sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Brasil compra 6 de cada 10 produtos que saem das maquiladoras paraguaias, FSP

 

Assunção e Luque (Paraguai)

No ano passado, 6 de cada 10 produtos que saíram das maquiladoras paraguaias, empresas com um regime especial de isenção de impostos, foram vendidos ao Brasil.

Os brasileiros também abriram 207 (71%) das 292 indústrias com programas de maquila em vigor até 2024, de acordo com o Ministério de Indústria e Comércio do país vizinho.

A Lei de Maquila do Paraguai permite que a empresa estrangeira instale centros de produção ou prestação de serviços no país com isenção de impostos e taxas de importação.

A imagem mostra uma instalação industrial com tanques de aço inoxidável. Os tanques estão dispostos em um ambiente bem iluminado, com tubulações visíveis conectando-os. No fundo, uma pessoa vestindo um traje de proteção amarelo está próxima a um dos tanques. O piso é de material escuro e há iluminação artificial ao longo do teto.
Unidade industrial da Blink Bioscience, em Hernandarias (Paraguai) - Rafael Bechlin/Divulgação

A isenção se aplica a bens de capital, matérias-primas, serviços, mão de obra e outros itens essenciais à produção. Há um imposto único de exportação de 1% sobre o valor dos produtos.

A ligação entre os dois país nesse regime é tão importante, que o desempenho da economia brasileira é observado de perto.

O banco central paraguaio calcula que cada 1% de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil se traduz em um incremento de 4,1% das exportações do regime de maquilas.

"Há um ano e meio, escolhemos o Paraguai, depois de muita pesquisa. Não é somente a questão fiscal, também estudamos a parte logística para ver se fazia sentido", conta Thomas Gonçalves Pinto, diretor financeiro da Blink Bioscience, ao terminar de discursar na Expo Paraguay-Brasil, evento para investidores que ocorreu perto da capital, Assunção.

A proximidade com grandes centros criadores de aves e de suínos no Brasil, como o oeste dos estados do Paraná e de São Paulo, pesou na decisão da empresa brasileira de tecnologia para nutrição animal de montar uma unidade em Hernandarias, ao lado de Ciudad del Este, com cerca de US$ 30 milhões (R$ 185 milhões) de investimento.

Apesar dos atrativos fiscais, entre as dificuldades apontadas pelo executivo estão a necessidade de qualificar a mão de obra, a demora na liberação da nova passagem que irá ajudar a desafogar o tráfego na ponte da Amizade (entre os dois países) e a maior dificuldade no acesso ao crédito no Paraguai.

Os setores tradicionais da maquila incluem, em primeiro lugar, autopeças, onde são produzidos os cabos elétricos para veículos, exportados para o Brasil para montagem nos automóveis.

Também são fabricados confecções e têxteis, com marcas brasileiras sendo produzidas no Paraguai, além de plásticos, alumínio e suas manufaturas. Nos últimos anos, houve uma diversificação dos setores, com a produção de bicicletas elétricas.

Segundo Natalia Cáceres, secretária-executiva do CNIME (Conselho Nacional de Indústrias Maquiladoras de Exportação), hoje, os produtos feitos sob o regime especial representam 68% das exportações de produtos manufaturados de origem industrial do Paraguai, mantendo um crescimento sustentado de 20% ao ano.

"A vantagem que temos é que as regras do Mercosul permitem que, se o produto tiver um certificado como 'feito no Paraguai' ou na região, ele possa entrar no bloco sem pagar tarifas aduaneiras, além dos benefícios da maquila", diz.

Segundo Cáceres, o país tem buscado aumentar o número de investidores brasileiros, apresentando o programa em feiras em São Paulo, Santa Catarina e Paraná, por exemplo.

"A ideia não é roubar as indústrias do Brasil, mas ajudá-las a crescer em competitividade e acompanhar uma parte de seu processo produtivo, para que possam ser mais competitivas, ter melhores custos para vender mais, ajudando assim ambos os países."

"Dizer que o regime de maquilas rouba empregos do Brasil não faz sentido. Sem a competitividade que o Paraguai nos dá, talvez não tivéssemos investido nesse segmento. Há uma competição por investimentos como em qualquer lugar, e o Paraguai está mirando algo em que o Brasil não foca", diz o diretor financeiro da Blink.

