quinta-feira, 18 de julho de 2024

A Abin virou uma piada, Elio Gaspari, FSP

 Daqui a algumas semanas completam-se 70 anos do atentado em que a guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas urdiu o assassinato do jornalista Carlos Lacerda. Mataram um major que lhe dava proteção e abriram uma crise que terminou na manhã do dia 24 de agosto, com o suicídio do presidente.

Em poucas horas, a polícia associou a guarda ao crime. Os pistoleiros haviam contratado um táxi do ponto próximo ao Palácio do Catete e o motorista apresentou-se. Desde então, os personagens palacianos acham que podem tudo e metem-se em trapalhadas de comédia.

Na última, em agosto de 2020, o diretor da Agência Brasileira de Inteligência, Alexandre Ramagem, teria gravado uma reunião da qual participavam o presidente Jair Bolsonaro e o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Tratava-se de articular uma defesa para o senador Flávio Bolsonaro, acusado de avançar sobre os vencimentos de seus assessores.

O ex-presidente Jair Bolsonaro com Alexandre Ramagem, em evento no Rio - Pablo Porciuncula - 16.mar.24/AFP

Passaram-se quatro anos da reunião, o caso da "Abin paralela" rendeu algumas cadeias, mas as investigações para apurar as "rachadinhas" continuam na estaca zero. Isso no consumo jurídico, pois a turma que paga impostos sabe muito bem o que vem a ser uma "rachadinha" e quem delas se beneficia.

Com a redemocratização, a Abin sucedeu o Serviço Nacional de Informações. Ambos foram criados para atender à necessidade do governo de informar-se e ambos tornaram-se usinas pretorianas de futricas e atividades impróprias.

A reunião de agosto de 2020 é um exemplo disso. Nenhum exercício da imaginação pode explicar por que aqueles personagens se reuniram, senão para tentar blindar o filho do presidente. Até aí, tudo bem, mas gravaram. Aceitando-se a explicação do doutor Ramagem, o grampo destinava-se a pegar um personagem que não apareceu. Contem outra, senhores. A gravação dura mais de uma hora.

No grampo da reunião de 2020, ao saber que o advogado Frederick Wassef pagara despesas médicas de seu chevalier servant Fabricio Queiroz, Bolsonaro pergunta: "Qual é o problema?"

Wassef é um advogado e, no círculo familiar de Bolsonaro, ele chegou a ser chamado de "anjo". O chevalier Queiroz escondia-se em sua casa ao ser preso, em junho de 2020.

Na seleta clientela de Wassef esteve, entre 2015 e 2020, a empresa JBS, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Seus serviços valeram R$ 9 milhões. Três anos antes, cultivando o procurador-geral Rodrigo Janot, Joesley gravou uma conversa que teve com o então presidente Michel Temer. Os irmãos Batista voltaram à vitrine, não só pelo acesso que têm a Lula, mas também porque entraram no negócio esquisito de energia na Amazônia, com o beneplácito do Ministério de Minas e Energia. Há algo de compulsivo nesta dupla. Em 2010, Joesley Batista reclamava: "Por que pegam tanto no pé dessa empresa? Será que eu joguei pedra na cruz?"

Em tese, todos os governos precisam de um sistema de informações. Na vida real, o Brasil não conseguiu manter o seu, na ditadura ou na democracia. Mesmo em episódios ostensivos, como no movimento dos caminhoneiros de 2018 ou no vandalismo do 8 de janeiro. As informações estavam lá, mas os jogos de poder dos palácios não souberam processá-las.

Brasil precisa defender RenovaBio, maior programa de descarbonização da matriz de transporte do mundo, Ricardo Mussa - FSP

 Pode parecer espantoso, mas seres humanos têm o hábito de retardarem seu próprio progresso.

É o que mostra o livro "Innovation and Its Enemies: Why People Resist New Technologies" (Inovação e seus inimigos: por que as pessoas resistem a novas tecnologias", ainda sem tradução para o português), do queniano Calestous Juma (1953-2017).

Em seu livro, o então professor da Kennedy School, da Universidade de Harvard, aponta que nos últimos seis séculos sempre houve resistência a inovações, novas tecnologias ou regulações —da adoção do café como bebida diária à refrigeração mecânica, da música gravada (em vez dos concertos) ao uso de equipamentos agrícolas mecânicos.

Colheita de cana-de-açúcar no interior de São Paulo - Paulo Whitaker - 21.abr.2007/Reuters

A ideia de se opor à inovação mesmo quando ela parece promover o seu melhor interesse vem sendo percebida aqui no Brasil com os movimentos recentes que podem precipitar o desmonte da Lei 13.576/2017, a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio).

O RenovaBio é resultado de um longo e produtivo debate no Congresso Nacional, acelerado a partir do Acordo de Paris, onde o Brasil assumiu compromissos com metas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025, com uma contribuição indicativa subsequente de reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 43% até 2030, tendo como referência os níveis de 2005.

Faço um resumo para quem não está familiarizado com o tema. O RenovaBio tem três eixos:

  1. estabelecimento de metas de descarbonização para as distribuidores de combustíveis fósseis;
  2. criação dos Créditos de Descarbonização por Biocombustíveis (CBios), emitidos voluntariamente pelos produtores de biocombustíveis para compensar as metas dos distribuidores de combustíveis;
  3. certificação da produção ou importação eficiente de biocombustíveis.

A lei é inteligente e boa para o meio ambiente, especialmente para um país que precisa de segurança energética: a novidade de criar o CBios materializou o RenovaBio como o maior programa de descarbonização da matriz de transporte do mundo.

