[RESUMO] O documento do Ministério da Justiça que estabelece diretrizes nacionais para o emprego de câmeras corporais por policiais militares, apesar de acertado em seus objetivos, têm brechas que poderão ser usadas por estados evitar sua implementação, o que limita a necessária compatibilização da segurança pública brasileira com o regime democrático.
Em uma passagem de "A República", Platão escreve sobre Giges, um pastor da Lídia que, depois de encontrar um anel que o tornava invisível, entrou no palácio do reino sem ser visto, "seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder".
O filósofo aponta a importância da transparência na prática de atos cotidianos e alerta sobre os perigos de pessoas que possam passar despercebidas. Ou seja, Platão indica como a falta de transparência pode levar a crimes e garantir a impunidade de seus agentes.
Esse é o ponto central da discussão sobre o uso de câmeras corporais pelas polícias.
De forma geral, policiais militares são contra o uso das câmeras. Segundo eles, que contam com o apoio de autoridades, parlamentares e parcela da sociedade, o equipamento afetaria negativamente o desempenho da atividade policial —o uso de câmeras corporais tiraria sua liberdade de trabalho.
Por outro lado, pesquisas mostram que, com o uso das câmeras corporais, houve redução tanto do número de pessoas mortas por PMs quanto da quantidade de policiais mortos em ação. O equipamento poupa vidas.
No fim de maio, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou uma portaria para disciplinar o assunto. Teço aqui algumas considerações.
O texto é bem redigido e embasado em estudos e pesquisas, inclusive com ampla revisão bibliográfica, um aspecto que considero essencial por conferir à segurança pública o status de ciência, fato raro no país.
Mesmo assim, considerando exemplos pretéritos, tenho sérias dúvidas quanto à aplicação concreta da portaria. Em 1996, 2002 e 2009, o governo federal lançou, respectivamente, os Programas Nacionais de Direitos Humanos 1, 2 e 3. Em 2007, foi a vez do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania). São Paulo instituiu o Programa Estadual de Direitos Humanos em 1997. Em 2012, a Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República publicou uma resolução que recomendava aos estados não empregar as expressões auto de resistência e resistência seguida de morte.
Todos muito bem elaborados e solenemente ignorados. Por que agora seria diferente se a estrutura da segurança pública é a mesma?
A iniciativa do Ministério da Justiça poderia ser mais ousada e mais impositiva. O documento condiciona o repasse de verbas da Secretaria Nacional de Segurança Pública aos estados que cumprirem a portaria, mas apenas para a aquisição de câmeras. A transferência de verbas para todos os tipos de despesa deveria ser condicionada.
A portaria estabelece acertadamente o uso de câmeras por membros da Força Nacional de Segurança Pública e da Força Penal Nacional, mas erra ao não incluir os membros das Forças Armadas que atuam em ações de GLO (garantia da lei e da ordem), em que desempenham atividades de segurança pública. Por que não os incluir?
Ao regulamentar quem pode acessar o conteúdo gravado pelas câmeras, a norma inclui corretamente as autoridades administrativas e policiais e membros da Defensoria Pública, do Ministério Público e do Poder Judiciário, mas erra ao excluir as ouvidorias das polícias, justo elas que exercem um papel tão importante junto à sociedade civil.
A portaria permite que cada estado regulamente o uso das câmeras corporais e permite tanto o acionamento automático (ininterrupto) quanto o remoto dos equipamentos. Entendo que o acionamento automático deveria ser obrigatório, já que os estados poderão criar restrições ao uso das câmeras corporais com base nesse dispositivo da portaria, que, além de tudo, permite gravações restritas ou mesmo a ausência de gravação em situações excepcionais.
Isso, a meu ver, abre a possibilidade de descumprimento da portaria pelos estados sob a alegação de que estão procedendo de acordo com o documento.
Há também sérios desafios em relação à auditoria externa do sistema de armazenamento, ao controle de registro de uso do equipamento, ao acesso aos dados para a realização de estudos e avaliações do programa, à transparência e ao efetivo controle social. Hoje, o acesso às gravações é dificultado, quando não obstruído —o fornecimento incompleto dos dados não é incomum.
A recente LOPM (Lei Orgânica das Polícias Militares) proporcionou mais independência e autonomia às PMs. Com menos transparência e maior autonomia de ação, quem vigia os vigias?
Para o filósofo italiano Norberto Bobbio, a democracia é o governo do poder público em público. Isso quer dizer que, sem transparência, não há democracia de fato.
Ao que tudo indica, o governo Lula (PT) não quis desagradar a bancada da bala, com quem se aliou para a aprovação da LOPM. Além de tentar angariar maior simpatia dos policiais militares, o governo federal busca com vigor obter maioria no Congresso Nacional para aprovar projetos de seu interesse. Há intensa negociação, e o Executivo está fazendo de tudo para conseguir votos.
O atual sistema de segurança pública não é compatível com o regime democrático. Não poderia ser diferente, pois é, na essência, o mesmo da ditadura. As tentativas de frear a implementação de câmeras corporais nas polícias —e mesmo reverter o alcance dessa política, como faz o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo— dá novo impulso à relevância do tema da desmilitarização das PMs.
A iniciativa do Ministério da Justiça também põe em foco a necessidade de a União ocupar um papel de direção, digamos, do sistema. Para tanto, a alteração do artigo 144 da Constituição Federal é assunto da maior importância.
A portaria, dessa forma, tem tudo para não produzir os efeitos desejados. Infelizmente, são raras as chances de o documento ampliar a transparência e o efetivo controle social das polícias. Os estados poderão editar normas em desacordo com a portaria, e o Ministério da Justiça pouco poderá fazer.
Criou-se um cenário em que um Giges contemporâneo, atuando na polícia e se recusando a usar uma câmera corporal (ou a utilizando segundo seu arbítrio), se tornará invisível e poderá agir sem que ninguém exerça controle sobre seus atos.
Platão adverte que "a extrema injustiça consiste em parecer justo não o sendo". Nesse contexto, a impunidade tem tudo para prosperar.