sexta-feira, 17 de maio de 2024

Informativo | Alterações no Código Civil, Innocenti

 O Código Civil de 2002 é o principal diploma normativo nacional relativo às tratativas diárias entre particulares, regendo, portanto, o que se chama de Direito Privado, especialmente as relações entre indivíduos e seus bens, casamento, contratos, compra e venda de bens, herança etc..

Por reger normas da sociedade, que é dinâmica, apesar de ser considerado “novo” quando comparado aos demais Códigos brasileiros, o direito precisa evoluir para acompanhar a dinamicidade social, razão pela qual já se discute no Brasil, desde 2023, o texto da reforma do Código Civil.

Recentemente, a comissão de juristas do STJ aprovou o relatório final, que poderá culminar na alteração de centenas de artigos. Dentre as diversas alterações, selecionamos as principais relacionadas ao Direito de Família:

(i) Ampliação do conceito de família – importante alteração trazida no anteprojeto de alteração do CC/02 passa a reconhecer as famílias formadas por vínculos, além daquelas formadas por vínculos não conjugais.
O texto da reforma classifica como família a) os casais (hetero ou homoafetivos) que tenham convívio estável, contínuo, duradouro e público; b) as famílias formadas por mães ou pais solos e; c) grupos que vivam sob o mesmo teto e possuam responsabilidades familiares.
Trata-se de alteração relevante, pois, com a aprovação desta nova definição, tais entidades familiares passarão a, legalmente, ser titulares de direitos e deveres inerentes à toda família, passando a ter reconhecimento legal e gozando de proteção jurídica.

(ii) Facilitação do Divórcio Unilateral – O relatório da comissão formada para alteração do CC/02 prevê a criação do artigo 1.582-A no código. Nesta proposta de mudança, o divórcio ou a dissolução da união estável podem ser requeridos no cartório do registro civil de forma unilateral por um dos cônjuges ou conviventes, desde que acompanhado por advogado ou defensor público.

(iii) Exclusão do cônjuge ou companheiro como herdeiro necessário – pelas regras atuais da Lei Civil, especificamente o artigo 1.845 do Código, são herdeiros necessários os descendentes (filhos e netos), os ascendentes (pais e avós) e os cônjuges. Para além disso, o Código Civil garante também a concorrência do cônjuge ou companheiro, em alguns casos, com os descendentes ou ascendentes em caso de falecimento do parceiro.

A previsão atual garante o direto a uma parte da herança legítima, isto é: a parte do patrimônio do falecido que é obrigatoriamente destinada aos herdeiros necessários.

Caso aprovada a alteração prevista no texto sugerido pela comissão, o cônjuge deverá ser excluído do rol do artigo 1845. Além disso, o projeto prevê que o cônjuge e o companheiro serão herdeiros apenas na falta de descendentes e ascendentes.

Trata-se de mudança que impacta diretamente os cônjuges e companheiros, favorecendo a autonomia do autor da herança para dispor de seus bens.

(iv) Animais de estimação – há muito tempo os pets são membros das famílias para a sociedade civil. E, diante dessa dinâmica social, a proposta de alteração Código estabelece uma nova relação jurídica para os animais, alterando até a mesma a forma como estes serão tratados perante a lei.

Atualmente o Código Civil de 2002 trata os animais como “coisas” (bens móveis). O relatório apresentado pela comissão propõe reconhecer os animais como seres que possuem direitos próprios, isto é, seres sencientes, capazes de sentir sensações e emoções, como felicidade e sofrimento.

No âmbito do direito familiar, por exemplo, propõe-se a regulamentação da convivência compartilhada dos animais de estimação e a repartição das despesas para sua manutenção após a dissolução do casamento ou da união estável.

Como se vê, haverá sensível alteração no Código Civil no que tange ao direito das famílias se a reforma for aprovada como consta do anteprojeto apresentado pela comissão.

O projeto seguirá para análise do Senado e a expectativa é que ele seja votado ainda este mês.

Equipe Família e Sucessões

Chafariz do Tebas não volta para o centro de SP por falta de vontade política, FSP

 Guilherme Soares Dias

SÃO PAULO

O Chafariz da Misericórdia, construído em 1792 no Largo da Misericórdia, no centro de São Paulo, pelo arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira, conhecido como Tebas, é considerado a tentativa mais remota de embelezamento público da cidade. A obra foi uma grande revolução para a época, pois trazia água potável para a população, além de ter um efeito estético.

O monumento não era tombado pelo patrimônio histórico e foi retirado no início do século 20 e depois disso há tentativas de recolocá-lo no antigo lugar, mas o poder público parece ignorar a importância da obra e da sua função: ter água para as pessoas que por ali passam.

Os chafarizes nos séculos passados eram locais de sistema de abastecimento de água e ponto de encontro que causaram incômodo no poder público. O coordenador do Instituto Tebas de Educação e Cultura, o escritor Abilio Ferreira lembra que a população escravizada era quem utilizava o recurso da água. "A cidade tinha problema de abastecimento, como ocorre hoje", ressaltou, em entrevista ao podcast Guia Negro.

