domingo, 1 de setembro de 2024

Ruy Castro - Seu passado sumiu, FSP

 Um amigo, envolvido em determinada pesquisa e superestimando meus poderes extrassensoriais, me pergunta onde encontrar o áudio da entrevista do Chacrinha ao Pasquim nos anos 1970. Respondi que não tinha a menor ideia, mas que seria mais fácil achar o áudio da conversa telefônica entre Graham Bell e d. Pedro 2º, na Exposição do Centenário da Independência dos EUA, em Filadélfia, em 1876. Tivesse sido gravado, esse telefonema estaria no acervo do Instituto Smithsonian ou da Biblioteca do Congresso. Os americanos são esquisitos —não jogam nada fora.

As entrevistas do Pasquim, muitas entre as melhores da imprensa brasileira, eram gravadas em cassete e na maior informalidade: ao redor de uísques, com interrupções para ir ao banheiro e todo mundo falando ao mesmo tempo. Concluídas, as fitas eram transcritas na Redação por algum dos participantes e publicadas sem edição —a exceção foi a de Leila Diniz, em 1969, no nº 22, com a genial substituição dos palavrões de Leila por asteriscos. Depois disso, que fim levavam as fitas? Talvez fossem aproveitadas para outras entrevistas. Ou esquecidas num canto e deixadas para trás numa das muitas mudanças do Pasquim ou, quem sabe, jogadas fora, quem vai saber?

Se tivessem caído em mãos do multimuseólogo Luiz Ernesto Kawall, elas estariam preservadas, catalogadas e à mão até hoje. Kawall mantinha em São Paulo um Museu da Voz, a Vozoteca LEK, com 4.000 registros de vozes em todas as mídias —Rui Barbosa, Santos-Dumont, Rondon, Monteiro Lobato, Carmen Miranda, Getulio, Juscelino, Freud, Lênin, Hitler, Mussolini, Churchill, Gandhi, Kennedy. O incansável Kawall morreu no dia 13 último, aos 97 anos, mas, felizmente, seu acervo está a salvo —ele já o doara à USP.

No Brasil, Kawall era exceção. Quando se trata de preservar o patrimônio nacional, não hesitamos —desprezamos áudios, vídeos, filmes, fotos, desenhos, esculturas, monumentos, casas, ruas, cidades, tudo.

Olhe em volta e procure o seu passado. Xi, é mesmo, que fim levou?

Elon Musk quer ser o Alexandre de Moraes do mundo, Ronaldo Lemos, FSP

 Elon Musk não é um defensor da liberdade de expressão. Ao contrário. Ele é o símbolo do seu antônimo: a concentração das mídias sociais e da infraestrutura sobre a qual elas operam.

A promessa da internet era que qualquer pessoa com um computador pudesse se conectar à rede e operar seus próprios serviços: websites, mensagens, hospedagem etc. Tenho amigos que mantinham servidores no banheiro de casa, que se conectavam com o mundo todo.

homem branco de meia idade
Elon Musk, CEO da SpaceX e Tesla e dono do X. - David Swanson/REUTERS

Musk é o inimigo número 1 dessa ideia. Sua ambição é ser o Cidadão Kane da internet. Ele já é dono do principal provedor de internet por satélite, a Starlink. É dono do X (Twitter), uma das mais influentes mídias sociais. É dono da Tesla, cuja missão é criar carros autônomos ("robotáxis") para centralizar e dominar todo o mercado de transporte do planeta. E dono da Neuralink, que literalmente quer entrar na cabeça das pessoas para conectar cérebros.

Se Musk realmente quisesse defender a liberdade de expressão, estaria copiando a estrutura dos seus concorrentes, o BlueSky e o Mastodon. Esses concorrentes promovem o oposto da centralização: federações de servidores, protocolos de comunicação autônomos e infraestrutura distribuída. As redes do Mastodon e do BlueSky são desenhadas para dificultar o controle privado ou estatal das suas plataformas. Nem as próprias empresas têm controle sobre o que é postado nessas plataformas. Uma pessoa rodando um servidor no banheiro de casa poderia continuar postando nelas enquanto esse servidor estiver no ar, aconteça o que acontecer.

Musk não quer nada parecido com isso. Ele quer ser o dono da plataforma, quer ser seu gatekeeper, seu editor-geral e seu bloqueador-geral. Seu objetivo final é a centralização do poder nas suas próprias mãos —não a descentralização do poder, que é a premissa inerente à ideia de liberdade de expressão. Mutatis mutandis, ele quer ser o Alexandre de Moraes do planeta.

Exemplos disso estão em toda parte. Ele paralisou os serviços da Starlink na Guerra da Ucrânia por ordem própria sua. Removeu conteúdos que desagradavam ao governo da Índia, como barganha para obter vantagens no país. Removeu conteúdos a pedido do governo da Turquia, e assim por diante. Neutralidade não é o seu forte.

