sábado, 17 de agosto de 2024

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI A PEC da Segurança Pública é adequada? SIM

 


Pierpaolo Cruz Bottini

Advogado e professor de direito penal da USP

O crime organizado é apontado como uma das principais preocupações da população brasileira, em todas as classes sociais. Não é para menos. Estudo do Esfera Brasil e do Fórum Nacional de Segurança Pública apontou a existência de 75 facções no território nacional, com conexões na América Latina, África e Bálcãs, atuando em diversos setores, como tráfico de drogas, roubo de cargas, mineração e comércio ilegal de madeira, dentre outros.

Para além de afetar a vida e patrimônio de milhares de brasileiros, a atividade criminosa custa cerca de 1,7% do PIB para empresas, em segurança privada e seguros.

imagem mostra apreenção de maconha em fundo falso
Maconha apreendida em maio pela PRF em caminhão que transportava doações para o Rio Grande do Sul - PRF - 22.mai.2024/ Divulgação/PRF - 22.mai.2024/ Divulgação

Enfrentar essa situação exige mais do que as propostas usuais de aumentar penas, endurecer prisões e ampliar o efetivo policial. O Brasil conta com 820 mil pessoas sob custódia estatal, um crescimento de 44% nos últimos dez anos, e 796 mil profissionais de segurança, sem grandes avanços nesse setor.

Combater o crime organizado exige inteligência e organização. O Brasil tem 1.595 órgãos de segurança que pouco trocam informações. Há polícias militares, civis, federais, rodoviárias, municipais, judiciais, penais —cada uma com dados importantes sobre os crimes que enfrentam, mas não compartilhados com as demais. Inexistem números seguros sobre delitos e sua distribuição geográfica. As operações integradas são pautadas por experiências isoladas, incapazes de orientar taticamente ações contra facções sofisticadas, espalhadas por todo o território nacional. É necessário organizar esse rico acervo de dados, coordenar atividades, somar a excepcional experiência de cada agência em um sistema integrado e eficiente, que preserve a autonomia dos estados, mas garanta uma soma de esforços, uma cooperação eficaz.

Por lei, a União tem o dever de definir diretrizes para a segurança pública e gerir um sistema nacional de inteligência. Na prática, o ente carece de instrumentos para isso. A única forma de garantir a implementação de um sistema único de segurança pública é por meio de uma alteração constitucional, como aquela apresentada pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que garanta à União instrumentos para impor regras gerais sobre coleta de dados, estatísticas, registros de ocorrências, operações integradas e sistema prisional. Não se trata de alterar a formatação das polícias estaduais ou reduzir sua autonomia, mas de estabelecer padrões e garantir o repasse de informações relevantes em um sistema de cooperação efetiva, capaz de fazer frente ao crime organizado.

Delitos como o tráfico de armas, os loteamentos de terra clandestinos e o desmatamento ilegal exigem uma abordagem integrada, que envolva os diversos entes federados. Para ficar no último exemplo, combater o corte ilegal de madeira implica investigar a grilagem de terras, o desmatamento em si, o transporte da mercadoria por ferrovias ou hidrovias e o seu comércio, que muitas vezes ocorre a quilômetros de distância do local do crime, em portos e aeroportos. É preciso averiguar registros de imóveis, licenciadoras de madeira e agências de exportação situadas em diversos estados. Isso só é possível por meio de um sistema coordenado, no qual as diversas agências compartilhem experiências e dados colhidos ao longo do tempo, sem que barreiras corporativas ou federativas impeçam estratégias comuns de atuação.

PEC em discussão é um passo em direção ao futuro, um alicerce constitucional que permitirá superar obstáculos jurídicos e facilitar ações conjuntas de prevenção e repressão ao crime organizado que assombra a maior parte da população brasileira.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

A sabedoria de Minerva de volta aos tribunais, José Roberto Batochio, OESP

 Se seis julgadores decidem que o réu é culpado e outros seis proclamam a sua inocência, qual deve ser o veredicto do juiz que preside a corte julgadora e que vota por último?

