domingo, 9 de junho de 2024

Combustível é produto nobre de aterros sanitários, que recebem quase 60% do lixo do país, FSP

 Alexa Salomão

RIO DE JANEIRO

São cerca de 350 carretas com lixo entrando e 31 caminhões saindo carregados com cilindros de biometano, produto idêntico ao gás natural extraído dos poços de petróleo, com a diferença que emite uma fração dos gases de feito estufa de seu correlato de origem fóssil.

Assim é a rotina diária na área em Seropédica, no Rio de Janeiro, onde os 110 veículos que operam para a Ciclus Ambiental, da Simpar, realizam 350 viagens por dia para aterros sanitários do grupo, a partir dos quais a Gás Verde, do Grupo Urca, produz energia de resíduos.

A reciclagem energética, ou recuperação energética, como se chama essa atividade, é uma das modalidades de reaproveitamento de resíduos que mais avança no Brasil. Ela transforma aterros sanitários —destino final de quase 60% dos resíduos sólidos urbanos do país— em grandes complexos com captação de biogás e geração de energia.

Em Seropédica, a reciclagem energética ganhou uma escala particular. O aterro sanitário da Ciclus é o maior da América do Sul, com 3 milhões de m³ (metros cúbicos), o equivalente a mais de 250 campos de futebol. A unidade da Gás Verde é a maior produtora de biometano da América Latina.

Vista das instalações da Gás Verde, do Grupo Urca, em Seropédica, no estado do Rio de Janeiro; planta de refino de biogás em biometano é a maior da América Latina - Eduardo Anizelli/Folhapress

O biometano é obtido a partir da purificação do biogás, que é emitido de material orgânico em decomposição, como lixo, restos de produtos agropecuários e até esgoto. Numa conta de padaria, cada 2 m³ de biogás produz 1 m³ de biometano. O processo é antigo. Os chineses tinham biodigestores para tirar gás de esterco na Idade Antiga.

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Aterros sanitários que não fazem reciclagem energética são fontes emissoras de gás metano na atmosfera provenientes da decomposição livre do lixo. O metano, o segundo gás de efeito estufa mais importante depois do CO2, é muito mais potente que o CO2, apesar de sua vida útil ser mais curta. Estudos apontam que o metano é responsável por aproximadamente 30% do aquecimento global desde a Revolução Industrial.

No Brasil, o líder em potencial de extração de biogás e biometano é a agropecuária. No entanto, o aterro sanitário se mostrou a fonte mais rápida a ser explorada por estar próxima a centros urbanos, seus postos de gasolina e suas redes de abastecimento elétrico.

A oferta, porém, também é inferior ao potencial. Apenas 2.181 do total de 5.568 municípios do país se declararam predispostos a implantar um aterro sanitário no lugar dos tradicionais lixões, medida essencial para a gestão dos resíduos e o controle na emissão de gases. Persiste o uso do lixão, com seus problemas ambientais, sociais e de saúde pública.

No Brasil, o biometano ganhou força após o uso ter sido parametrizado e regulamentado, em 2016, pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis). O produto, que valia bem menos que o gás fóssil, hoje chega a valer 30% mais por causa da relação entre oferta e demanda.

"A energia é um produto nobre da reciclagem de material orgânico que a gente demorou muito tempo para entender o valor e viabilizar economicamente", afirma Carlos Canejo, professor do mestrado profissional em Ciências do Meio Ambiente da Universidade Veiga de Almeida, no Rio, e consultor nas áreas ambiental e de gestão de resíduos.

"A gente começou a colher os primeiros frutos de uma gestão de resíduos mais assertiva e tecnológica só recentemente. Por outro aspecto, é como se a gente estivesse saindo agora da Idade Média, porque ainda precisamos convencer as pessoas a não jogar lixo em terreno baldio."

busca pelo biometano avança especialmente em dois segmentos empresariais, a produção industrial e a logística de transporte, que buscam descarbonizar as suas operações reduzindo o consumo ou mesmo abandonando o uso do gás de petróleo, carvão mineral e diesel, com redução nas emissões de gases de efeito estufa de no mínimo 80%, a depender da fonte substituída.

A Gás Verde opera 18 plantas de biogás e biometano no Brasil. Apenas de biometano, produz 160 mil m³ por dia. A empresa investe para ampliar a produção do combustível.