Se Musk quer tanto proteger a liberdade de expressão, por que então nunca cogitou mudar a arquitetura do X para um modelo descentralizado e neutro, parecido com o dos seus concorrentes? A razão é que, se fizer isso, ele também perderá o controle total da sua plataforma. E esse controle total, para ele, é precioso. Ele é a razão de Musk ter pago US$ 44 bilhões pelo Twitter, muito mais do que a empresa valia. Essa é também a razão pela qual ele lança um foguete a cada três dias para colocar em órbita satélites de provimento de conexão à internet no mundo todo. Musk não quer conectar o mundo. Ele quer controlar as redes que conectam o mundo.

READER

Já era – Achar que a concentração na internet é algo natural

Já é – Lembrar que quem defende liberdade de expressão promove a descentralização da rede e da sua infraestrutura

Já vem – Ficar claro que "liberdade de expressão" é só cortina de fumaça para Musk

sábado, 31 de agosto de 2024

Candidato surpresinha, Marçal vive glória ainda incerta, Marcos Augusto Gonçalves, FSP

 A rápida ascensão de Pablo Marçal nas pesquisas de intenção de voto interferiu no mapa político paulistano e nacional de maneira que não se previa. A trollagem do autodenominado ex-coach seria, sim, para dar algum resultado. Esperava-se que pudesse levá-lo a ganhar alguns pontos nas sondagens, mas que acabaria ficando por ali, como terceiro colocado sem aspirações à vitória. Acumularia cacife para tentar negociar alguma coisa no segundo turno.

Agora, já é outra história. Depois de o Datafolha flagar, em duas semanas, o salto de 14% das intenções para 22%, foi a vez da pesquisa Quaest reafirmar o empate técnico entre o deputado Guilherme Boulos, o prefeito Ricardo Nunes e Pablo Marçal.

O candidato Pablo Marçal, durante convenção do PRTB, em São Paulo - Rafaela Araújo - 4.ago.24/Folhapress

Espécie de bolsonarista sem Bolsonaro, o candidato surpresinha da eleição paulistana vive um momento de glória, mas não tem garantia de prazo de validade. Muito forte na internet, não terá espaço algum na propaganda de TV que começa nesta sexta (30). Mesmo nas redes, perdeu terreno, com a suspensão de seus perfis determinada pela Justiça. Seu passado nebuloso, com uma condenação criminal, e as conversas sobre supostas ligações com o PCC podem se voltar contra ele.

Por ora, Marçal causa turbulências no campo da extrema direita populista e desafia, com certa ambiguidade e dentro de certos limites, o reinado de Jair Bolsonaro. Pesquisas são retratos de um momento, e neste momento Nunes seria, segundo a Quaest, o grande vitorioso nas simulações de segundo turno. Bateria Boulos e Marçal com certa folga.

Na disputa contra o influenciador, o prefeito teria 47% contra 26%. Já num confronto com Boulos, o emedebista marcaria 46% a 33%. Caso o candidato do PSOL e Marçal passem, a Quaest indica, hoje, um empate em 38% das intenções do eleitorado.

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É fato que a experiência da vitória de Bolsonaro em 2018, em sintonia com a ascensão de líderes de perfil autoritário em outros países, trouxe uma dose extra de cautela nas avaliações sobre o que pode acontecer em eleições neste admirável mundo novo em que vivemos.

Como poucas vezes se viu, nos últimos anos pesquisas foram questionadas por movimentos de última hora ou por correntes mais profundas e não muito captadas. Apostas na predominância das opções institucionais, como partidos com história, postulantes com máquina ou nomes conhecidos do eleitorado tornaram-se mais incertas.

Diferentemente de outras grandes capitais, como o Rio, onde o quadro se mostra menos sujeito a chuvas e trovoadas, a eleição paulistana terá de ser acompanhada passo a passo pelos serviços de medição do clima eleitoral —sem dispensar frequentes olhadelas pela janela para conferir se não há raios caindo do céu azul.

Estive em Buenos Aires alguns meses antes da eleição de Milei. Conversei com amigos, intelectuais, jornalistas, gente informada. Estavam todos assustados com o ultraneoliberal antissistema, mas, talvez um pouco por desejo, céticos quanto a uma vitória. Sim, Bolsonaro era uma referência, mas do Brasil, não da Argentina, um país mais politizado, educado etc

Pois bem, deu no que deu.

PS - Estreia nesta sexta (30) o podcast Bocas de Urna, no qual terei a satisfação de conversar com Mônica Bergamo e Patrícia Campos Mello, duas craques do jornalismo, sobre eleições municipais no Brasil e eleição presidencial nos EUA. Toda semana nas principais plataformas.