sexta-feira, 7 de setembro de 2018

O ideal de Justiça e os julgamentos morais da soldado PM Juliane Santos e de Fernanda Camargo, Renato Sergio Lima, FSP

Renato Sérgio de Lima
Com Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Juliane dos Santos, 27 anos, foi morta no dia 2 de agosto de 2018. Juliane era Soldado da Polícia Militar e estava em um bar em Paraisópolis em seu horário de folga quando teve seu celular furtado. Identificou-se como agente da lei na esperança de que recuperasse o bem perdido. Foi brutalmente assassinada por ser policial.
Juliane era também conhecida como “garota sorriso”. Sempre alegre e bem-humorada, Juliane não era apenas uma jovem soldado, mas alguém que sempre sonhou em ser policial e atuar na defesa da lei. Seu corpo ficou desaparecido por cinco dias, o que impediu inclusive que a família pudesse se despedir de forma adequada. O caixão teve que ser lacrado.
Mas a tragédia para a família de Juliane não termina aí. Como se não bastasse seu assassinato, os julgamentos morais passaram a permear o noticiário sobre sua morte. Juliane era lésbica, negra e de família humilde, mas a imprensa achou por bem destacar que, antes de morrer, ela se divertia e namorava uma “ruiva” em um bar. Qualquer pessoa minimamente atenta ao tema da segurança sabe que Juliane se expôs ao identificar-se como Policial Militar em um território dominado pelo PCC, mas sua orientação sexual e a cerveja precisavam constar das análises de seu assassinato.
O julgamento moral que a família de Juliane teve que assistir atônita é vivido hoje por Fernanda Camargo, 40 anos, viúva do mecânico Eduardo Alvos dos Santos. Eduardo, 42 anos, faleceu em 16 de janeiro de 2017 após uma ocorrência de violência doméstica. Fernanda chamara a Polícia Militar porque o marido tornava-se agressivo quando bebia e ela queria tirar seus pertences de casa. Quando a guarnição da PM chegou à residência, Eduardo bateu boca com um dos soldados, e, nitidamente embriagado, caiu segurando-se na farda do policial, que acabou rasgando. O trâmite usual de uma ocorrência como essa era adotar procedimentos de uso progressivo da força, imobiliza-lo e leva-lo para a delegacia para ser autuado. Mas Eduardo foi agredido antes de ser colocado na viatura e, três horas depois, Eduardo morreu dentro da delegacia de Itapevi. O laudo do IML identifica como causa de sua morte uma hemorragia interna traumática, provocada por agente contundente.
Como se este caso não fosse suficientemente trágico, ontem, dia 05 de setembro, a absolvição do soldado responsável pelas agressões adiciona mais uma pitada sádica a este enredo. Em sua decisão, o juiz militar José Alvaro Machado Marques não reconhece o nexo entre os dois fatos e destaca diversas vezes que Eduardo tinha passagens pela polícia e histórico de comportamento violento, como se isso fosse justificativa para ser espancado pelos policiais. Prossegue à sua argumentação, em um processo no qual todas as testemunhas são policiais, afirmando que relatos indicam que Eduardo tinha apenas um “discreto” ferimento no olho e que deve ter morrido de cirrose hepática.
Mas a cereja do bolo de sua conclusão é o parágrafo em que fala sobre a viúva, Fernanda, e os motivos pelo qual continuava a acusar o policial. Sugere o juiz que a viúva pode ser motivada pelo “interesse em buscar indenizações…”. Afinal, o natural não seria esperar que a viúva quer justiça, e sim que ela quer lucrar com o assassinato do marido.
Para não dizer que o eminente juiz foi completamente injusto, ele também afirma em sua decisão que Fernanda pode estar influenciada por “um sentimento de culpa por seus desentendimentos com o marido…”. Bingo! Imagine só, senhor juiz, o que significa para uma mulher vítima de violência doméstica, com uma filha de 17 anos, ver o homem com quem estava casada há quase duas décadas ser espancado por um policial na garagem de casa após uma ligação dela; ver o marido morrer dentro de uma delegacia de polícia em seu colo e ainda ter que lidar com os julgamentos morais do Estado, especulando sobre os motivos de sua busca por justiça.
Quando valores coletivos consagrados nas cláusulas pétreas da nossa Constituição são reduzidos a concepções morais privadas, como podemos compreender que a Justiça adote como símbolo a imagem de Têmis, divindade grega que busca estar acima das paixões humanas para permitir que a verdade não seja apenas a lei do mais forte? Triste momento vivido pelo país…

Nenhum comentário: