"O mundo exterior era o império da baderna e da vagabundagem, e somente ali, em Tupinilândia, era possível construir uma sociedade correta, justa para com quem merece, de valores sólidos e imutáveis. Este era o sonho do general."
O trecho sintetiza a ideia delirante da distopia "Tupinilândia", de Samir Machado de Machado: construído nos anos 1980 em plena Amazônia, um gigantesco parque de diversões inspirado na Disney, mas com tempero nacional, é tomado por integralistas lunáticos que o transformam numa bolha fascista. A saudação "Anauê!" é um "Heil Hitler" à brasileira.
Submetida à lavagem cerebral, isolada em seus limites, a população do enclave desconhece completamente o que aconteceu no Brasil desde a morte de Tancredo. A narrativa se articula com a lógica e a técnica de uma história em quadrinhos, sob a sombra de videogames, humor juvenil, a clássica divisão entre bons e maus, simplicidade psicológica e, coerentemente, prosa declarativa.
Distopias sobre alternativas históricas têm o seu fascínio; são ficções conceituais e assim devem ser lidas. O exemplo mais célebre é "O Homem do Castelo Alto" (1962), de Philip K. Dick, imaginando os Estados Unidos depois da vitória do nazismo, um tema que, entre nós, foi recriado por Miguel Sanches Neto em "A Segunda Pátria" (2015): o romance narra o apoio de Vargas a Hitler, a vitória do eixo e o subsequente retorno da escravidão negra.
Philip Roth, em "Complô Contra a América" (2004), imaginou a vitória de Lindbergh contra Roosevelt em 1940; simpatizante do nazismo, o presidente eleito fará um pacto com Hitler, com consequências terríveis.
É um gênero romanesco que exige clareza sobre o conceito de civilização; o que nos atrai na Segunda Guerra é a percepção indiscutível da barbárie nazista: esquerda ou direita, todos sabiam de fato o que estava em jogo. Transplantadas ao Brasil, as projeções distópicas regressivas esbarram na nossa intransponível singularidade: a falta de nitidez.
Na permanente neblina ideológica brasileira, nossos comunistas são meio capitalistas, nossos capitalistas são meio socialistas, nosso racismo não é bem racismo, nossos corruptos são até pessoas boas, nossos doutores são iletrados, nossos iletrados são gênios, nossos brancos são meio negros e nossos negros são meio brancos, nossos bandidos são mocinhos, e os mocinhos, bandidos, nossa esquerda é claramente de direita, e a direita jura que é de esquerda, o mundo privado é estatizado e o Estado é privativo, nossos diminutivos e aumentativos são sempre afetuosos, e isso meio que desde sempre —até os integralistas eram só metade nazistas, nossos estalinistas foram legais, e, perto dos outros, os nossos ditadores foram quase meia boca.
Para ligar uma coisa com outra, a onipresente linguagem: nossas palavras (todo brasileiro sabe disso) não valem muito, e são como o câmbio flutuante. Não nos afirmam; apenas nos transportam.
Não faço essa caricatura simplesmente como sátira: para mim, a falta de nitidez é um traço da cabeça brasileira, e funciona como um amortecedor: resiliente de um lado, pragmático de outro.
Por isso, quando começaram a falar em Bolsonaro, imaginei (e ainda imagino) que ele jamais ganharia a eleição, e não só pela agressão de suas ideias. Mas porque a nitidez de seu estímulo à violência de Estado, reforçada simbolicamente pelo gestual truculento, pelo elogio de torturadores, pelo "fuzilamento" de adversários, e até por mimetizar revólveres na mão de crianças, supostamente "brincadeiras" de campanha, se chocaria com a ideologicamente intangível, ou dúctil, sensibilidade da cultura brasileira.
E justo no momento em que escrevo, momentos antes de fechar o texto para o caderno deste domingo, impresso com antecedência, levo o choque da notícia: ainda há pouco alguém esfaqueou Bolsonaro em Juiz de Fora. Felizmente, as primeiras informações dizem que não há gravidade; espero que sim, que Bolsonaro se recupere da barbárie deste ataque, que fere profundamente o país num de seus momentos históricos mais difíceis. E ele que retorne à campanha para o livre debate das ideias.
O meu tema era o fio da civilização e a sua representação ficcional; a minha torcida, com a esperança de que seja a de milhões de brasileiros, é que, a partir da estupidez do atentado, o país não regresse a alguma Tupinilândia real. O chamariz emocional da violência é o primeiro gatilho da barbárie. O país está fraturado demais para ultrapassar esta última linha.
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