Se um dos objetivo é conquistar mercado externo para esse segmento que se tornará predominante, então será preciso garantir escala de produção e redução de custos, para as quais a boa densidade do mercado interno poderá ser alavanca decisiva.
Mas, até agora, não há definição de uma política nessa direção. Se tudo continuar assim, o Brasil poderá novamente perder grandes oportunidades.
Os carros elétricos seguem conquistando espaço no Brasil. As vendas dos modelos leves cresceram 54% nos cinco primeiros meses deste ano, na comparação com o mesmo período do ano anterior (veja o gráfico). Atingiram 16,3 mil unidades, mas são nicho de cerca de apenas 2% nas vendas totais do setor.
Esse crescimento acontece em cenário de aumento de custos, em consequência de vários choques nas cadeias de produção, o que encarece os veículos. O mercado é abastecido com importados. O modelo mais barato no mercado alcança R$ 139 mil. O cenário pode mudar com a nacionalização da produção de um componente-chave: a bateria.
A infraestrutura também avança. A Shell acaba de inauguraroprimeiro eletroposto de carregamento rápido para elétricos na cidade de São Paulo e pretende criar mais 34 até março de 2023 na Região Sudeste. A Vibra Energia (antiga BR Distribuidora) também inaugurou recentemente um primeiro ponto de recarga ultrarrápida em postos de combustíveis da bandeira Petrobras. A operação prevê a instalação de 70 postos nas Regiões Sul e Sudeste.
O fundador da Zletric, startup especializada em soluções para recarga de veículos elétricos e híbridos, Pedro Schaan, observa que “em infraestrutura, o Brasil está mostrando que existem opções de recarga, que hoje já são 1,5 mil”.
Geovani Fagunde, sócio da consultoria PwC Brasil, adverte que o Brasil precisa definir que porcentuais da sua frota serão eletrificados ou híbridos e o quanto de energia fóssil será tolerada. “São parâmetros importantes para dar mais clareza ao processo de transição energética. O mercado privado tem capital suficiente para financiar esse desenvolvimento, mas para isso é preciso garantir mais segurança nas regras do jogo.” /COM PABLO SANTANA
O monumental O Capital no Século XXI de Thomas Piketty (2013) ofereceu um dos estudos mais completos e esclarecedores sobre a economia capitalista desde que Karl Marx publicou O Capital original, 150 anos antes. Apesar das cerca de setecentas páginas de análises eruditas e muitas vezes densas, O Capital de Piketty foi um grande sucesso – vendendo mais de 2,5 milhões de cópias no mundo todo. O livro apareceu em um momento crucial. Vinha se formando um descontentamento econômico desde a crise financeira de 2008-2009 e muitos culparam as elites econômicas e seus aliados no governo por terem empurrado para o abismo o sistema bancário mundial (e o bem-estar de dezenas de milhões de pessoas). Em 2011, o Occupy Wall Street deu foco e movimento a essa fúria, facilitou o surgimento de líderes políticos como Elizabeth Warren e Bernie Sanders e gerou uma fome por compreensão sobre os mecanismos do capitalismo capazes de produzir profundas desigualdades econômicas e injustiças. O tomo de Piketty forneceu a visão do funcionamento interno do capitalismo que muitas pessoas estavam buscando com muita urgência.
O Capital no século XXI concentrou a maior parte de sua atenção no mundo industrializado avançado da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. A sequência ainda mais longa de Piketty, Capital e Ideologia (2019), aprofundou essa análise original e expandiu seu escopo para incluir grande parte do resto do mundo, com foco particular em como a escravidão e o colonialismo contribuíram para o triunfo do Ocidente capitalista. O mais recente trabalho de Piketty, A Brief History of Equality, resume perfeitamente as descobertas de seus dois volumes anteriores em “meras” 250 páginas de texto. Os leitores acharão este trabalho atraente por sua brevidade. Mas A Brief History of Equality também é um tipo de livro muito diferente dos dois primeiros.