Até o fim de dezembro, eram cerca de 29.956 pessoas empregadas pelas maquiladoras e o dobro de empregos indiretos.

Em 2023, o presidente paraguaio, Santiago Peña, fez uma promessa de criar 100 mil novos empregos no setor em cinco anos —e também garantiu que não subiria impostos, em um sinal para atrair mais investidores.

A imagem mostra uma mulher em pé, vestindo um blazer branco sobre um vestido listrado em preto e branco. Ela está em frente a um fundo de madeira clara, com uma iluminação suave em tons de rosa. A mulher usa um crachá pendurado no pescoço e tem cabelo loiro liso. Sua expressão é neutra.
Tatiana Mursa, da Fujikura Automotive, maquila de Ciudad del Este - Douglas Gavras/Folhapress

"O Paraguai de agora não é o mesmo de três, quatro ou cinco anos atrás. Antes, se alguém entrasse no Google para procurar sobre o país teria a sensação de que era economicamente e logisticamente muito inseguro. Na parte econômica e política, é um país muito estável", diz Tatiana Mursa, de origem moldava e executiva de uma maquiladora.

Ela é presidente da Fujikura Automotive Paraguay, empresa japonesa que está em 254 países e emprega cerca de 1.300 pessoas no vizinho. A fabricante de autopeças e fornecedora de equipamentos para carros vende 90% do que produz na região de Ciudad del Este para o Brasil e para a Argentina.

"Quando vim para cá, há cerca de três anos, não havia um cinema ou um bom lugar onde se pudesse sentar para tomar um café na cidade onde estamos, só dois ou três restaurantes. Agora, há vários cinemas, cafés muito bons e restaurantes excelentes. As coisas estão mudando muito rapidamente, em cinco ou dez anos, o Paraguai vai ser outro país", projeta.

Marcia Castro - Os campos de concentração da seca no Ceará , FSP

 É muito pouco provável que alguém da sociedade brasileira jamais tenha ouvido falar das secas no Nordeste, visto imagens ou estudado o tema na escola. Entretanto, o fato de que houve campos de concentração da seca no Ceará ainda é desconhecido por muitos.

Em 1877, uma grande seca resultou na migração de milhares de pessoas para as cidades em busca de água e comida. A população de Fortaleza passou de 21 mil em 1872 para mais de 100 mil durante a seca e os migrantes eram vistos como um risco para a ordem da cidade.

A resposta do governo foi a criação de 13 abarracamentos em Fortaleza, locais que abrigavam e isolavam os migrantes, evitando o contato com o restante da cidade. Os migrantes recebiam comida e assistência, ambas precárias, e eram recrutados como mão de obra barata para obras no município.

A imagem mostra um cemitério ao ar livre, com três cruzes brancas em um terreno árido. Ao fundo, há uma pequena construção branca que parece ser uma capela ou um memorial. O céu está claro, com algumas nuvens brancas, e há uma árvore sem folhas à esquerda da imagem.
Cemitério das Almas da Barragem, onde os retirantes que morriam nos campos eram enterrados em valas comuns, em Senador Pompeu (CE) - Isadora Brant - 8.nov.2014/Folhapress

Cerca de 500 mil pessoas morreram na seca de 1877-79, o que representou 5% da população. Como comparação, a Covid-19 matou 0,34% da população.

A seca de 1915, retratada por Rachel de Queiroz, gerou nova onda de migrantes. Em vez de abarracamentos, o governo decidiu criar um único local na periferia da cidade, os campos de concentração (terminologia usada à época pelo governo).

O campo Alagadiço, próximo à estação de trem, foi planejado para acolher 3.000 pessoas, mas chegou a ter mais de 8.000.

A estratégia de isolamento ganha proporções cruéis com a chegada da seca de 1932. Foram criados sete campos de concentração: dois em Fortaleza, e os demais nos municípios de Crato, Ipu, Quixeramobim, Cariús e Senador Pompeu. Chamados de "currais do governo", foram estrategicamente localizados ao longo da linha férrea.