Com quatro torneiras e talhado em pedra de cantaria, uma grande modernidade para a época, o chafariz tinha formato de pilão e aparece em aquarela e desenho de pena de José Washington Rodrigues. "É uma mostra de que a São Paulo urbana do período colonial, tem a marca do Tebas, que renovou sua paisagem", ressalta o escritor que tem um livro sobre o arquiteto. Há ainda uma foto de Militão Agusto de Azevedo que registra a obra.

Vista do largo da Misericórdia, no centro de São Paulo, em 1862, ainda com o chafariz de Tebas em frente à igreja; imagem do Álbum Comparativo de Militão Augusto de Azevedo
Vista do largo da Misericórdia, no centro de São Paulo, em 1862, ainda com o chafariz de Tebas em frente à igreja; imagem do Álbum Comparativo de Militão Augusto de Azevedo - Reprodução

Tebas nasceu em Santos e foi escravizado pelo português Bento de Oliveira Lima, um conhecido mestre de obras com quem teria aprendido o ofício de arquiteto. Com Lima, ele veio para a cidade de São Paulo atrás de melhores oportunidades de trabalho, numa época de ebulição da construção civil.

Conquistou a alforria aos 58 anos e trabalhou para diferentes irmandades de igrejas: do Carmo, Franciscana, além do Mosteiro São Bento e de ter feito a fachada da segunda versão da Catedral da Sé (atualmente é a terceira versão que está em pé). Uma estátua homenageando o arquiteto foi construída em 2020 na Praça Clóvis Beviláqua, na Sé, em frente à Igreja da Ordem Terceira do Carmo, sendo executada por pessoas negras como o artista Lumumba Afroindígena e a arquiteta Francine Moura.

O chafariz voltou ao cenário urbano em uma réplica na Jornada do Patrimônio, evento promovido pela Secretaria Municipal de Cultura, em 2019 e novamente tinha água potável disponível para a população e continuou sendo bastante útil, em uma região com pessoas em situação de rua, trabalhadores de comércio e transeuntes diversos. A água disponível virou uma festa e foi como se o século 18 estivesse ocorrendo ali novamente.

Ausente do Largo da Misericórdia, o chafariz é um testemunho da São Paulo colonial e foi um local responsável pela identidade do povo paulistano, uma vez que era lugar de reunião de pessoas que iam até o local abastecer as casas de água. "Ali se reuniam muitos africanos, sobretudo do grupo linguístico banto e indígenas. Era um lugar de sociabilidade, conflito, de conspiração, sempre sob vigilância do Estado para evitar rebeliões", ressalta Abilio Ferreira.

O próprio apelido do arquiteto, Tebas, significa, pessoa empoderada, e a palavra tem origem quimbundo segundo o Houaiss e na internet aparece como de origem tupi. "Não sabemos se palavra já existia antes e apelidou o arquiteto ou se a existência dele, é que fez isso virar sinônimo de ‘quem é bom no que faz’", ressalta o escritor.

O chafariz foi contratado pela Irmandade da Misericórdia, que além da antiga Igreja da Misericórdia, da qual era vizinho, estava espalhada pela cidade, como é o caso da Santa Casa da Misericórdia. Hoje, o Edifício Misericórdia, localizado em frente ao largo onde ficava o chafariz, ganhou uma exposição sobre o antigo monumento e uma reconstituição feita com resíduos do próprio prédio que pertence à construtora Somauma. O local será transformado em moradias. Entre 14 de março e 28 de abril, o edifício serviu de palco para a DW, a Design Week. Cerca de 20 mil pessoas já visitaram a mostra, que foi estendida até agosto.

Fragmentos de prédio formam Chafariz construído pelo arquiteto Tebas
Chafariz do Tebas é reproduzido em mostra no Edifício Misericórdia - Divulgação

"O chafariz foi uma inovação sem precedentes, feita por um homem negro escravizado e que movimentou o centro da cidade em todos os aspectos, trazendo censo de comunidade, troca de informação, plano de fugas, paquera", lembra Bia Vianna, curadora de diversidade e inclusão do Edifício Misericórdia.

Para ela a volta do monumento, traria novo movimento em uma região que já abriga a Casa de Francisca – que tem feito apresentações musicais no calçadão. "Seria um ponto turístico e funcional. O Centro é colocado como lugar ermo e perigoso, porque há pouca circulação em determinados horários e lugares. Traria vida e seria uma reparação histórica", considera.

Não está nos planos

Com um investimento de R$ 63 milhões, a Prefeitura de São Paulo está neste momento requalificando 23 calçadões do Triângulo Histórico da capital. "A iniciativa busca revitalizar a região e promover funcionalidade, mobilidade e acessibilidade para todos". A previsão é que os trabalhos sejam concluídos até outubro de 2024, quando ocorrem as eleições municipais.