Em 2023, de acordo com a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), um total de 33,1 milhões de CBios foram aposentados (retirados de circulação) por distribuidores, o que corresponde a 81% das metas individuais a eles atribuídas pela ANP.

O programa, contudo, está sob risco.

Uma das ameaças é a inadimplência, que vem ganhando corpo e ainda não enfrenta uma barreira sólida que impeça de maneira efetiva o não cumprimento dos compromissos estabelecidos pela lei.

Conforme revelam os dados da ANP, dos 145 distribuidores de combustíveis com metas fixadas para o ano de 2023, 55 não aposentaram CBios.

Somente no ano passado, 19% da meta do RenovaBio deixou de ser atingida, chegando a 7,61 milhões de CBios não aposentados. Isso equivale a R$ 860 milhões de vantagem competitiva aos inadimplentes (muitos reincidentes), segundo estimativa do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás).

Outra ameaça, ainda mais grave e cada vez mais frequente, passa pelas liminares na Justiça, que mostram ter como único objetivo postergar o cumprimento de metas individuais, e que podem acabar colocando na contramão da história atores que se dizem referências em sustentabilidade.

Recorrer a filigranas jurídicas para descumprir obrigações financeiras se mostra um despropósito diante da urgência de combater as mudanças climáticas.

Por isso, é fundamental prestar atenção aos riscos que o programa vem sofrendo. E é importante salientar que, sem dúvidas, ainda é possível aprimorar a legislação para que ela atenda plenamente o seu objetivo, algo que certamente não fugirá à atenção do Ministério de Minas e Energia.

A vigarice abrigada sob o guarda-chuva conservador nos EUA, Lucia Guimarães, FSP

 Foi uma demonstração extraordinária de unidade em Milwaukee. O autor best-seller que tinha descrito Trump como um "canalha cínico" e o comparou a Hitler foi escolhido pelo dito canalha como vice da chapa republicana.

A ex-pré-candidata rival que o chamara de "mentalmente incapacitado" e declarou, em fevereiro, que votar nele "seria suicídio para o país", reinventou-se como uma cinderela trumpista na segunda noite da convenção.

A ex-governadora da Carolina do Sul e adversária de Donald Trump nas primárias Nikki Haley faz um discurso em apoio ao ex-presidente na convenção do Partido Republicano em Milwaukee - Elizabeth Frantz - 16.jul.24/Reuters

Na plateia, entre a multidão veneradora, muitos ostentavam curativos quadrados na orelha direita sem ter levado um tiro em comício –se não contarmos a flecha imaginária que, há anos, injetou o estupor acrítico nos seus cérebros.

Sim, podem chamar a convenção republicana de triunfo de unidade. Só não chamem de unidade do movimento conservador. Se o conservadorismo tradicional implicava noções de rigor moral a dever cívico, nada sobrou de conservador neste desfile de vigaristas que dominam hoje o partido de Abraham Lincoln, o primeiro presidente republicano. É gente que faz os "príncipes nigerianos" que nos mandam emails parecerem amadores.

E a normalização da vigarice é completa. Cenas de atentado? Perfeitas para vender bugigangas. Horas depois do disparo do atirador na Pensilvânia, já era possível obter uma tatuagem com a foto de Trump erguendo o punho, cercado pelo Serviço Secreto.

Onde termina a fraude ideológica e começa o faturamento do logro? Um novo livro ajuda a iluminar este cenário. Em "The Longest Con: How Grifters, Swindlers, and Frauds Hijacked American Conservatism" (A fraude mais longa: como vigaristas, trapaceiros e fraudes sequestraram o conservadorismo americano, em português) o jornalista veterano Joe Conason oferece um relato saboroso da indigesta transformação da sigla que tem abrigado a direita e a ultradireita dos EUA.

Não é coincidência o mentor da juventude de Trump ter sido um dos patronos da falcatrua como operação política. Nos anos 1950, o advogado Roy Cohn era o braço direito do senador Joe McCarthy na infame campanha anticomunista conhecida como caça às bruxas. Cohn logo entendeu como um guarda-chuva de falsa indignação moral é o ambiente perfeito para montar campanhas de modo a aliviar eleitores de seus suados dólares, como a "Maioria Moral" e outras empreitadas de tele-evangelistas milionários.

Trump, que não acreditava em pagar imposto de renda ou as contas de construtores de seus prédios, chegou a Washington afiado. No dia da posse –20 de janeiro de 2017– ele registrou a campanha de reeleição para começar a arrecadar fundos. Antes do pleito de 2020, seu genro e pilantra Jared Kushner já tinha pronto o esquema "Stop the Steal" (parem o roubo), campanha que levantou dinheiro para financiar o combate à fraude eleitoral que nunca existiu, muito além da posse de Joe Biden.

Uma prisão do estado de Connecticut hoje abriga o detento 05635-509, padrinho do Bannoninho, o filho 03 do capitão golpista. O ex-assessor de Trump Steve Bannon cumpre pena por desafiar uma ordem do Congresso, mas vai ser julgado este ano por uma fraude que faria corar a turma da rachadinha, se é que ainda conseguem sentir alguma vergonha.

Ele montou a empresa "Nós Construímos o Muro" que usou para roubar de otários convencidos de que um muro de contenção é a solução para o problema de imigração nos EUA.

Quando um político americano se apresentar como republicano conservador, por via das dúvidas, segure firme sua carteira.