domingo, 1 de outubro de 2023

Movimentos 'identitários' querem conquistar coisas, não cancelar pessoas, Celso Rocha de Barros- FSP

 


Não é fácil a oposição de direita reclamar da aliança de Lula com o centrão, porque a oposição de direita e o centrão são mais ou menos as mesmas pessoas. A política econômica de Haddad é bem moderada e está dando certo. Restou ao pessoal, portanto, reclamar do "identitarismo".

As críticas recentes foram suscitadas pela postagem de uma jovem assessora do Ministério da Igualdade Racial no dia da final da Copa do Brasil. De maneira infeliz, ela ofendeu os são-paulinos por serem europeus, brancos e paulistas. Foi demitida. Torço para que se reerga na carreira.

O episódio levou a turma de sempre a ressuscitar variantes do tema "racismo reverso", o racismo de negros contra brancos.

Marcelle Decothé, chefe da assessoria da ministra Anielle Franco
Postagem de Marcelle Decothé, chefe da assessoria da ministra Anielle Franco, que critica torcida do São Paulo; a assessora foi demitida na terça (26) - Reprodução

A ideia de que o racismo reverso é um problema sério foi relançada recentemente pelo antropólogo Antonio Risério. Em um artigo publicado nesta Folha, Risério argumentou que, graças ao identitarismo, o número de casos de racismo reverso teria passado de um número que ele não quis nos contar qual era para um outro que ele também não achou importante compartilhar conosco. O único exemplo de racismo reverso que Risério achou no Brasil foi a adesão de uma parte do movimento negro ao integralismo nos anos 30 do século passado, e vários dos casos que encontrou mundo afora são de minorias discriminando minorias, o que não é "reverso".

É óbvio que membros de grupos marginalizados podem ser preconceituosos ou ofensivos, tanto quanto quaisquer outras pessoas. Também é verdade que a denúncia da discriminação pode ser feita de maneira errada: o professor Wilson Gomes relatou, em coluna recente, o caso de uma professora universitária que foi atacada desproporcionalmente por usar um pronome errado.

Mas essas características –a imperfeição moral dos beneficiados por um direito, a possibilidade de ele ser aplicado equivocadamente ou de forma picareta– também estão presentes em todos os direitos que consideramos indispensáveis, da liberdade religiosa à econômica. Como disse o velho Kant, do lenho retorcido da humanidade, nada de reto jamais foi feito.

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Alguns críticos do identitarismo também reclamam que essas pautas seriam "importadas dos Estados Unidos".

A crítica de que a esquerda teria se tornado "identitária demais" é que foi importada dos Estados Unidos: no Brasil, a maioria das pautas "identitárias" são defendidas pelo PT desde sua fundação, como também o foram pelo PDT na época de Brizola. Ao contrário da "Terceira Via" dos anos 90, a esquerda brasileira nunca se distanciou decisivamente do sindicalismo e da luta por redistribuição.

Os movimentos normalmente reunidos (contra sua vontade) na categoria "identitários" têm pautas muito concretas: salário igual para trabalho igual, cotas raciais, igualdade matrimonial para LGBTs, a reorganização igualitária do trabalho doméstico, a representatividade em posições de poder, etc.

Garanto para vocês, quem participa ativamente desses movimentos está muito mais interessado em garantir essas conquistas concretas do que em cancelar gente em rede social.

Quantos aos excessos, aos desvios narcisistas de militância, ao uso picareta de boas causas, sugiro combatê-los como fazemos no caso de desvios cometidos contra outras boas ideias, sem esquecer o quão mais importante é corrigir as injustiças históricas que deram origem a esses movimentos.

Sim, estamos fritos, José Henrique Mariante, FSP

 A mínima de quarta-feira (27) foi quase a máxima de quinta nos termômetros de São Paulo; leões-marinhos foram fotografados em calçada alagada no Rio Grande do Sul; mais de cem botos cor-de-rosa morreram em rios sem oxigênio na seca histórica que assola a Amazônia. O apocalipse climático se materializa no país, como em quase todas as partes do mundo, no ano do verão sem fim, aquele que ainda chegará aos trópicos e já apavora.