"Hoje temos dez térmicas de energia elétrica movidas a biogás em aterros que a gente está convertendo para biometano", explica o empresário Marcel Jorand, CEO da Gás Verde e cofundador do Grupo Urca.

"Com elas, hoje a gente produz mais de 1 milhão de m³ de biogás por dia, que a gente converte em energia elétrica. Vamos passar a converter tudo em biometano, chegando a um volume de 600 mil m³ por dia já em 2026."

A operação de Seropédica é um raio-X da engrenagem que permite economia circular voltada à geração de energia.

A Ciclus Rio tem a concessão para fazer a gestão dos resíduos sólidos da cidade do Rio de Janeiro e atende outros municípios, como Itaguaí, Mangaratiba, São João de Meriti, Piraí, Miguel Pereira, além de Seropédica e clientes privados.

A Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) recolhe o lixo e entrega nas estações de transferência da Ciclus —cinco ao todo—, movimentando cerca de 10 mil toneladas de resíduos diariamente.

Nas estações, os resíduos são transferidos dos caminhões de coleta para as carretas. Cada carreta transporta a carga de quatro caminhões até o aterro de Seropédica, chamado pela empresa de CRT (Central de Tratamento de Resíduos).

O local foi preparado para funcionar como um aterro sanitário bioenergético, com camadas de proteção para deter a contaminação do solo e um sistema de drenagem com mais de 350 poços interligados por tubulações para captar, por hora, 24 mil m³ de biogás.

Diariamente, são produzidos 576 mil m³ de biogás, cerca de 10% do total nacional, o que evita o lançamento na atmosfera de 20 mil m³ de gás metano, o equivalente a emissão de 300 mil veículos leves, cerca de 5% da frota na cidade do Rio.

A Ciclus utiliza parte do biogás na geração de energia elétrica para se abastecer e também vender no mercado livre. A maior parcela, 67%, segue para a Gás Verde por meio de tubulações. Em sua planta, diariamente, a Gás Verde transforma esse biogás em 130 mil m³ de biometano. Na sequência, o produto é comprimido e injetado em cilindros para o transporte em carretas, também movidas a biometano.

O biometano da Gás Verde abastece 40 postos no Rio e é utilizado por empresas como a rede de supermercado Dia, a fabricante global de vidros Saint-Gobain, o grupo L’Oréal de produtos de beleza e a indústria de bebidas Ambev, que com ele transformou a unidade de Cachoeira de Macacu (RJ) na primeira cervejaria do Brasil movida 100% a biometano.

Segundo estimativa da ABiogás (Associação Brasileira do Biogás), se o Brasil utilizasse todo o seu potencial de produção, incluindo esgoto e agronegócio, além dos resíduos, seria capaz de produzir 6 milhões de m³ de biometano por dia e gerar 800 mil empregos.

Hoje, o país produz uma fração disso, 985 mil m³ por dia. Apenas seis plantas estão habilitadas pela ANP para a produção comercial. Outras 14 operam em regime de autoprodução. Há uma fila com 22 plantas aguardando a liberação da agência. Sondagem da entidade aponta que o setor se mobiliza para tirar do papel 90 aterros sanitários com produção de biogás até 2029.

Na avaliação de Renata Isfer, presidente-executiva da ABiogás, a demora faz parte do processo natural de aprendizado para lidar com um novo produto.

"O mercado foi estruturado para trabalhar com o gás natural de fonte fóssil. Tanto os empreendedores do setor quanto os técnicos da ANP estão num processo de aprendizagem para calibrar as regras."

Pesquisa mostra que salário deveria ser R$ 3.428 para vida digna na capital de SP, FSP

 Alex Sabino

SÃO PAULO

Quem mora na capital de São Paulo precisa receber bem mais do que o dobro do salário mínimo nacional para ter uma vida digna. O valor estipulado pelo governo federal e aprovado pelo Congresso é de R$ 1.412. Pesquisa realizada pelo Anker Research Institute mostra que o montante correto seria R$ 3.428.

Para uma residência com quatro pessoas, sendo duas delas em idades de trabalho, a renda familiar mínima deveria ser de R$ 5.965, o que foi chamado de renda digna.

