sábado, 23 de abril de 2022

GPT-3, prodígio da inteligência artificial, não é capaz de imaginar o novo, Mario Sergio Conti, FSP

 


O último número da revista dominical do New York Times tem uma reportagem fascinante, "A Inteligência Artificial Está Dominando a Linguagem". Como todo texto em que forma e conteúdo são inextricáveis, ela é irresumível. Para piorar, é longa. Tem 60 mil palavras; esta crônica, 760.

Steven Johnson conta que há um megacomputador em Iowa, nos Estados Unidos, com 285 mil CPUs, a Unidade Central de Processamento —e o seu computador tem uma só. Prodígio da inteligência artificial, a máquina interage com humanos e escreve direitinho o que mandam.

A interação já é usada em programas como Siri e Alexa, que respondem ao usuário. Também há aqueles que oferecem arremedos de escrita —corretores ortográficos e máquinas de tradução do tipo Reverso e Google Tradutor. O bichão de Iowa, o GPT-3, é de outra espécie.

Ilustração que representa uma máquina de escrever, desenhada com traços a lápis, conectada por meio de fios a livros abertos ou fechados dispostos ao seu redor
Ilustração publicada em 22 de abril - Bruna Barros

Ele imita as redes neurais humanas e tem na memória bibliotecas inteiras, da Wikipédia a programas linguísticos de computação. Ao receber uma ordem, o big computador —um dos mais poderosos do mundo— faz zilhões de cálculos e os refina até vir com a resposta.

O repórter lhe disse: "escreva um ensaio discutindo o papel da metaficção na obra de Italo Calvino". A máquina começou: "O autor italiano Italo Calvino é considerado um mestre da metaficção, o gênero de escrita no qual o autor rompe a barreira entre a obra e a audiência e discute o próprio ato de escrever".

Prosseguiu: "Para Calvino, a metaficção é um modo de explorar a natureza da realidade e as maneiras pelas quais as histórias podem moldar nossas percepções do mundo". Foi em frente: "Seus romances muitas vezes incorporam estruturas lúdicas e labirínticas que brincam com as fronteiras entre realidade e ficção".

Você, que acabou de reler Calvino inteiro, achou o ensaio automático um amontoado de clichês. Burrão latino-americano, eu achei legal. Exceto pelo seguinte: quando o jornal tiver o GPT-3, adeus colunistas.

Bastará ordenar: escreva uma crônica de 760 palavras discutindo a reportagem de Steven Johnson sobre o hípercomputador de Iowa. Pronto, lá se foi o salário.

O problema é o custo. Para aperfeiçoar o GPT-3, torná-lo mais rápido, preciso e comercializável, serão necessários pentilhões de dólares. Quando sua construção começou, em 2015, ele foi bancado por luminares do Vale do Silício.

O objetivo deles era, nada mais nada menos, o bem estar comum. No seu manifesto de intenções, afiançaram: "Nosso objetivo é desenvolver a inteligência digital da maneira a beneficiar a humanidade como um todo, sem a necessidade de gerar retorno financeiro". Que fofos.

O projeto também proibia que fosse usado para propaganda, desinformação, manipulação política, concessão de crédito, recrutamento para postos de trabalho, divulgação de spams, jogos e mercadorias "pseudofarmacêuticas" —caso da cloroquina para curar Covid.

Não deu certo. Com um custo cavalar, o projeto deixou de ser não lucrativo. Passou a ter um teto de lucros de cem vezes o valor do investimento. Os primeiros investidores do Google e do Facebook tiveram um ganho mais de mil vezes maior que o capital inicial.

O repórter do New York Times diz que "os céticos" não creem nas salvaguardas que protegem o GPT-3 do comercialismo. Ora, nem é preciso ser cético: o altruísmo não tem lugar numa economia que supre necessidades mediante lucro. Ou a Microsoft aderiu ao projeto por bondade?

Partindo de outros princípios, como o da modelagem, já há computadores que redigem contratos, balanços, previsões climáticas e econômicas. O GPT-3 é mais avançado porque mimetiza o que ocorre na rede neural humana, recombinado os dados quase ilimitados que armazena em discos rígidos.

