A inteligência artificial vai destruir o mundo como o conhecemos. Se tivermos inteligência e sensibilidade, ele poderá ser refundado como bem melhor e mais justo. O que não é de modo algum garantido –no momento, seguimos de olhos fechados rumo ao abismo.
Tem sido divertido ver a reação ao lançamento do ChatGPT, o modelo de linguagem natural da empresa americana OpenAI. Há os descrentes, apostando que é apenas um sofisticado "gerador de lero-lero"; os preocupados, considerando-o um matador de empregos; e os entusiastas, celebrando-o como uma ferramenta de produtividade. Todos eles estão certos.
O modelo aprende a falar consumindo toneladas de texto e desenvolvendo respostas originais a partir deles, muitas notavelmente qualificadas, algumas errando o alvo por completo. Até aí, nada disso é diferente do ser humano. Aprendemos a escrever (para não dizer pensar) por imitação e também não somos versados em todos os assuntos. A principal diferença é que o efeito Dunning-Kruger é mais pronunciado no ChatGPT do que no mais egomaníaco ser humano: a IA acha que sabe muito mais do que sabe.
Apesar disso, alegam seus apreciadores, mesmo com suas limitadas capacidades atuais, ela já é capaz de agilizar muitas tarefas antes realizadas por humanos, liberando-os para o trabalho mais criativo e aumentando sua capacidade de produzir. Pura verdade. Pergunte ao ChatGPT e ele mesmo vai dizer isso.
Ocorre que a demanda por trabalho, mesmo nas empresas mais sanguessugas, é finita. Se aumenta a produtividade de alguns, a companhia pode dispensar muitos outros, já que, em condições ideais, a quantidade de trabalho será determinada pela demanda máxima e não pela capacidade total dos funcionários originalmente empregados.
Há quem diga que uma ferramenta como o ChatGPT nunca atingirá o prodígio de seres humanos verdadeiramente brilhantes. Vamos supor por um momento que esse chauvinismo leve a uma verdade. E daí? A IA não precisa ser um Einstein ou um Mozart para realizar a contento muitas das atividades profissionais intelectuais realizadas por humanos.
E, ainda que fosse, estamos às vésperas de ver isso acontecer. Em 2012, entrevistei o tecnólogo americano Ray Kurzweil para esta Folha, e ele previu que a IA atingiria o nível humano de inteligência em 2029. Estamos em 2023 e quem viu o ChatGPT operar não pode achar a projeção um exagero. Ainda mais à luz da consagrada Lei de Moore, formulação de Gordon Moore, fundador da Intel, que notou que a evolução dos processadores os leva a dobrar de capacidade a cada 18 meses, aproximadamente.
Essa lei segue em vigor. O que significa que, em 18 meses, teremos um ChatGPT potencialmente duas vezes melhor. Em 36, quatro. Em 54, oito. A "fagulha" já está lá para todos verem. Agora é sentar e aguardar até que (rapidamente) as máquinas superem os seres humanos em inteligência.
Quando elas venceram um campeão de xadrez, ficamos impressionados. Quando dominaram jogos com mais nuances e menos matemática, como pôquer, começamos a nos preocupar. Então elas dominaram jogos de linguagem natural. Hoje há IAs capazes de passar em testes para a prática da medicina e do direito. Elas já têm nível similar ao de bons médicos para análise de exames de imagens. A Nasa está usando para projetar espaçonaves. Até programação de computador já é corriqueira e competentemente feita pelos próprios computadores. O ChatGPT é só a porta de entrada ao leigo a uma ferramenta disruptiva introduzida no universo do trabalho.
Já há IA por toda parte e isso vai se intensificar. Humanos serão substituídos por computadores, inclusive em muitos trabalhos até então tidos como intocáveis. (Fiquei com inveja dos colegas que puderam recentemente escrever artigos para a Folha comentando previsões e avaliações que teriam feito e errado, então vou deixar esta aqui, para ter o que escrever em uns dez anos se o mundo me surpreender e pegar outro caminho.)
