quarta-feira, 1 de maio de 2024

OPINIÃO DANIEL MARTINS DE BARROS Trabalhador saudável é ativo, FSP

 Daniel Martins de Barros

Médico, é professor colaborador do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP

Não é exatamente novidade afirmar que o trabalho pode ser desgastante. Tal constatação já estava presente no Gênesis, quando, expulsos do paraíso, os seres humanos foram condenados a ganhar o pão com o suor do rosto. Trabalhar sempre foi duro. As mudanças progressivas nas forma de produção —do desenvolvimento da agricultura à Revolução Industrial, do capitalismo financeiro à transformação digital— não são a causa do sofrimento laboral, apenas dão a ele novas faces.

A despeito desse conhecimento, historicamente o trabalho sempre exigiu o máximo possível das pessoas sem preocupação verdadeira com a sua saúde. Fora iniciativas isoladas aqui e ali, foi só a partir da segunda metade do século 20 que o mercado começou a mudar maciçamente —quando ignorar as doenças ocupacionais se transformou em déficit contábil. O que é compreensível, já que embora as empresas tenham funções sociais relevantes além de gerar lucro, fato é que nenhuma dessas funções as manterá de pé se derem prejuízo em vez de lucro.

Falta de descanso é uma das causas para a Síndrome de Burnout e outros transtornos mentais, como ansiedade e depressão - Shintartanya/Adobe Stock - shintartanya - stock.adobe.com

Já faz um tempo que os custos de acidentes de trabalho, perda de produtividade, reposição e treinamento de novos funcionários para substituir os afastados, aliados ao crescente passivo trabalhista gerado em processos de indenização, pesaram no bolso, tornando custo efetivo promover a saúde dos empregados.

Agora chegou a vez da saúde mental. A Organização Mundial da Saúde alertava há décadas que a depressão se tornaria a segunda maior causa de incapacidade para o trabalho a partir de 2020 —isso muito antes da pandemia de Covid-19. É evidente que as pessoas sempre adoeceram mentalmente em função do trabalho, mas nos últimos quatro anos os custos dos transtornos mentais só fizeram crescer. Daí a proliferação de iniciativas em prol do bem-estar do funcionário.

O movimento cresceu a ponto de o governo entrar na história e criar, neste ano, o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental, em lei federal sancionada em março. Tal selo será conferido àquelas que, após inspeção federal, comprovarem preencher requisitos em: promoção da saúde mental (com treinamentos, palestras e programas); bem-estar dos trabalhadores (implementando programas de incentivo a práticas saudáveis); e transparência e prestação de contas relacionada a tais iniciativas.

Imagino que as empresas se interessem em receber tal cerificação para se tornarem mais atraentes para os trabalhadores, e, quem sabe, mais valiosas.

Seja qual for a motivação, contudo, é uma boa notícia para o mundo do trabalho. Sim, é um movimento impulsionado pela busca de lucro. Obviamente, se os transtornos mentais não dessem prejuízo, ninguém aumentaria gastos investindo em sua prevenção. Mas já que a saúde mental se tornou um ativo, vale aproveitar o momento para investir nele. Todos têm a ganhar.

'As bruxas sobrevoaram o autódromo de Ímola', diz médico que socorreu Senna, FSP

 Michele Oliveira

MILÃO

Por mais de 30 anos, entre 1975 e 2006, o italiano Domenico Salcito, 79, foi diretor do serviço médico do autódromo de Ímola e um dos responsáveis pelo trabalho na pista. Em 1º de maio de 1994, quando Ayrton Senna bateu sua Williams no muro da curva Tamburello, Salcito estava dentro do carro médico, perto da reta dos boxes.

"Na sétima volta, ouço pelo rádio: 'Acidente na Tamburello'. Calculei que [os carros] estavam do outro lado e que haveria tempo: entramos com o carro médico e chegamos ao lugar do acidente", disse Salcito à Folha.

Em entrevista por vídeo, o médico-cirurgião aposentado relembrou os momentos principais daquele fim de semana, marcado por duas mortes e outros acidentes. Na sexta-feira, o brasileiro Rubens Barrichello bateu; no sábado, o austríaco Roland Ratzenberger morreu na pista; no domingo, logo após a largada, um choque entre dois carros fez voar um pneu na plateia, atingindo um espectador. Pouco depois, a batida fatal de Senna.