A resposta foi dada em 458 a.C., na obra A Oréstia, em que Ésquilo concebeu os fundamentos do tribunal popular, presidido pela deusa Palas Atena. Naquele panteão, estava em julgamento Orestes, que vingou o assassinato do pai, o general Agamenon, matando a própria mãe, Clitemnestra, e o amante dela, Egisto. Entronizada no Olimpo como deusa da justiça, da liberdade e da sabedoria, Atena pontificou que o empate em qualquer julgamento consubstancia irresolução, traduz dúvida e expõe a ausência de certeza da culpa, e fundamentou-se no que viria a se tornar o famoso brocardo in dubio pro reo. Ao prolatar a decisão de desempate em favor de Orestes, Atena legou com esse gesto a jurisprudência segundo a qual se há dúvida, absolva-se o réu!

A deusa grega tomou o nome de Minerva na mitologia romana, quando encarnou a virtude da misericórdia, e sua decisão ficou conhecida, a partir do latim, como Voto de Minerva – o voto de desempate que é sempre de absolvição – non liquet –, jamais de condenação.

Dois milênios e meio depois, a sábia prática judicante da divindade está para ser expressamente incorporada no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Projeto de Lei n.º 3.453/2021, do deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e acaba de receber, com uma única emenda, beneplácito na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, e vai agora ao plenário, de onde, se também aprovado, retornará à Câmara, porque os senadores introduziram leve alteração no texto. A tramitação pacífica indica, no entanto, que será promulgada uma lei que obriga os tribunais, especialmente os superiores, a adotarem essa milenar prática civilizada nos julgamentos criminais.

A lei estará a determinar que, quando houver empate no julgamento por colegiado em razão da ausência de um de seus membros – tanto pela ocasional vacância do cargo quanto por pessoal impedimento de juiz –, considera-se o julgamento consumado com a decisão mais favorável ao réu. É dizer: não será necessário interromper o julgamento e aguardar a chegada de um novo juiz ou convocar membro de outro órgão para proferir o voto final. Obriga, também, o julgador à concessão de habeas corpus de ofício, à vista de ilegalidade contra a liberdade pessoal.

Dir-se-á que a nova lei não irá positivar, propriamente, o Voto de Minerva em sua exata significação originária. No caso do pleno do STF e a depender da matéria em cognição, se dez juízes se dividirem em grupos de cinco com posição antagônica, ainda poderá dar-se que o presidente profira o voto determinante em qualquer direção, inclusive contra o réu, ignorando o modelo civilizatório. Convém esperar, no entanto, que os que ocupam a presidência dos tribunais, mortais que são, não se julguem mais iluminados (ou seria “iluministas”?) que a própria deusa da sabedoria.

Antes que a doutrina de Linch, professada pela “voz das ruas”, já acuse a futura lei de incrementar a impunidade ou de impor aos juízes leniência com acusados que ela considere antecipadamente culpados, é mister invocar o dogma civilizado da liberdade como regra e a presunção de inocência constitucionalmente proclamada como princípios basilares do Direito civilizado.

Apanágio indissociável do devido processo legal, tal garantia cintila no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição da República, que estatui: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Encontra-se claramente estatuído, portanto, que todo acusado é inocente até receber uma condenação definitiva, que não possa ser alterada por via recursal. A condenação, por seu decisivo significado e sua validade, deve apresentar-se isenta de quaisquer dúvidas acerca da culpa do imputado. No caso dos órgãos colegiados, é imperativo que o édito condenatório seja lavrado a partir da maioria dos votos, a demonstrar a convicção majoritária dos julgadores, despida da incerteza que o empate de juízos expressa.

Já abordei o tema no artigo A sabedoria de Minerva no STF (Consultor Jurídico, 1/11/2019), tratando ilustrativamente da decisão do Supremo Tribunal Federal de negar habeas corpus preventivo ao cidadão Luiz Inácio Lula da Silva. O então ex-presidente da República pleiteava o direito de permanecer em liberdade até que fossem julgados os recursos manejados por sua defesa técnica nos processos a que respondia. Cinco ministros julgaram a favor, cinco contra, mas o voto de Minerva da presidente, que nem merecia essa designação, negou-lhe o direito, e ele foi injustamente preso. Ao fim isentado, ficaria demonstrado, e aceito pelo próprio STF, que era injusta e abusivamente acusado, e merecia o voto-lição libertário da deusa de quem o Judiciário então se esqueceu.

*

ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE NACIONAL DA OAB E DEPUTADO FEDERAL (PDT-SP)

Opinião por José Roberto Batochio