Isso significa que todos os empregos vão sumir? Viveremos num mundo em que tudo é produzido por IA? Não, não há hipótese de que isso aconteça. Ainda haverá um bocado de espaço para atividade humana, e mesmo em situações em que a máquina for preponderante, sempre será preciso um ser humano para servir de "supervisor" e "assinar embaixo", por assim dizer, do trabalho produzido pela caixa-preta da IA.
Em muitas circunstâncias, simplesmente não vai compensar trocar o humano pela máquina, dada a versatilidade do humano para realizar muitas tarefas que envolvem uma combinação de destreza e criatividade. Em outras, não fará sentido trocar. Ninguém vai querer ver uma IA apresentando um show de rock ou disputando uma partida de futebol (até teremos coisas assim, mas mais como curiosidades e adições do que como substituições). Tudo que envolve algum nível de empatia ainda privilegiará o humano.
Porém, ocorre que não é preciso eliminar todas as profissões, ou mesmo qualquer profissão, para fazer colapsar a sociedade como a conhecemos hoje. Tudo que você precisa é cortar um alto percentual, digamos 40%, em todas as carreiras. Pronto. Teremos uma massa colossal de pessoas desempregadas e, o pior, psicologicamente destroçadas.
Nossa cultura é fortemente construída em torno de um mito (hoje largamente falso) de que o esforço incansável, a inteligência e a produtividade conduzem ao sucesso. Talvez tenha sido verdade quando todos éramos caçadores e coletores. Quem caça mais e melhor tem mais o que comer. Conforme as sociedades foram ganhando complexidade, muitos outros fatores entraram no jogo. Hoje, nossa estrutura social impõe muito mais condições para o sucesso ou o fracasso do que o mero esforço individual. É bem mais fácil ser bem-sucedido herdando privilégios que saindo do zero, e os números de mobilidade social demonstram isso. Políticas sociais são criadas para tentar aliviar essas disparidades competitivas.
Contudo, o mito da meritocracia persiste. Todos se recordam da história do sujeito que saiu de baixo e se fez rico. A imprensa sempre festeja casos assim. Alguma versão de "Silvio Santos era camelô e virou dono de televisão". É raro quem mencione o fato de que todos os outros camelôs do Brasil nunca viraram Silvio Santos, e decerto há muitos que trabalharam bastante a vida toda.
Com a chegada de uma IA modestamente capaz (que dirá uma superinteligente), sustentar essa noção tosca de meritocracia passará de malicioso a impossível.
TRÊS CAMINHOS
Diante da iminente chegada da "singularidade tecnológica" (como Kurzweil e outros estudiosos se referem a esse momento em que surge uma criação nossa que é igual ou superior a nós), só há três caminhos possíveis: o colapso da civilização, um banimento da IA ou um futuro com mentalidade pós-capitalista.
No momento, estamos firmes na trilha 1, colapso civilizatório. Os sinais estão por aí. Estresses econômicos e aumento brutal de desigualdades, depois de um bom tempo de redução (em escala global), um esmagamento da classe média em toda parte e um apontar de dedos para todo lado, ampliando xenofobia e extremismos. A introdução de módicas quantidades de IA na nossa vida (na forma das redes sociais) já está nos desagregando de forma potente. E o gradual desemprego estrutural oprime. A filosofia do "eterno crescimento econômico" sobre a qual o capitalismo e seus mitos (dentre eles o da meritocracia) estão assentados começa a esbarrar em limites de diversas dimensões: populacional, climático, ambiental, disponibilidade de recursos naturais. Alguns são contornáveis. Outros não.
E, claro, o que segue ditando o avanço da sociedade é o ganho de eficiência. E tudo bem. É assim que tem de ser se almejamos desenvolvimento. Se uma IA puder ajudar a zerar a fila de cirurgias do SUS permitindo que os médicos atendam mais pessoas, isso não é desejável? É mais que desejável, é um imperativo ético. Empresas vão se pautar pela mesma lógica: é possível ser mais eficiente –logo aumentar os lucros– com IA. Nada de errado com isso. É o progresso. Mas se não for feito de forma bem pensada (e é fato que não há muito debate sobre isso), a civilização pode colapsar sob seu próprio peso. Com demanda finita por trabalho (digamos, o fim da fila no SUS) e ganho explosivo de eficiência, teremos toneladas de desempregados que, incapazes de se sustentar, viverão rancorosos e suscetíveis a movimentos radicais.