Em menos de 24 horas, a Folha publicou duas reportagens de serviço sobre ar-condicionado, como comprar, como instalar, como economizar. Em nenhuma delas se ponderou que o consequente aumento no consumo de energia alimenta o ciclo que no fim das contas aquece o planeta e compromete seus ritmos. O refresco de hoje liga o forno de amanhã.

Eduardo Leite foi a Lula pedir ajuda para seu estado assolado por enchentes com a previsão do tempo na mão. O título do jornal, porém, destacou Janja, que é muito mais assunto que a desgraça gaúcha.

Sim, a Folha fala da crise em boas reportagens: 40% das capitais brasileiras tiveram inverno mais quente da históriatotal de afetados por chuvas em 2022 é o maior em dez anos. Porém a questão é a sinapse, trazer o problema para perto dos leitores. Não dá para escrever que a capital paulista tem cinco dias seguidos de temperaturas recordes e que o problema é "um bloqueio atmosférico causado pela persistência de um sistema de alta pressão atmosférica sobre uma grande área por vários dias consecutivos". Para além da repetição de termos, falta o quadro maior, as razões e, por que não, as dúvidas sobre tantos extremos.

Seria bom também trazer os responsáveis para a discussão. Há duas semanas, o chefe global da JBS foi entrevistado em evento do jornal The New York Times em Nova York. A newsletter sobre clima do diário americano (a Folha ou qualquer outro grande da imprensa brasileira tem uma newsletter sobre clima?) narrou o encontro com uma série de dados que o executivo por óbvio contesta: emissões superiores às de um país como a Itália, na mira de ativistas que querem impedir que a empresa alcance a Bolsa americana, recomendação do Conar local para que pare de prometer em peças publicitárias que alcançará o "net zero", zerar as emissões líquidas, até 2040. Uma busca sobre a JBS em textos recentes na Folha revela outro planeta: a empresa é responsável por 2% do PIB brasileiro, diz a Fipe.

A ilustração mostra um termômetro humanizado, de um olho só e com expressão atônita. O fundo é branco.
Ilustração de Carvall para coluna do ombudsman de 1 de outubro de 2023 - Folhapress

"Ministro do Brasil diz que ambições de petróleo e verde não são contraditórias", escreveu na quarta-feira (27) o Financial Times, em texto pouco favorável ao governo Lula. No mesmo dia, a pergunta para Alexandre Silveira aqui é se vai ter ou não horário de verão.

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Um último exemplo. A Folha relatou que a bancada do agronegócio pressionava o governo para liberar o seguro rural diante de tantas catástrofes (não só pressionava como obstruiu a pauta da Câmara até conseguir liberação de verba). Alguém questionou o bloco sobre a maior frequência de quebras de safras e a evidente relação com a crise climática, tão contestada pelo setor?

Não, não é assunto, não dá audiência e, como afirmou um leitor que desistiu da Folha, a verdade é que estamos todos fritos, pois ninguém vai desligar o ar-condicionado, deixar de comer bife, passar o trator ou buscar royalties. Ainda que inglória, é tarefa da mídia apresentar a conta indigesta da brincadeira. Esta última semana foi uma grande oportunidade perdida. Pelo andar da carruagem, não faltarão outras muitas.

QUESTÃO DE QUERERES

Reinaldo Azevedo saiu da Folha. Ou foi saído. "Não é por falta de leitores, sabemos todos", espetou o jornalista no último parágrafo de sua última coluna. "Não é incomum que haja mudanças entre os titulares que escrevem na Folha", afirmou a Secretaria de Redação em mensagem a leitores que se queixaram da mudança. "Como ele afirmou em sua última coluna, houve uma decisão para que deixe de escrever coluna no jornal, onde ficou por quase dez anos e contribuiu para o pluralismo do Projeto Folha. Ele segue colaborando no UOL, portal dos mesmos grupos empresariais."