Os migrantes eram atraídos pela promessa de trabalho, alimentação, alojamento e atendimento médico. Entretanto, eram confinados em um local do qual não podiam sair, trabalhavam em troca de comida de péssima qualidade, havia falta de água, comida e remédio.

Recebiam um número ao chegar à estação de trem, eram vestidos com roupas feitas de sacos de cereais e tinham a cabeça raspada (teoricamente para evitar um surto de piolho). Morriam sem nome, sem registro, sem dignidade, sem memória.

Não se sabe ao certo quantos morreram nos campos de concentração de 1932, e as únicas ruínas que restam estão em Senador Pompeu. Em 2019, a área foi tombada como patrimônio histórico-cultural municipal.

Deveria ser patrimônio histórico nacional. E esse fato deveria ser tema obrigatório do currículo de história nas escolas.

Recentemente visitei as ruínas do campo de Patú, em Senador Pompeu. Lá aprendi que, após o fechamento do campo em 1933, muitos que lá estavam permaneceram na cidade em áreas onde hoje estão os bairros de Cruzeiro e Pavãozinho, os com maior vulnerabilidade no município.

Em Fortaleza, Pirambú, o maior aglomerado de favelas do Ceará e o sétimo maior do Brasil, originou-se no campo de concentração do Urubú em 1932.

As raízes de grande parte das desigualdades da sociedade estão no passado. O caso dos campos de concentração do Ceará é apenas um exemplo disso.

Esconder ou ignorar esse passado é cruel e perigoso. Cruel porque contribui para perpetuar décadas e até séculos de negligência e descriminação. Perigoso porque deixa a aberta a possibilidade para que seja repetido.


Como funciona o Sebo do Messias, com milhões de livros e operação de guerra, FSP

 

São Paulo

"Aqui tem que ser uma casa de todos os santos", costuma pregar o gerente do Sebo do Messias, Cleber Aquino, plantado bem às costas da Catedral da Sé.

"Tem cliente que vê a Bíblia ao lado de um livro sobre umbanda e vem reclamar comigo. Já vi gente comprar coisa só para rasgar na minha frente. Eu sempre digo não, minha senhora, aqui tem que ser de todo mundo."

Pudera. O maior sebo de São Paulo tem hoje um estoque estimado em 3 milhões de produtos, cerca de um sexto disso no acervo para compra imediata. Vende de gibi da Marvel a revista de mulher pelada, de álbuns já gastos a pequenos eletrodomésticos —vende sobretudo livros, num ritmo alucinante.

Saem cerca de mil produtos por dia do depósito do Messias para a casa dos clientes, a um tíquete médio de dez reais. Se não é um lucro exorbitante, é uma operação de guerrilha que precisa de engrenagens muito bem lubrificadas para ficar de pé.

Hoje toda concentrada no coração da capital paulista, a livraria mudou de mãos desde o ano passado —provavelmente o mais marcante de sua história de 55 anos, por dois motivos.

Em dezembro, a equipe perdeu seu fundador e oráculo, o mineiro Messias Antonio Coelho, e passou a ser liderada por suas filhas, Daniela e Lilian, ao lado de Aquino, que trabalha ali desde 2002, quando foi contratado para inaugurar o braço virtual do comércio, que hoje vende tanto quanto a loja física.

O vazio do patriarca, morto aos 83 anos, se preencheu por trabalho dobrado. Em setembro, numa movimentação ainda supervisionada por ele, o sebo adquiriu cerca de 2 milhões de exemplares da extinta rede Saraiva, que dominava o mercado antes de ter a falência decretada em 2023, numa amostra de seu poder de fogo.

É livro que não acaba mais. Parte deles está exposta num endereço já cativo dos paulistanos desde o começo do século, na praça João Mendes, com 1.100 metros quadrados que se equilibram em quatro andares —um labirinto de papel e luz branca com o qual leva tempo para se familiarizar.

Se essa ponta do iceberg já impressiona, entrar no estoque subterrâneo do Messias se parece com cair no túnel da Alice de Lewis Carroll. Naquela garagem de mais 2.000 metros quadrados em dois pisos, é feita a triagem de todas as obras que chegam ao sebo.