"Naqueles dias, as bruxas sobrevoaram o autódromo de Ímola", afirmou.

Bandeira em homenagem a Ayrton Senna em Ímola - Michele Oliveira/Folhapress

Salcito, que mora em Bolonha, lembra-se de Senna como um dos poucos pilotos a ter ido visitar o centro médico nos anos anteriores. "Ele tinha uma sensibilidade incomum por tudo aquilo que o cercava. Era um que queria vencer, mas ao mesmo tempo não pensava somente no próprio carro."

O fim de semana começou com o acidente do Rubens Barichello, depois houve a morte do Roland Ratzenberger. Como estava o ambiente no circuito?
O Grande Prêmio era sempre uma festa. Na minha casa, fazíamos um jantar para amigos como o Sid Watkins [ex-responsável médico da FIA] na quinta-feira antes da corrida, e assim foi naquele ano. Na sexta, já tinha mudado o clima com o acidente do Barrichello. Mesmo sem nada grave, Ayrton, preocupado, foi ao centro médico ver o estado dele. Mas chegamos perto da tragédia, porque o carro voou contra a rede da tribuna e, sem ela, poderia ter sido um drama.

No sábado, houve o acidente de Ratzenberger, e aí o clima mudou completamente. Ayrton pediu para checar a pista, já que, depois da aposentadoria de Alain Prost [piloto francês, em 1993], ele era o personagem mais influente da F1 e se sentia responsável pela organização da corrida do ponto de vista dos pilotos, especialmente os mais jovens. Ele tinha contado ao nosso amigo Angelo Orsi [fotógrafo italiano] que levaria uma bandeira austríaca para, no caso de vitória, fazer uma volta com ela, em homenagem a Ratzenberger. Mas, infelizmente, o desfecho foi outro.

Como foram os momentos antes da largada?
Alguns falam de um Senna com aparência triste na primeira fila. Na minha opinião, é uma fantasia. Claro que tinha tristeza, mas sabemos que os pilotos, uma vez baixada a viseira do capacete, pensam só em uma coisa: a vitória. Entre nós, da equipe médica, o clima era pesado. Como sempre, largamos na última fila com o carro médico, pilotado por Mario Casoni.

Veio o primeiro problema do domingo: o acidente de Pedro Lamy, que fez voar um pneu na tribuna e feriu um espectador, mais tarde operado por traumatismo craniano. A direção decidiu pela entrada do "safety car", que ficou na pista por cinco voltas. Na sétima volta, ouço pelo rádio: "Acidente na Tamburello". Calculei que estavam do outro lado e que haveria tempo: entramos com o carro médico e chegamos ao lugar do acidente.

Quais foram as primeiras impressões?
Assim que desci do carro, vi que era um acidente grave com o piloto em estado de inconsciência. Um médico que ficava fixo na Tamburello chegou segundos antes de nós e tentava tirar o capacete, mas não conseguia por causa do sangue. Conseguimos depois, com a tesoura.

Quais são as lembranças mais vivas que o senhor tem daquele instante?
Tenho tudo impresso na memória. Tem um livro de medicina medieval que diz duas coisas para o médico: deixar o paciente falar e olhar seu rosto. Isso basta para entender a situação e fazer um diagnóstico.

Qual foi o seu diagnóstico?
Assim que tiramos o capacete, olhei o rosto do pobre Ayrton. Estava inchado, e meu diagnóstico foi o de que precisava fazer algo com a maior rapidez possível. Não pensei em outra coisa e deixei de lado o protocolo. Pedi ajuda aos colegas para puxá-lo fora do carro pelos braços, algo que não se fazia mais. Peguei a responsabilidade para mim. Estendemos o Ayrton no chão, e aí chegaram outros colegas.