Política do governo federal para reajuste do salário mínimo engloba inflação e crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) - Reuters

Em associação com o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e com apoio da Global Living Coalition, o Anker fez uma pesquisa nacional para estipular qual o número mínimo real necessário para levar ter uma vida sem apuros no Brasil. O estudo dividiu o país em 59 regiões, sendo cinco delas no estado de São Paulo, levando em considerações características econômicas.

O estudo usa o mesmo princípio do que no exterior é chamado de "living wage": o valor para um trabalhador suprir suas necessidades básicas.

Até agora, o Anker compilou os dados coletados em São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, interior do Piauí e algumas regiões do Ceará.

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"A divulgação destes valores permite que eles sejam utilizados por governos, empresas, terceiro setor e sociedade civil na implementação de ações concretas que tenham este tema como foco. Queremos embasar a discussão e, consequentemente, contribuir para a criação e implementação de estratégias e planos de ação concreto para tornar o salário digno uma realidade", afirma Ian Prates, coordenador do projeto no Brasil, líder de inovação no Anker Research e pesquisador do NUDES/Cebrap.

A pesquisa foi feita, segundo o documento produzido pelo instituto, para "estimar valores médios de renda e salários dignos rurais e urbanos, para o país, utilizando dados secundários." Foram feitos cálculos regionais sobre o que era preciso para custear alimentação saudável, habitação digna e outras despesas não alimentares ou habitacionais.

Foram consideradas trabalhadores e trabalhadoras de 25 a 59 anos.

Em São Paulo, onde os dados já foram totalmente compilados, o salário digno vai de R$ 2.518 na região que engloba o litoral (menos Santos) e Itapetininga aos R$ 3.428 na capital (veja arte).

No conceito de renda digna, o salário digno é multiplicado por uma variável que vai de 1,7 a 1,74 porque considera que dois integrantes em família de quatro pessoas trabalham. Uma delas receberia o salário maior e outra, entre 70% e 74% deste valor.

"Estamos replicando esta metodologia em outros países, como México, Índia, Gana e Costa Rica. Ao divulgar esses valores e torná-los públicos a todos os atores da sociedade, esperamos contribuir para que a agenda do salário digno ganhe cada vez mais força no país, permitindo que mais trabalhadores e suas famílias tenham acesso a um padrão de vida decente", diz Richard Anker, diretor do instituto.

Segundo o Anker Research, foram estimados valores para famílias acima da linha da pobreza. Segundo o Banco Mundial, estão abaixo deste parâmetro quem recebe menos de R$ 637 por mês (atualizado em dezembro do ano passado). A linha de extrema pobreza estaria em R$ 200 a cada 30 dias.

Nos países em que a distância entre o salário mínimo e o digno não é grande, ONGs e sindicatos fazem campanha para que as empresas adotem a segunda opção. No Reino Unido, por exemplo, o mínimo é 11,44 libras esterlinas por hora (R$ 76,90) e o digno está em 12 libras esterlinas (R$ 80,65).

"O salário mínimo é muito mais uma questão de determinações políticas do que meramente econômicas. Não é fruto do cálculo de uma cesta. Eu acho interessante este conceito do salário digno. Mostra o caminho que o país tem de percorrer para chegar nesse nível. Está aí para debate. É salutar", afirma Lauro Gonzalez, coordenador do Cemif (Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira) da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Em dados de outros estados já tabulados pelo Anker Research, o salário digno de Porto Alegre é ainda maior que o da capital paulista (R$ 3.969). Nas três regiões em que Santa Catarina foi dividida, a média do que foi considerado necessário para suprir as necessidades básicas foi de R$ 2.702. É valor superior ao do interior do Piauí (R$ 2.545) e do Ceará (R$ 2.082, sem incluir Fortaleza).

Pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho e professor de Economia da Unicamp, José Dari Krein lembra que o salário mínimo perdeu na década de 1970, durante o regime militar, o espírito para o qual foi criado. Deixou de ser referência para dar uma vida decente à classe trabalhadora para ser consenso do que a classe empresarial e o governo seriam capazes de pagar.

"O salário mínimo no Brasil é muito baixo. Os R$ 1.412 estão muito distantes do que é necessário. A lei do tinha como perspectiva o custo da cesta básica. Desde a ditadura militar deixou de ser referência do que era necessário para uma família viver e passou a ser referência do que as instituições públicas e a iniciativa privada conseguiam suportar. Quem ganha R$ 1.412 tem muita dificuldade para pagar itens básicos de sobrevivência", afirma ele.