Ao descer as duas rampas pela qual entram caminhões atulhados de exemplares, dobrar à esquerda e dar poucos passos, o visitante já se depara com dezenas de milhares de livros empilhados em montanhas que Aquino jura terem uma organização que faz sentido.

A partir daí começa o trabalho de cerca de dez funcionários —a empresa tem 47— responsáveis pela catalogação, registro fotográfico e minuciosa conferência de tudo o que chega ali. Segundo o gerente, se você doa um livro para o Messias, em no máximo 15 dias ele já estará disponível para outros leitores.

A equipe inclui algumas pratas da casa, como Stênio Alencar, de 83 anos e 25 de contrato, que os colegas costumam brincar que organizava as estantes da Biblioteca de Alexandria —e é suspeito de botar fogo nela, numa piada que escuta sorrindo como se já a tivesse ouvido centenas de vezes.

Pouco antes da visita da Folha, numa manhã de quinta-feira, os funcionários tinham lidado com uma doação de mais de 70 mil livros que viajaram em três caminhões de Cataguases, em Minas Gerais, após a morte de uma colecionadora contumaz.

Toda a biblioteca da finada foi direto para o Messias, como é regra acontecer em casos desse porte. Assim, o sebo não se demora escolhendo a dedo o que quer levar nem deixa o vendedor encalhado só com livros de que ninguém quer saber.

O atacado, por mais que possa soar insensível com produtos como livros, acaba sendo um bom negócio para os dois lados —o sebo paga mais barato por livros de valor e o vendedor consegue se livrar rápido de tudo, sem se preocupar muito com logística.

Compras grandiosas assim às vezes assustam os funcionários. "O que eu sempre lembro a eles é que esses 70 mil livros se derretem em duas semanas", conta Aquino, querendo dizer que o filé mignon de grandes coleções costuma ser arrematado com velocidade estonteante por leitores atentos.

Muitos desses compradores, diz ele, são outras lojas buscando revender as obras. "Se o Messias fechar amanhã, olha, uns 30% das livrarias de São Paulo fecham junto", se vangloria o gerente.

É um modelo de negócios complicado de estruturar. "Eu não consigo calcular o meu volume de entrada", diz Aquino, com sotaque da cidadezinha de Liberdade, a 350 quilômetros de Belo Horizonte. "Se estou trabalhando com um número, alguém liga e fala, minha mãe morreu e deixou 5.000 livros. Aí já era."

Nas encomendas mais modestas, uma equipe especializada vai ao local garimpar o que há de mais precioso ali. Naquela quinta-feira, um livro didático assinado por Cecília Meireles, "Rute e Alberto Resolveram Ser Turistas", datado de 1938 e autografado pela autora, estava disposto atrás de um vidro e fichado com valor de R$ 7.000.

livro antigo autografado
Livro autografado por Cecília Meireles em exposição no Sebo do Messias - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Joias como essa são oferecidas no Messias com a mesma naturalidade que livros de preço mais barato que uma coxinha com catupiry. Não é de se espantar quando você entende a alma do negócio.

"Meu pai nunca teve apego a livros", diz Daniela Guimarães Coelho, uma das herdeiras do fundador. "Se ele se apegasse, se ficasse guardando edições raras, não ia conseguir vender nada. Ele não tinha tempo de ler, vivia totalmente para o trabalho e a família."

Messias teve uma carreira folclórica, vindo da cidade mineira de Guanhães, onde capinava a roça de sua gente desde criança. Aos 23 anos, se mudou para São Paulo, onde trabalhou como ajudante de garçom e passou a vender livros de porta em porta por sugestão do pai de sua hoje viúva, dona Julian.

O que era um jeito de "fazer um dinheirinho por fora", como ele contou em sua última entrevista à Folha, virou coisa séria quando um cliente morreu e a família ofereceu que Messias comprasse sua biblioteca de 5.000 livros. Da garagem modesta onde armazenou essa primeira coleção, ergueu a empresa que subiu ao topo do ramo no país.

Durante 30 anos, o livreiro não tirou férias. Chegava a pagar boletos de faculdade de clientes fiéis. Se seu prazer não estava na literatura, estava no trabalho —e em um caso como esse, quem dirá qual a diferença?

Sebo do Messias