Decidi com Giuseppe Piana [corresponsável com Salcito pela parte médica do autódromo, morto em 2021] fazer outra coisa fora do protocolo, que prevê que o piloto que sofre acidente seja levado em ambulância para o centro médico dentro do autódromo. Em vez disso, sabendo que tinha um helicóptero da emergência por perto, pedimos que descesse diretamente na pista, a primeira vez que isso foi feito.

O senhor subiu no helicóptero ou ficou na pista?
Fiquei na pista. A corrida foi interrompida, e depois foi decidido que seria retomada. O drama dentro do drama. Depois, outro acidente no box, com Michele Alboreto, que perdeu uma roda, que voou no corredor dos boxes, atingindo três ou quatro mecânicos. Um fim de semana de pesadelo.

Quando Senna deixou a pista no helicóptero, ele estava vivo?
Sim, estava vivo. Já me perguntaram isso 50 mil vezes. Estava vivo.

Pela transmissão, dá para ver que, após a batida, quando ele ainda está no carro, a cabeça dele se mexe. O que foi aquilo?
Foi um movimento. Ele ricocheteou para trás, e a cabeça, que não é presa, deslocou-se para um lado e depois voltou para o outro. Ele estava inconsciente.

Quando ele saiu de helicóptero, qual avaliação fez da situação?
Depois de pular duas vezes o protocolo, já tinha identificado que a situação era gravíssima e que era preciso tentar de tudo. Por isso, decidimos que ele não passaria pelo centro médico do autódromo [Senna foi levado para um hospital de Bolonha]. A esperança é a última a morrer. E agimos assim. Sabia da gravidade e sabia que o final poderia ser aquele que foi.

E o dia seguinte?
Depois de passar pelo necrotério, como tinha visto que Angelo Orsi fazia fotos enquanto estávamos no socorro, fui à redação da [revista] Autosprint para ver essas fotos. Dali veio a certeza de que a coluna da direção tinha quebrado. Em um primeiro momento, os jornalistas pensavam que nós tínhamos serrado a direção para tirar o piloto. "Como conseguiram cortar a coluna assim tão rápido?", perguntaram. Eu repensei e disse que nós nem tínhamos visto a direção. Em uma foto, via-se a coluna da direção ao lado do carro, no chão.

Trinta anos depois, está tudo claro para o senhor em relação às causas do acidente e da morte?
Claríssimo. O regulamento tinha mudado, e tinham sido eliminadas as suspensões ativas, que amorteciam tudo, mas os carros continuaram iguais. Estávamos, naquele momento, nas primeiras competições do ano, e as vibrações que os pilotos sentiam eram enormes. Foi isso associado a uma operação que não deveria ter sido feita –e aqui a responsabilidade foi de Patrick Head, responsável técnico da Williams.

Senna dizia que não conseguia guiar o carro, que tinha sido feito para Prost, muito mais baixo do que ele, e o volante era desconfortável. Ele pediu que fossem feitos ajustes. [O ajuste] foi um ato infeliz.

O carro de Senna ficou destruído após o choque na Tamburello - Acervo - 1º.mai.94/Reuters

No momento do socorro, algo atrapalhou ou não funcionou bem para a sua equipe?
Não, nada.

Vocês chegaram no tempo certo? Teve algum atraso?
Estávamos a cerca de 500 metros, que percorremos em um carro com 300 cavalos. Saímos antes de darem a bandeira vermelha, mas outro colega já estava ali. Durante o processo judicial, que durou anos, todos tentaram jogar a culpa uns nos outros. A Williams tentava se defender. Em nenhum momento os médicos foram intimados, mesmo tendo pulado protocolos.

Na sua opinião, tem qualquer coisa em comum por trás dos acidentes do fim de semana, com Barrichello, Ratzenberger, Senna?
Sim, alguma coisa em comum eles têm. Naqueles dias, as bruxas sobrevoaram o autódromo de Ímola. É a única coisa em comum que podemos encontrar: as bruxas.

Que marcas esse fim de semana deixou na sua vida profissional e pessoal?
Sou um cirurgião. Pode acontecer de perder um paciente, o que é sempre um drama. Mas é preciso seguir em frente, continuar. Assim como fazem os pilotos: sai da pista, quebra o carro, ajusta o carro, sobe de volta no carro e larga de novo.