A reforma dos calçadões abrange uma área de 63 mil metros quadrados, que inclui o Largo da Misericórdia (no cruzamento das ruas Quintino Bocaiuva, Direita e Álvares Penteado), e consiste na troca do pavimento, aumentando sua resistência ao tráfego, instalação de novo mobiliário urbano, com áreas de convivência, sinalização turística, iluminação funcional e cênica de edifícios históricos, reestruturação da infraestrutura subterrânea de drenagem. A estimativa da prefeitura é que cerca de 2 milhões de pessoas circulem diariamente pelo centro histórico.

Já a recolocação do Chafariz do Tebas, como ficou conhecido, "não está nos planos, pois não há materiais e informações suficientes para sua reprodução, de modo a não se criar um falso histórico", de acordo com a Secretaria Municipal de Cultura, via Departamento do Patrimônio Histórico.

Abílio Ferreira, no entanto, reforça que o chafariz hoje continua tendo a mesma função do século 18: democratizar a água potável. "Há informações suficientes (para ser refeito) e a sociedade pode ser envolvida. Se reproduziu cenograficamente pode ser reproduzido de maneira definitiva", afirma, rebatendo a versão do poder público. "Se o chafariz voltasse seria uma intervenção de importância estratégica para a cidade, humanizando-a, uma vez que não há outros chafarizes com água potável, seria uma inovação e um trabalho pela memória", defende o escritor.


quinta-feira, 16 de maio de 2024

O neoliberalismo não desperdiçará a tragédia gaúcha, André Roncaglia, FSP (definitivo)

 Num soluço fulminante da crise climática, mais de 80% do território gaúcho submergiu sob a força das chuvas torrenciais das últimas semanas.

As perdas humanas e materiais, incalculáveis até o momento, seriam motivo de uma reflexão mais profunda sobre a forma como ocupamos o solo e lidamos com a natureza. Todavia, o negacionismo político se uniu ao seu homônimo climático de forma desavergonhada para ocultar uma causa central dessa tragédia: o desmonte dos instrumentos de planejamento e monitoramento do Estado pela mercantilização do espaço (urbano e rural).

Em seu livro "A Grande Transformação" (1944), Karl Polanyi nos alertou que "deixar o destino do solo e das pessoas para o mercado seria equivalente a aniquilá-los". A natureza "seria reduzida aos seus elementos, bairros e paisagens contaminados, rios poluídos... [e] o poder de produzir alimentos e matérias-primas destruído". Oitenta anos depois, insistimos na ilusão de dominar a natureza pela força da tecnologia, com a desculpa do progresso.

Bairro São José, em Lajeado (RS), nesta quinta (16) - Nelson Almeida/AFP

A mão invisível do mercado desregula o termostato natural da Terra, produzindo um "mal público global" por excelência. Inescapável e regressiva, a mudança climática agride mais os mais pobres, menos preparados para lidar com ela.

A defesa convicta (e errônea) de que o Estado não deve se endividar para não onerar as gerações futuras com maior carga tributária fecha os olhos para os custos intertemporais do descaso ambiental e da ocupação desordenada do solo, sob a égide dos lucros imobiliários e do agronegócio.

Essa miopia interessada custa caro: cada R$ 1 gasto em prevenção ambiental economiza R$ 15 em recuperação pós-desastre. No caso gaúcho, a (des)proporção deve ser ainda maior.

Aqui entra o mote neoliberal "nunca desperdice uma crise séria", que aparece nas exortações de "não é hora de apontar culpados" e "não politizemos esta tragédia".

Instrumentaliza-se a união nacional para compartilhar os custos do descaso com adaptação e monitoramento climáticos. Convoca-se, então, o "Estado socorrista", desequipado e subfinanciado pela aversão à tributação da riqueza concentrada nas mansões e fazendas —em áreas de preservação, inclusive— e nas licitações milionárias de obras que atentam contra o meio ambiente e fragilizam a população urbana.

Tal irresponsabilidade se apoia na excepcionalidade das crises, que suspende a rigidez dos orçamentos públicos equilibrados e das dívidas com a União e mobiliza doações de compatriotas de todas as regiões. Vale até evocar o Plano Marshall, como fez o governador Eduardo Leite (PSDB), em ato falho que confessa sua cumplicidade na tragédia ao liderar o nocivo desmonte da política ambiental do estado.

A percepção do custo (humano e material) evitável se diluirá no pano de fundo da reconstrução do estado, ocultando as causas dessa tragédia amplamente anunciada. Há indícios de que a desfaçatez neoliberal não desperdiçará esta crise.

Primeiro, a gratidão seletiva de autoridades a bilionários esbanjando doações —módicas, frente à magnitude da catástrofe. Segundo o site Matinal, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), pretende reconstruir a cidade com a "parceria" —sem necessidade de licitação— da consultoria Alvarez & Marsal, famigerada por sugerir cortes no funcionalismo da cidade de Nova Orleans após o furacão Katrina, entre outras barbaridades relatadas pelo jornal New York Times. "Tudo deve mudar para que tudo fique como está".

Num país com 7,4 mil km de litoral, em que pululam praias artificiais em condomínios de luxo, soluções inteligentes, verdes e inclusivas —como as cidades-esponjas— parecem uma realidade distante.