio a ruínas
Ignorei os sintomas. Cansaço, sono picado, falta de ar. Fingi que não era nada, segui trabalhando e, várias horas por dia, esperneando nas mídias sociais. Até que uma febre alta me levou ao pronto-socorro para um raio-X dos seios da face e dos pulmões. Saí medicada por uma combinação de drogas que deveria me curar da sinusite e da bronquite diagnosticadas.
Só que o arsenal químico provocou taquicardia, pressão alta e derrame ocular —sobressaltos ausentes antes do coquetel. Até aí, nada de errado para a medicina moderna, já que pulmões e seios da face, depois de exames, se mostraram curados. Tudo certo também para a economia liberal: sanidade e paz de espírito não dão lucro.
De molho em casa, entendi que o ato de visitar as redes sociais fazia os sintomas se agravarem: pressão subia, ansiedade aumentava, melancolia invadia. Estava infectada de Brasil, intoxicada de “tudo isso aí” que se alimenta da pulsão de morte e de destruição. Era preciso me acalmar, voltar a sorrir e a sonhar. Mas como ficar alheia à nação que derrete e arde e à população de rua que cresce diariamente?
Assim como a medicina resolve o sintoma sem se interessar pela causa, estamos tentando eliminar sintomas sociais sem esmiuçar as causas da doença política. A diferença é que, no caso social e político, quando tudo parece desmoronar, as causas podem ser inventadas: a culpa é disso ou daquilo (e isso ou aquilo é sempre o grupo politicamente mais fraco).
Em situações de apocalipse social e econômico, quem encontra a narrativa ganha o direito de liderar. Hitler fez isso. A ditadura de 1964 fez isso. Trump faz isso. A história está repleta de homens que, agarrados a uma narrativa que dá esperança à população humilhada, endividada e esgotada, ganham o poder apontando o dedo para um grupo específico. “Oferte-me aquele que causou meu fracasso e apoio ações para eliminá-lo.” A culpa nunca é das relações de produção e de consumo que inventamos —um sistema cheio de perversões.
Não conte com a indústria do plástico para diminuir o uso do material —dado que ele gera lucros colossais. Mas quando não há mais como negar que o plástico é um problema para o planeta, a solução passa a ser personalizar a culpa, fazendo com que sintamos que a cada sacola plástica não adquirida e a cada canudo evitado caminhamos para a salvação.
Criamos uma sociedade de pessoas privadas de estímulo criativo levando vidas sem significado. Um sistema assim vai produzir surtos de solidão, angústia, sufocamento e ansiedade. E uma população enfraquecida, adoentada e desesperada não se importará em ser controlada, vigiada, dividida. Nesse cenário, obedecer vai ser sempre mais fácil do que entender. Solidariedade e colaboração nos fizeram evoluir; competição e destruição nos alienam de nós mesmos e do planeta.
Mas seguir retrucando e criando memes de cada absurdo que sai da boca das autoridades não está levando a gente a lugar algum —a não ser para hospitais e divãs. Como então sair dessa lama?
Conversando com um poeta que chamo de irmão, obtive a resposta: festa. Precisamos de melodia, de poesia, de encontros por conspirações positivas. É o que o ultradireitismo não tolera. Que apesar das rajadas de metralhadoras sigamos escutando a música. Que apesar das epidemias de ansiedade e de melancolia sigamos celebrando. Que mesmo sufocados em desespero sigamos cantando. Que sejamos capazes de fazer amor, de trepar e de beijar em meio a ruínas.
Hora de organizar a raiva, agasalhar a tristeza e festejar a coragem daqueles que todos os dias saem de suas casas para estudar ou trabalhar com helicópteros militares disparando rajadas a esmo. Festejar a paciência dos professores que superam a falta de salário e continuam ensinando. Festejar os quilombos, as aldeias, as comunidades e a sensatez de quem escolheu o lado do silenciado, do excluído, do injustiçado. Hora de aumentar o som, abraçar quem está ao lado e deixar o amor transbordar. Resistir é dar as mãos; e a revolução é manter-se são.
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