Como boa parte das crianças nascidas na década de 1980, eu cresci em frente a uma tela. Tenho vívidas memórias das manhãs passadas em frente à televisão de tubo, que ocupava quase todo o espaço do hack de madeira posicionado contra a parede, bem em frente ao sofá da sala.
Eu gostava de ver TV sentada no chão, com as costas contra o sofá, sentindo nas pernas cruzadas o frescor do piso de azulejo que ajudava a amenizar o calor do apartamento durante o verão em Salvador.
Naquela época, a programação das manhãs era quase inteiramente dedicada ao público infantil. O conteúdo alternava entre desenhos animados e apresentadoras brancas e jovens colocando meninas e meninos para competirem entre si.
Mais de trinta anos separam aquela criança e a mãe que sou hoje, mas me pego frequentemente retornando àquelas manhãs toda vez que minha filha me pede para ver um filme.
Eu amava ver televisão. E devo ter passado pelo menos duas horas diárias contemplando aquela tela de vidro durante os meus anos de formação. Mas ao ouvir da minha criança de cinco anos a ocasional súplica por uma tela, minha resposta é, na esmagadora maioria das vezes, categórica: não.
Eu não vou negar que invariavelmente o não sai pela boca contra a minha própria vontade. Dentro de mim tem uma mãe cansada que grita: "dá o telefone, vai. Pelo menos eles vão ficar quietos um pouquinho e você pode lavar os pratos que estão na pia, ou arrumar a pilha de roupas que se acumula em cima da cama, ou quem sabe, talvez, você possa simplesmente parar por cinco minutos para olhar para o teto um pouco".
Agora um novo livro acaba de ser lançado que talvez ajude a aquietar essa voz interna e me traga ainda mais motivos para limitar o tempo dos meus filhos diante das telas e retardar o acesso deles às redes sociais.
"A geração ansiosa", do autor Jonathan Haidt, traça um claro e preocupante paralelo entre o uso indiscriminado de telas, a exposição às redes sociais e o acesso a jogos virtuais com o aumento dos índices de depressão e ansiedade entre crianças e adolescentes. O autor e psicólogo social americano embasa suas conclusões em pesquisas robustas que apontam um aumento vertiginoso e contínuo de questões relacionadas à saúde mental de crianças e adolescentes nos últimos dez anos. Os dados são de fato alarmantes: nos Estados Unidos, somente na última década, o índice de suicídio de jovens adolescentes aumentou em 167% entre as meninas e 91% entre os meninos.
Haidt defende que parte do problema está no fato de a experiência da infância estar se tornando cada vez menos baseada no brincar e mais dependente do entretenimento passivo das telas. O autor acredita que pais se tornaram excessivamente protetores das experiências dos filhos no mundo offline, provavelmente amedrontados pela violência que vemos ao nosso redor, e passaram a ver o uso de telas como uma alternativa "segura". Eu entendo o ponto, mas na minha humilde opinião de mãe, acho que o buraco também passa pela sobrecarga materna e a necessidade de muitas mães de terceirizar esse momento de distração dos filhos, uma vez que elas mesmas precisam se desdobrar para executar toda uma lista de outras atividades.
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Fato é que, como sociedade, estamos mais acostumados a nos preocuparmos com os perigos do mundo lá fora porque esses perigos sempre estiveram lá, à espreita das nossas crianças. O que o livro e as tantas pesquisas que começam a ser reveladas com base nessa última década de amplo acesso a smartphones nos alertam são justamente os inúmeros e reais perigos que se escondem por detrás das telas que entregamos na mão dos nossos filhos todos os dias: o bullying, a exposição a predadores sexuais, os conteúdos impróprios que circulam livremente, ou simplesmente a uma dinâmica que condiciona o cérebro para uma busca incessante por validação através de likes.
Volto para a minha infância com os olhos da mãe que sou hoje e penso que pelo menos a TV de tubo não morava dentro do meu bolso. E, quando chegava a hora do almoço, algum adulto apertava o botão vermelho do controle remoto e a minha única saída era desencostar do sofá, levantar do chão e ir viver a vida. O mundo mudou e desconectar ficou mais difícil, mas se faz cada dia mais necessário.
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