Embora não seja bem um manifesto, A Brief History of Equality oferece um argumento bem fundamentado sobre por que devemos ser otimistas em relação ao progresso humano, que Piketty define como “o movimento em direção à igualdade”. Nos últimos duzentos anos, observa ele, a expectativa de vida aumentou de 26 para 72 anos. “Nos dias de hoje”, acrescenta, “a humanidade está com a saúde melhor do que nunca e também tem mais acesso à educação e à cultura do que jamais teve”. Piketty está ciente das disparidades no bem-estar dos indivíduos tanto nas sociedades industriais avançadas quanto entre o Norte e o Sul Global. Mas sua leitura da história do século 20 lhe permite pensar que essas desigualdades do século 21 podem ser reduzidas, em parte porque “a marcha para a igualdade em todas as suas formas” é irreprimível, em outra parte porque gerações passadas de reformadores abriram um caminho que ainda ilumina o rumo a seguir.
Piketty se concentra em particular na revolução governamental que as forças liberais e de esquerda impulsionaram entre 1910 e 1980 no Ocidente industrializado. Ao longo dessas décadas, escreve ele, as sociedades ocidentais construíram estados de bem-estar robustos, investiram pesadamente em educação e outros bens públicos e reduziram consideravelmente a desigualdade econômica – e, portanto, a lacuna nas chances de vida – entre ricos e pobres. Piketty chama essa transformação de “revolução antropológica”; para ele, representa um triunfo social-democrata. Os impostos foram o instrumento chave da revolução. Em um país depois do outro, as receitas totais de impostos explodiram, de menos de 10% da renda nacional em 1910 para algo entre 30 e 40% nas décadas de meados do século. Esses regimes tributários eram altamente progressivos e redistribucionistas, com os Estados Unidos (surpreendentemente) liderando a tendência, impondo uma alíquota máxima média de 81% sobre os mais ricos entre 1932 e 1980..
iketty apresenta em A Brief History of Equality um dos programas social-democratas mais compreensíveis e abrangentes disponíveis em qualquer lugar. Suas propostas incluem financiamento público de eleições, assembleias transnacionais para complementar as legislaturas nacionais, um imposto global
O triunfo da social-democracia no Ocidente do século 20 imbuiu Piketty com a confiança de que a humanidade pode fazer a transição para um novo estágio de igualdade. Pensador socialista engajado e lúcido, Piketty apresenta em A Brief History of Equality um dos programas social-democratas mais compreensíveis e abrangentes disponíveis em qualquer lugar. Suas propostas incluem financiamento público de eleições, assembleias transnacionais para complementar as legislaturas nacionais, um imposto global de 2% sobre todas as fortunas individuais que ultrapassem 10 milhões de euros (cerca de US$ 10,4 milhões), envolvimento dos trabalhadores na gestão das grandes empresas (para promover um “socialismo participatório”) e a revisão de tratados globais para garantir que a circulação internacional de capital facilite, em vez de dificultar, a busca de objetivos-chave, como reduzir os gases de efeito estufa e mitigar a desigualdade econômica entre o Norte e o Sul Global.
Piketty sabe que não será fácil implementar qualquer uma de suas propostas. Mas sua leitura da política no Ocidente do século 20 lhe dá motivos para ter esperança. Naquela época, argumenta ele, movimentos progressistas – mulheres exigindo o voto, trabalhadores lutando por direitos trabalhistas, partidos social-democratas competindo pela vitória nas urnas, minorias lutando por direitos civis – desencadearam uma vasta transformação política. Movimentos de protesto desse tipo, adequadamente ajustados às necessidades dos cidadãos do século 21, podem alcançar resultados semelhantes.
Para defender a eficácia da política progressista, no entanto, Piketty ignora uma visão um tanto sombria oferecida em seu O Capital no Século XXI. Nesse trabalho, Piketty argumentou que o triunfo social-democrata do século 20 não surgiu apenas do trabalho de movimentos progressistas. Igualmente importante – e talvez ainda mais – foi a força destrutiva de duas guerras mundiais. “Foi o caos da guerra”, escreveu Piketty, “que reduziu a desigualdade no século XX (...). Foi a guerra, e não a racionalidade democrática ou econômica, que apagou o passado e permitiu que a sociedade começasse de novo, do zero”.