"Os resultados mostram que os custos de vida variam bastante de região para região, assim como as condições do mercado de trabalho que também são levadas em consideração. No estado de São Paulo, por exemplo, os dados de IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], de PIB per capita, de distribuição de valor de produção por setores, estão correlacionados aos valores de salário digno. A gente percebe, assim, que as diferenças de salário de salário digno Anker se espelham nas condições econômicas e sociais", complementa Alexandre de Freitas Barbosa, professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (Universidade de São Paulo), professor de História Econômica e Economia Brasileira e um dos coordenadores do projeto Salário Digno Brasil.

Para onde nadam os tubarões?, Marcos de Vasconcellos, FSP

O hit da década de 1990 "Xibom Bombom" já repetiu à exaustão que os ricos cada vez ficam mais ricos. Nesta semana, um estudo da consultoria global Capgemini trouxe um desenho mais profundo da situação.

Segundo o relatório, a fortuna das pessoas que possuem mais de US$ 1 milhão (cerca de R$ 5,3 milhões) em capital disponível aumentou 4,7% no último ano. E a quantidade de gente nesta categoria também subiu 5,1%. Em resumo, os ricos estão mesmo cada vez mais ricos, mas tem mais gente entrando para o clube, que hoje conta com 22,8 milhões de pessoas.

No total, aqueles classificados como HNWIs (sigla em inglês para high-net-worth individuals) atingiram um patrimônio de US$ 86,8 trilhões (mais de R$ 450 trilhões) em 2023. O dado chama mais atenção quando lembramos que o PIB (Produto Interno Bruto) das 10 maiores economias do mundo, em 2023, somado, dá cerca de US$ 69,86 trilhões (cerca de R$ 373 trilhões), segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional).

Desde janeiro de 2023, o percentual dos investimentos dos milionários em ações caiu dois pontos percentuais, de 23% para 21%. - Amanda Perobelli/Reuters

O maior impulsionador do aumento, segundo a consultoria, foram as altas das ações em 2023, principalmente no setor de tecnologia. Só que, agora, em 2024, as apostas deles na Bolsa estão minguando.

Aqui peço licença para voltar a bater na tecla de que são os gigantes que movimentam os preços do mercado. Os fundos bilionários, que gerenciam a grana dos milionários, fazem as Bolsas subir ou cair. Então enxergar para onde vai o dinheiro dos tubarões pode ajudar as sardinhas a navegar com mais tranquilidade.

De janeiro de 2023 para janeiro de 2024, o percentual dos investimentos dos milionários em ações caiu dois pontos percentuais, de 23% para 21%. Isso mostra que eles continuam sacando dinheiro das bolsas, como vêm fazendo desde 2021, quando tinham 30% do seu patrimônio em ações. São três anos seguidos de sangria.

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Isso não significa que o dinheiro está indo para baixo do colchão. Muito pelo contrário, aliás. O percentual de dinheiro em caixa (ou seja: parado na conta) minguou ainda mais do que a fatia das ações. Foi de 34%, em 2023, para 25%, em 2024.

Se estão sacando as ações e sem deixar o dinheiro no caixa, para onde, então, está indo a grana daqueles que têm o poder de movimentar as marés do mercado?

A fatia destinada a papéis de renda fixa aumentou em um terço, subindo de 15% para 20%. O dinheiro gasto em imóveis teve um movimento semelhante, saltando de 15% para 19%.

Até mesmo os chamados "investimentos alternativos" —que incluem commodities, criptomoedas e investimento direto em empresas— aumentaram sua participação na carteira dos milionários, de 13% para 15%.

Em resumo, temos uma ótima notícia: a turma do andar de cima está claramente focada em buscar ativos de crescimento, em vez de manter posições puramente defensivas, como o dinheiro em caixa. Isso destrava valor dos mercados.

Para além disso, fica um alerta: um ajuste nos tipos de ativos em carteira poderá trazer mais retorno do que simplesmente repetir fórmulas do passado. Os tubarões estão apostando como nunca nos investimentos alternativos. Seus investimentos em renda fixa e em imóveis é o maior desde 2018. E os seus?