É por essa razão que, por mais que se repita a mesma ordem, como a sobre a obra de Calvino, o computadorzaço gera sempre um texto diferente do anterior. Isso ocorre porque a máquina se espelha em redatores de carne, osso e neurônios. Todo mundo escreve a partir de dados armazenados na memória.

Por exemplo: ô, GPT-3, escreve aí uma coluna discutindo se Bolsonaro fará um rolo na eleição e tentará um golpe. A máquina não produzirá nada de diferente da gororoba acerca da força das instituições e da união dos patriotas: reciclará textos prévios.

Isso não significa que o ubercomputador seja ruim. Mas mostra que há pessoas que escrevem de maneira automatizada e alienada. Reciclam o sabido e não imaginam o novo. Aceitam os dados da realidade sem pensar em mudá-la.

O miojo doce e outras porcarias bem piores, Marcos Nogueira , FSP

 


SÃO PAULO

Além do cabecinha Daniel Silveira, outro assunto pôs a internet em polvorosa esta semana: o lançamento do miojo doce, nos sabores chocolate e beijinho.

Trata-se uma edição limitada –obviamente, pois os caras da Nissin não são malucos de abarrotar as gôndolas com um negócio desses. Nem cabe ponderar se a coisa é asquerosa ou surpreendentemente palatável (spoiler: não tem como ser boa).

Porque ninguém quer vender miojo doce. O que o fabricante quer é fazer barulho com uma polêmica planejada dentro de uma agência de publicidade. Quer divulgação espontânea da marca.

Quer isto que eu estou fazendo agora mesmo, neste espaço.

Bolsonaro segura um pacote de miojo
Em 2019, Bolsonaro foi ao Japão e levou miojo brasileiro para lá - Reprodução

O gasto com mídia é substituído pelo custo industrial da produção de um pequeno lote de miojo bizarro. Não tenha dúvida de que sai bem mais barato. E funciona muito.

Depois de ver uma série de tuítes chamando o miojo doce de "trombeta do Apocalipse", escrevi um post em que me dizia cansado de dar palco para esse tipo de ardil mequetrefe de marketing.

Alguém comentou que o meu tuíte era justamente esse palco. Pois é. Estou cansado, mas não disse que iria parar.

Somos prisioneiros das redes sociais, dependentes da máquina que põe nos "trending topics" o miojo doce e tranqueiras bem piores. Sim, estou falando dele: Jair Messias Bolsonaro.

A cantora Anitta bloqueou o presidente nas redes porque não convém à marca Anitta ser usada de trampolim para multiplicar o alcance das barbaridades bolsonaristas.

Por trás dos tuítes espontâneos da artista está uma equipe de profissionais que entende os mecanismos das redes e traça estratégias de comunicação digital. Esses especialistas chegaram à conclusão de que Anitta mais perde do que ganha quando alguns perfis marcam a sua arroba.

Não é assim com a maioria dos usuários de Twitter, Instagram e congêneres.

Essas redes nos foram apresentadas como espaços virtuais de conexão com pessoas do mundo real. Só depois de milhares de vídeos de gatinho é que percebemos a verdadeira função de tais ambientes: fazer-nos comprar objetos e ideias sem perceber que somos conduzidos para a traineira junto com as outras sardinhas da rede.

Aí já era tarde demais. Dona Maria e seu Zé já estavam reféns dos likes e da busca por novos seguidores. A situação é um pouco pior para nós, da imprensa.

Acompanhar assuntos em destaque é uma obrigação e uma necessidade para o jornalista. No mundo ideal, um mecenas pagaria as contas da imprensa sem exigir retorno, mas não é assim que funciona (com pouquíssimas e discutíveis exceções).

Precisamos de audiência para sobreviver. Isso passa obrigatoriamente por redes sociais e mecanismos de busca. Ser relevante nesses âmbitos não é opcional.

Então mordemos iscas como o miojo doce e o perdão que Bolsonaro concedeu a Daniel Silveira.

Bolsonaro está se lixando para o cabecinha. Ao anunciar a anulação de sua condenação, ele quis soar a trombeta que convoca seus demônios para a guerra. Ele sabe manipular as redes, assim como o povo da Nissin. Para Bolsonaro, Daniel Silveira é um miojo de chocolate.