A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais a que Piketty se refere mataram quase 100 milhões de pessoas, destruíram instalações de produção, despojaram as potências europeias de suas colônias geradoras de renda e em todos os lugares desestabilizaram tanto as fortunas quanto o pensamento das elites econômicas. A catástrofe da guerra, argumentou Piketty em seu trabalho de 2013, deu à social-democracia a chance de triunfar no Ocidente.
Daí a questão-chave para o livro de Piketty de 2022: será que se pode realizar no século 21 uma redução da desigualdade na mesma escala que ocorreu no Ocidente do século 20 sem outra grande guerra? Ou uma pandemia muito mais destrutiva do que esta que estamos vivendo? Ou uma catástrofe climática? Piketty certamente quer responder que sim. Ele traçou um plano inteligente, ponderado e motivado por convicções políticas admiráveis. Mas um plano desse tipo, como o próprio Piketty mostrou em O Capital no Século XXI, talvez não seja suficiente, mesmo quando apoiado por uma falange de movimentos progressistas. A destruição vasta e cruel da vida e da propriedade, Piketty escreveu certa vez, foi o prelúdio do triunfo social-democrata do século 20. Esperemos que o mundo não precise de morte e desespero semelhantes para criar uma era de reconstrução econômica e social do século 21.
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Gary Gerstle é professor emérito de história americana na Universidade de Cambridge e autor, mais recentemente, de The Rise and Fall of the Neoliberal Order: America and the World in the Free Market Era. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Único senador a votar contra a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) das bondades em ano eleitoral, José Serra (PSDB-SP) critica duramente o Senado por ter atropelado a votação, em apenas dois dias, em vez de buscar uma saída que mantivesse a responsabilidade fiscal e sem medidas extremas e polêmicas, como a decretação do estado de emergência.
"Só agora o Senado descobriu que as famílias passam fome no Brasil?", questiona o senador e ex-governador paulista, em entrevista à Folha.
A criação de alguns desses benefícios só foi possível juridicamente porque o texto da proposta também contém um dispositivo polêmico que estabelece o estado de emergência para viabilizar as benesses, o que vem sendo apontado como um "drible" na legislação eleitoral.
"A partir do momento em que a Constituição se torna instrumento para maiorias de ocasião solaparem o que bem entendem, tudo é possível. Sinto que tudo dependerá da conveniência, necessidade ou desespero dos envolvidos", afirma.
Por que o senhor decidiu votar contra a PEC ? Pela forma como tudo se deu. De repente, aparece uma PEC com gastos da ordem de R$ 38 bilhões, despesas temporárias autorizadas no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Havia diversos itens no pacote: transferência de renda para os elegíveis ao Auxílio Brasil, subsídio à gratuidade para idosos no transporte público urbano e semi-urbano, compensação aos estados por crédito de ICMS ao setor de etanol, aumento do auxílio-gás, transferências para caminhoneiros. Depois, vieram as transferências para taxistas, tudo em dois dias. Não tínhamos o texto consolidado da PEC no momento em que a votação era aberta. Ao final, o Senado aprovou R$ 41 bilhões em despesas para 2022 mediante uma PEC que nem passou pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), votada em dois turnos numa tarde. Regras fiscais, questões distributivas, viabilidade do gasto, o caráter emergencial deste ou daquele item, impacto nas contas públicas, nada foi debatido.
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Qual fator pesou mais na decisão do senhor? O fato de a proposta ser eleitoreira, a inclusão do estado de emergência? O caráter eleitoreiro da medida é evidente. Só agora o Senado descobriu que famílias passam fome no Brasil? Que pessoas são intoxicadas ou queimadas pelo uso de material inadequado no preparo de alimentos devido à falta de gás de cozinha?