Para quem tem memória mais larga, é curioso escrever que a saída de Reinaldo contribui para a propalada percepção de "endireitamento" da Folha, processo que teria se acelerado com o advento de um novo governo petista.

No ano passado, a coluna do ombudsman criticou a iniciativa do jornal de criar uma métrica ideológica para classificar partidos. Algo parecido se dá agora com um autoteste de orientação política ofertado na série O Futuro da Esquerda (a coisa mais lida do pacote até aqui, mas condenada por alguns leitores). O maniqueísmo emulado das redes sociais se repete. Faça o teste usando como guia as opiniões proferidas pela Folha em seus editoriais. Diz muito sobre o teste e, é claro, sobre o jornal.


Muniz Sodré - Sons do silêncio, FSP

 "As pessoas ficam, as instituições passam." Este penoso ato falho do procurador-geral da República em seu discurso de despedida no STF pode trazer alguma luz também para as ruminações do ministro da Defesa sobre a relutância de militares em saírem de cena. Na insuperável autoapoteose do procurador, o silêncio vestiu capa de super-herói. Se houvesse algum grau de realidade, não faltariam, num ambiente próprio a latinórios, interjeições do tipo "valete et plaudite!" (amém!, assim seja!). O protocolo, porém, foi sóbrio.

Ato falho é uma espécie de fala silenciada, que transparece num equívoco e pode resultar em acerto. Décadas atrás, já pública a intenção da ditadura de devolver o poder aos civis, determinado ministro militar declarou na tevê que "sim, era hora de voltar à caverna". Lapso de língua, inequívoco ato falho freudiano, sujeito a interpretação diversa daquela em que incorreu o procurador.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) realiza, na segunda (25/09/2023), a última sessão comandada pelo atual procurador-geral da República, Augusto Aras; ele deixa o cargo após quatro anos à frente da PGR
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) realiza, na segunda (25/09/2023), a última sessão comandada pelo atual procurador-geral da República, Augusto Aras; ele deixa o cargo após quatro anos à frente da PGR - José Cruz/ Agência Brasil

Esse tipo de deslize, que a psicanálise circunscreve ao singular, ganha alcance coletivo quando o falante se faz porta-voz involuntário de algo mais amplo. Individualmente, a interpretação mostra que o desejo do procurador não era realmente despedir-se. Seu silêncio, amortecedor segundo ele, teria sido o fiel da balança democrática. Mas o desejo de permanecer era conjunturalmente afim ao estado de espírito do grupo militar refratário ao resultado das urnas, conforme o ministro da Defesa.

Questão aberta é a natureza desse grupo: clubes, oficiais de pijamas, colegas de caserna, trambiqueiros, esparsos brucutus na ativa. Numa republiqueta de meia-sola, isso periga constituir esfera de ação superior à da fala. Num país continental, uma das maiores economias do mundo, pagando em dia a dívida externa, a coisa muda de figura. Em suma, não há golpe de Estado sem consentimento americano. Foi assim em 64 no Brasil, assim foi em 73 no Chile.

Mas há subgolpes (em 68, um deles) e sempre em suspenso a ameaça de rupturas democráticas. A velha guarda palaciana, que pontua a história do país com intervenções, acha-se dona da bola. Na dividida se conhece o ciúme do jogador. Uma queda de braços: guerra mesmo não há, o ministro da Defesa é árbitro conciliador em campo, administrando humores e negociando orçamentos.

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Na crise orgânica de consenso das classes dirigentes, o que realmente se defende com estatuto ministerial é o status-quo bem-nutrido contra a imprevisibilidade dos precarizados de tudo. Daí não sai desenvolvimento nacional pacífico. A verdadeira paz passa hoje por formas moleculares de uma guerra social, da qual, em seu silêncio operativo, nada parecem saber ministros e generais. Uma coisa apenas é certa em golpismos e atos falhos: os donos da bola fazem o diabo para permanecer no gramado.