Precisamos fugir dessa rota. Como? Duas possibilidades, uma delas bem pouco crível: o banimento da tecnologia de IA.
Basta pouco para lembrar quão impraticável é isso: qual é o grau de sucesso que governos têm para bloquear acesso à internet ou a conteúdos específicos? Há muito esforço, mas o sucesso é duvidoso. E tentar transformar a IA em uma ferramenta clandestina seria ainda pior, socialmente falando, do que encorajá-la. Além de criar mais desigualdades (entre quem consegue acesso ilegalmente e quem não consegue), tira de nossas mãos qualquer oportunidade de regulamentar e controlar seus usos. (Já viu alguém tributando tráfico de drogas?)
A única alternativa realmente viável é uma reforma de um dos nossos mitos fundadores, a noção de que a função do trabalho é o sustento. Precisamos mudar nossa mentalidade e entender que o sustento é um direito, não algo que esteja condicionado à produtividade individual. A existência plena e saudável, ao longo de toda a vida, deveria ser algo assegurado a todos os seres humanos.
Daí que mesmo entre gurus da tecnologia, como Bill Gates e Elon Musk (para citar dois antagônicos em tanta coisa), há um consenso de que o futuro terá de passar por um programa robusto de renda cidadã universal. (Sim, Eduardo Suplicy esteve muito à frente de seu tempo, e nós temos sorte de tê-lo conosco.)
Duas questões legítimas emergem disso: de onde vai sair o dinheiro? E, resolvendo isso, seremos uma população alienada com 90% de desocupados?
A primeira resposta é, creio eu, de um sistema de tributação que consiga converter o que a alta tecnologia produz em termos de desigualdades em rentabilidade para sustentar o programa. Em suma, serão os comercializadores e consumidores de serviços de IA que vão pagar a conta, ao tornarem todo o resto do sistema mais produtivo, mas menos humano-intensivo.
E quanto à ocupação da população? O trabalho ganhará um novo significado e será, em vez de um meio para um fim, sua própria recompensa. O prazer de criar, produzir, realizar e estudar poderá ser exercido como um privilégio livremente acessível, em vez de um dever atrelado à sobrevivência. Os humanos poderão se dedicar a cultivar corpo, mente e espírito da forma que julgarem mais satisfatória. Haverá os que nada farão? Haverá. Mas se partimos do princípio de que a subsistência é um direito, isso nem chega a ser um problema – exceto para eles mesmos, que talvez tenham uma vida menos satisfatória intelectual e fisicamente. Na outra ponta, também haverá os que, como hoje, terão grande ambição, quererão trabalhar para enriquecer e terão de inovar para chegar lá –a única novidade para eles é que terão de pagar sua contribuição aos demais, na medida de seu sucesso.
O Brasil parece notoriamente à frente nessa transição, ao menos no que diz respeito ao aspecto aspiracional. Nossa Constituição Federal já assegura uma série de direitos e temos um programa de distribuição de renda nacional em operação, que pode ser expandido com o tempo.
Não será fácil acompanhar a velocidade dessa transição para a singularidade tecnológica, que promete ser rápida e avassaladora. Alternativas transicionais mais facilmente implementáveis serão a de reduzir gradualmente a carga horária dos profissionais, sem perda de renda, à medida que a IA confere a eles mais produtividade. Isso, de saída, permitiria a suavização do desemprego estrutural, enquanto não equacionamos devidamente um programa de renda cidadã universal.
O que não será possível é simplesmente não refletir sobre o assunto e fingir que tudo está bem. Aos entusiastas do liberalismo econômico sem balizas, um recado: não, o mercado não tem a menor chance de se autorregular nessa. Nada fazer sobre essas mudanças que já nos alcançam há alguns anos e tendem a se intensificar de forma radical será uma opção a cada dia menos aceitável – e mais perigosa. O futuro é logo ali.
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