Foi uma decisão difícil, pois é óbvio que nenhum problema é maior do que a situação de insegurança alimentar de milhões de famílias. Há, contudo, meios e meios para obter recursos que atenuem o problema. Subitamente, declara-se na Constituição um estado de emergência para excetuar R$ 41 bilhões de todas as regras fiscais existentes, sem nenhuma discussão quanto ao mérito de cada item do pacote, fontes de custeio, impactos econômicos, etc? Em dois dias o Senado aprova uma PEC autorizando gastos temporários? Seria perfeitamente possível obtermos recursos pelo processo legislativo usual, via projeto de lei com recursos ordinários e extraordinários.
Quais os riscos que o senhor avalia que há na previsão do estado de emergência para possibilitar o pagamento dos benefícios em um ano eleitoral? Regras fiscais são pensadas para reduzir os riscos de que recursos públicos sejam empregados de maneira injusta ou ineficiente, para reduzir os riscos de desequilíbrios fiscais crônicos. Ao permitir que, subitamente, dezenas de bilhões sejam gastos para proporcionar vantagem eleitoral a governos e parlamentares de ocasião, estamos reforçando estímulos a condutas irresponsáveis. Naturalmente, a competição política se torna ainda mais desigual. Uma Constituição deve estabelecer as regras fundamentais do jogo político e os pilares da arquitetura institucional de um país. Ontem, o Senado fez dela um instrumento para subverter todas as regras fiscais. O processo legislativo orçamentário e todas as regras que o balizam foram completamente desprezados.
Em ano eleitoral, o governo resgatou uma PEC para destravar programas sociais. Dentre os objetivos, ampliar o Auxílio Brasil para R$ 600 e zNelson Almeida - 21.dez.2021/AFP
O senhor acredita que a previsão do estado de emergência pode abrir precedente, caminho, para outras iniciativas do governo Bolsonaro neste ano? Sempre é possível. O que a PEC aponta é que não há mais limites. No ano passado, aprovaram a PEC dos precatórios, muito problemática. Agora, R$ 41 bilhões em gastos temporários, sem considerações. Foram algumas as iniciativas com o intuito de reduzir na marra os preços de combustíveis, cogitando-se até rever a lei das estatais. A partir do momento em que a Constituição se torna instrumento para maiorias de ocasião solaparem o que bem entendem, tudo é possível. Sinto que tudo dependerá da conveniência, necessidade ou desespero dos envolvidos.
Além do voto contrário, o senhor pretende tomar mais alguma medida contra essa PEC, como judicializar? A judicialização requer considerações de ordem processual e material. Não é uma medida trivial. Seguirei muito atento, até o final do meu mandato, a todas as tentativas de desconstruir o que construímos com tanto esforço. Quem rasga deveres da Constituição em um dia no outro rasgará direitos, até que não tenhamos mais nenhum.
Houve críticas ao caráter eleitoreiro da PEC, mas vimos a pré-candidata Simone Tebet e praticamente todos parlamentares do partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Ciro Gomes votando a favor. Como avalia esse comportamento? Para esses personagens e seus aliados valeu também o fator eleições em vez da sustentabilidade fiscal? A PEC, para mim é eleitoreira e irresponsável. Para eles, creio que seja necessário perguntar o que eles imaginaram que seria. Só posso entender a postura de muitos senadores como medo de serem malvistos pela opinião pública. Mas também acredito que a população brasileira é perfeitamente capaz de discernir.
Jamais me negaria a votar em favor de quem tem fome. Os dados são alarmantes. Mas há que se atuar com responsabilidade para que a nossa economia não piore ainda mais no próximo ano, com juros e inflação mais altos, corroendo de vez os ganhos da população.
RAIO-X
JOSÉ SERRA, 80
Nascido em São Paulo (SP), formou-se em economia e engenharia e começou sua carreira política no movimento estudantil. Foi presidente da União Nacional dos Estudantes. Após um período de exílio, durante a ditadura militar, retornou ao Brasil e ocupou diversos cargos públicos. Foi prefeito da capital paulista, governador, deputado federal e senador. Também foi ministro da Saúde, do Planejamento e das Relações Exteriores. Disputou a presidência da República por duas vezes. Está em seu segundo mandato no Senado Federal, que se encerra em janeiro do próximo ano.